Edição 383 | 05 Dezembro 2011

“O poder Judiciário é exemplar quando o criminoso é pobre”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

O direito no Brasil é rigoroso e punitivo somente para alguns segmentos da sociedade; para outros, como os colarinhos brancos, é leniente, critica André Luiz Olivier da Silva. A judicialização de conflitos sociais e políticos é uma das causas da sobrecarga do poder Judiciário

De acordo com o advogado e filósofo André Luiz Olivier da Silva, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, o Supremo Tribunal Federal – STF é um tribunal político amparado na Constituição Federal de 1988. Além disso, esse órgão possui o papel de legislar em causas como a (in) constitucionalidade de uma lei ou na emissão de súmulas vinculantes. Contudo, acentua o coordenador da graduação em Direito da Unisinos, “por ser uma corte política, o STF nem sempre decide com fundamento no direito, de modo que suas decisões muitas vezes parecem mais políticas do que propriamente jurídicas – isso, talvez, explique porque o presidente da República é quem escolhe sozinho os ministros do Judiciário”. Na esfera criminal, “o poder Judiciário é exemplar quando o criminoso é pobre, pois o pune, não raras vezes, de modo rigoroso, segregando-o, jogando-o nas masmorras dos nossos presídios; mas deixando impune o rico e influente, que comete crimes de colarinho branco. No Brasil, o direito é rigoroso e punitivo para algumas pessoas, mas, para outros, é leniente e julga sob o pano de fundo da inoperância – tudo vai depender de quem é o réu”. André menciona também a judicialização dos conflitos sociais, sejam problemas corriqueiros ou conflitos políticos, que acabam sobrecarregando o sistema. “Em resumo, o processo brasileiro não cumpre muito bem a sua função e, por isso, ainda está longe de atender às demandas da sociedade”.

André Luiz Oliviera da Silva é graduado em Direito e em Filosofia pela Unisinos. É mestre e doutorando em Filosofia por essa mesma instituição, com a dissertação Ceticismo, imaginação e identidade em Hume e a tese Lei e liberdade na antropologia kantiana. Leciona no curso de Direito da Unisinos, do qual é coordenador.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais foram as principais mudanças pelas quais passou o conceito de justiça até nossos dias?

André Luiz Olivier da Silva - Na tradição filosófica, o conceito de justiça nem sempre possuiu a mesma significação, embora seja possível verificar traços antigos na discussão contemporânea, como a relação entre justiça e igualdade. Se olharmos o conceito dentro dos limites da história das ideias, verificaremos que a justiça inicia-se como uma discussão sobre a conduta ou comportamento moral dos seres humanos, mas, com o passar dos séculos, transita para uma concepção sobre a eficiência da norma, em especial a norma jurídica.
Para Aristóteles , a justiça é uma virtude moral (a justa medida) que se justifica pela igualdade, seja ela uma igualdade na distribuição de bens ou na correção de relações desproporcionais. Na Idade Média, Tomás de Aquino  segue o mesmo caminho e inicia uma profunda abordagem do direito natural. Os modernos contribuem com essa discussão acrescentando o direito subjetivo, o qual está imbuído de uma noção de liberdade ao levar em consideração a autonomia da vontade do sujeito. Com isso sinalizam o contrato como critério determinante para se distinguir o justo do injusto. Nessa esteira segue-se o utilitarismo, como o proposto por John Stuart Mill , que visa explicar a justiça a partir do útil, o que irá contribuir para a separação entre moral e direito.

Cumprimento da norma

Creio que a partir de Kant  a divisão entre justiça e direito fica muito acentuada, visto que ele visa a purificação do fenômeno moral, separando-o de impurezas como, por exemplo, uma regra externa, como é o caso do direito. O direito constitui-se por uma regra externa, ligado à legalidade. Além disso, o desenvolvimento do Estado moderno contribuiu para que o conceito de justiça passasse a ser compreendido estritamente como o cumprimento irrestrito da norma, seja a partir da igualdade, seja a partir da liberdade. O Estado de Direito passa a ter amparo na lei, a resguardar a tripartição de poderes e a contar com o então constituído poder Judiciário. A partir do positivismo jurídico, o direito parece se concentrar na função da norma jurídica, desconsiderando a justiça. Essa concepção, quando levada ao seu extremo, acarreta no dogmatismo jurídico, para o qual a justiça é sempre uma concepção subjetiva, de modo que se torna perigoso trazer para o direito uma concepção que varia de acordo com cada consciência. Por fim, John Rawls  traz à tona uma discussão que vai além do positivismo jurídico, por meio de uma proposta de justiça substancial, pela qual a aplicação dos antigos princípios de igualdade e liberdade se faz pelo princípio da diferença.

IHU On-Line - Quais são os laços fundamentais entre justiça e direitos humanos?

André Luiz Olivier da Silva - Os direitos humanos não são direitos meramente jurídicos ou positivados; são direitos que dependem de uma significação moral, a partir de valores como o bem e o mal, o justo e o injusto. Podemos dizer, inclusive, que os direitos humanos são direitos morais, pois são direitos que dependem das obrigações morais e, portanto, dependem de uma concepção moral de justiça. É justamente na discussão dos direitos humanos que direito e moral se unem fortemente. Mais do que isso, os direitos humanos são aqueles direitos inventados a partir de valores morais (como o justo) e que encontram na positivação a garantia de que serão respeitados sob pena de incidir uma sanção jurídica no caso de sua violação. Isso evidencia que nem todos os direitos humanos estão organizados dentro de um ordenamento normativo, mas nem por isso deixam de constituírem-se como direitos humanos. São direitos traduzidos em exigências morais, segundo as quais um indivíduo se sensibiliza com o outro ao ponto de reivindicar equidade no jogo das obrigações que constitui o fenômeno moral. São direitos que nascem de valores morais e, por consequência, do interesse que um ser humano tem pelo outro por meio de um sentimento de pertencimento à humanidade.
No caso brasileiro, acho que o vínculo entre justiça e direitos humanos sempre foi descuidado, embora se tenha, de tempos em tempos, a oportunidade de fortalecer esse vínculo. Acho que o Brasil poderia dar um grande passo no fortalecimento desse vínculo ao criar a Comissão da Verdade e Justiça para investigar as violações aos direitos humanos nos anos de chumbo da ditadura militar. Poder-se-ia respeitar a memória e recontar a nossa história recente, sem necessariamente punir juridicamente os torturadores. Poder-se-ia exigir que todos os envolvidos recontassem a história da tortura no Brasil e que as próprias vítimas tivessem que perdoar os seus torturadores quando a história fosse realmente contada. Não seria propriamente uma responsabilização jurídica, mas sim uma responsabilização moral e política – e essa é a vantagem das Comissões da Verdade. No entanto, ao que tudo indica, a Comissão será a comissão da “meia verdade” ou, lamentavelmente, da mentira, e a história do Brasil autoritário será novamente omitida do nosso debate público.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição