Edição 380 | 14 Novembro 2011

A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça

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Castor Bartolomé Ruiz

Torturar sem matar, sofrer sem morrer até o limite da vida, essa é a grande técnica aprendida como arte biopolítica, constata Castor Bartolomé Ruiz

Apelido pejorativo dado àqueles prisioneiros dos campos de concentração que, em função de sua debilidade física e mental, não passavam de “esqueletos ambulantes”, o muçulmano é o paradigma da biopolítica. “Nele a vida humana fica reduzida ao limiar de pura sobrevivência biológica. Eram meros corpos ambulantes. Em seu estado esquelético, como instinto último e metarracional de sobrevivência, permaneciam longos períodos dobrados sobre os joelhos com a cabeça inclinada, a modo do muçulmano na sua oração diária”. A explicação é do filósofo espanhol Castor Bartolomé Ruiz, no artigo que escreveu para a IHU On-Line, a modo de conclusão do evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”. E questiona: “Como um ser privado da linguagem pode ser humano se a linguagem constitui o humano? Ainda, como poderá ser o muçulmano uma testemunha se está privado da palavra? Ou por acaso o muçulmano, como pretendiam os nazistas, já não era mais humano?”

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em filosofia da Unisinos, Castor Bartolomé Ruiz é graduado em curso de Filosofia, pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia, pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004); As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); e Propiedad o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com o artigo A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/a88wnF.

Confira o artigo.


Agamben, em sua obra O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha, propõe-se dar destaque, entre outros aspectos, à testemunha por excelência dos campos de extermínio nazistas, o muçulmano . Muçulmano era o apelido que recebiam nos campos aquelas pessoas que por seu grau de degradação física e psíquica tinham se debilitado ao extremo de parecerem “esqueletos ambulantes”. A debilidade física atingia suas funções neuronais ao extremo de perderem a capacidade de raciocínio e sobreviverem numa espécie de autismo biológico extremo.

O muçulmano é o paradigma da biopolítica. Nele a vida humana fica reduzida ao limiar de pura sobrevivência biológica. Eram meros corpos ambulantes. Em seu estado esquelético, como instinto último e metarracional de sobrevivência, permaneciam longos períodos dobrados sobre os joelhos com a cabeça inclinada, ao modo do religioso muçulmano em suas orações diárias. O muçulmano era a meta a que ninguém queria chegar e o objetivo que pretendia atingir o campo. O muçulmano aterrorizava aos deportados porque lhes indicava o destino a que conduzia sua condição biopolítica no campo. Mais cedo ou mais tarde, todos seriam muçulmanos.
Eles eram testemunhas indesejadas de um destino evitado. Sua presença corroborava a eficiência da maquinaria biopolítica do campo para reduzir a vida humana ao limite da mera vida natural. Para os deportados, a presença dos muçulmanos testemunha um destino programado pelo campo. Sua mera presença já constituía uma ameaça. Todos viam no muçulmano o terrível espelho do seu futuro no campo. Era uma testemunha indesejável porque testemunhava o intestemunhável. Sua existência é o testemunho mudo dos ápices do horror.

Quando uma pessoa atingia a condição de muçulmano, sua debilidade neuronal era tal que perdia a condição de articular uma linguagem com sentido. Suas palavras, quando as conseguia pronunciar, eram sem sentido. Meros sons articulados ao azar sem um nexo lógico. Se, segundo Aristóteles, a linguagem com sentido é o que diferencia o humano do animal, o muçulmano é o limite da condição humana que desafia a compreensão dos limites da linguagem. No muçulmano concentram-se questões e questionamentos éticos e filosóficos de grande calado. O primeiro deles diz respeito a seu próprio estatuto humano. Como um ser privado da linguagem pode ser humano se a linguagem constitui o humano? Ainda, como poderá ser o muçulmano uma testemunha se está privado da palavra? Ou por acaso o muçulmano, como pretendiam os nazistas, já não era mais humano? Ou era talvez uma espécie de humanidade menor, mínima, exibida pela violência biopolítica como seu trunfo mais evidente? O muçulmano, no limiar da vida, tornou-se uma vítima cujo testemunho privado da palavra interpela eticamente a nossa contemporaneidade. O muçulmano constitui o paradigma das vítimas da violência biopolítica ainda hoje.


Meros corpos vivos

As questões éticas e filosóficas postas pela condição do muçulmano são atuais. Agamben lembra que a condição extrema que a vida humana atinge no muçulmano está presente entre nós nas vidas dos enfermos comatosos ou ultracomatosos. Pergunta-se se esses corpos que têm vida, mas que não reagem nem se comunicam, são ou não pessoas humanas? Quem decide se são ou não pessoas humanas ou são meros corpos vivos? Tais questionamentos se deslocam a outros âmbitos em que se deve decidir se um feto é ou não vida humana. Quando se lhe há de reconhecer como pessoa humana? Só no ato do nascimento, um pouco antes, quando e quem decide se é vida humana e se essa vida humana é pessoa ou não? Essas questões bioéticas estão latejantes na condição biopolítica do muçulmano.
A condição biopolítica do muçulmano tem seu paralelo em nossas latitudes latino-americanas na figura do torturado. O torturado compartilha com o muçulmano a condição de uma vida capturada pela estratégia biopolítica do campo. O campo do torturado são os porões. Nos porões o direito fica suspenso e a exceção se transforma em norma. A vida capturada nos porões está sob o arbítrio da vontade de um soberano que decide fora de qualquer direito. O estado de exceção vigora nos porões como norma biopolítica que submete todas as vidas ali conduzidas. Os porões estão representados pelo Dops no Brasil, pela Esman da Argentina, por Guantânamo em Cuba ou ainda pelos inúmeros espaços “anônimos” em que ainda se aplica a tortura. Todos eles se reconhecem como campos em que a exceção vigora como norma e a vida humana se encontra sob o arbítrio de uma vontade soberana. Neles a tortura se tornou uma técnica biopolítica normal. A tortura e o torturado constituem a norma dos porões biopolíticos.
 A condição a que ficam reduzidos os torturados dos porões antes de serem mortos ou desaparecidos tem similaridade com a condição do muçulmano descrita pelos sobreviventes dos campos, mas também marca diferenças. Se o campo é o espaço biopolítico onde a exceção é a norma, a tortura tornou-se a técnica biopolítica cujo trunfo maior é fazer sobreviver a vida no limite do sofrimento. Torturar sem matar, sofrer sem morrer até o limite da vida, essa é a grande técnica aprendida como arte biopolítica. No corpo do torturado se ensaiam as técnicas limiares da vida e da morte. A arte do torturador se consuma quando consegue fazer sofrer mais por mais tempo. O bom torturador é aquele que consegue levar a vida ao limite da morte sem fazê-la morrer. O que assusta na tortura não é a morte, mas a vida que sofre sem poder morrer. O refinamento da tortura é conseguir que o corpo do torturado reclame pela morte para pôr fim a seu sofrimento, sem consegui-lo. Torturar ao extremo é manter a vida no limite de seu sofrimento. A vida do torturado fica pendente de um tênue fio, mas rasgada pela dor insuportável.


Marcas silenciosas

Os presos que habitam os espaços da tortura percebem no torturado o destino indesejável. Os gritos que ecoam, o corpo arrastado, o vazio de quem foi levado, são marcas de uma linguagem que está além e aquém do significado racional do sentido. Os porões são o campo onde a exceção fez da tortura a norma biopolítica de governo. Não bastava deixar morrer, tem que fazer sofrer. Nos porões da tortura não se é suficiente com a ameaça da morte: essa deve ser reclamada como um desejo que liberte da tortura. O horror dos porões não é a morte, mas a tortura. A sofisticação da tortura faz dos porões o espaço biopolítico em que viver se torna mais doloroso do que morrer. O corpo do torturado exibe as marcas silenciosas de uma linguagem indescritível porque as palavras perderão a capacidade de descrever o horror. Ainda, os torturados que sobreviverem terão de carregar consigo as marcas invisíveis de um horror indescritível. A sombra do torturador estará marcada no corpo e na alma do torturado em proporção direta ao horror do sofrimento. Algo de inominável permanece na narrativa do torturado. Seu maior testemunho é o que não pode dizer porque a linguagem não alcança. Ele é testemunha daquilo que não é capaz de testemunhar.
O muçulmano do campo e o torturado dos porões são testemunhas do que não pode ser testemunhado. Elas estão incapacitadas de testemunhar a totalidade do testemunho. Precisamente essa condição de impossibilidade de testemunhar as torna autênticas testemunhas. As verdadeiras testemunhas são aquelas cujo testemunho consiste em não ter a possibilidade da linguagem. As marcas mudas do corpo torturado, o vazio dos corpos desaparecidos se tornam testemunhas exemplares de algo que não pode ser testemunhado pela palavra.

O verdadeiro sentido do sofrimento padecido pelas vítimas da violência permanece na impossibilidade de dizer. A palavra nunca poderá dizer a totalidade do sofrimento das vítimas. O testemunho sempre esconde uma zona oculta de sentido em que a vítima testemunha pelo puro silêncio. A vítima coexiste com a incapacidade de dizer a totalidade do sofrimento que lhe atingiu. Ela se torna verdadeira testemunha precisamente porque não é capaz de testemunhar a totalidade da violência sofrida. Há um paradoxo na condição testemunhal da vítima. Esta é pura testemunha, no entanto não é capaz de testemunhar a totalidade do sofrimento. A testemunha mais radical é aquela que não pode mais dizer uma palavra por causa da violência sofrida. O silêncio do corpo torturado, a incapacidade da linguagem do muçulmano, inclusive o vazio dos desaparecidos, torna-os testemunhas exemplares. Seu silêncio é um testemunho. Sua condição de vítimas desprovidas da palavra as torna testemunhas paradigmáticas.

O que está em questão nas figuras do muçulmano e do torturado é o estatuto epistemológico do testemunho e a própria condição filosófico-política da testemunha. O valor do testemunho é reconhecido pelo caráter jurídico que se outorga a sua verdade. A verdade jurídica do testemunho está encharcada de objetividade. O testemunho tem que ser objetivo para ser reconhecido como verdadeiro pelo direito. Para o direito, quanto mais distante da objetividade menos valor de verdade tem o testemunho. A objetividade exige possibilidade de objetivar em linguagem a exterioridade do acontecido. Mas a característica das vítimas da violência é que sua incapacidade de testemunhar objetivamente é proporcional à crueldade sofrida. Ao extremo de que a “testemunha integral” é aquela que ficou incapacitada de testemunhar por causa da violência sofrida. Adorno quis mostrar essa aporia ética, política e até estética quando afirmou que “depois de Auschwitz não se pode escrever mais poesia”.

Os testemunhos dos sobreviventes insistem sobre as sombras de silêncio que permanecem em suas próprias palavras. Não porque não queiram contar o que aconteceu, mas porque não têm a capacidade de dizê-lo. A linguagem não é suficiente para expressar o testemunho. O acontecimento que os tornou torturados ou muçulmanos não pode ser objetivado em linguagem. A linguagem, sendo o modo de ser do humano, é incapaz de expressar todo o humano de uma vítima da violência. Nesse sentido que Levi afirma em seus escritos que só o muçulmano é a “testemunha integral”. Seu testemunho não tem valor jurídico, a verdade que sua incapacidade de dizer testemunha não pode ser aferida como prova de um processo. Contudo, só eles, as vítimas extremas da violência são verdadeiras testemunhas integrais do acontecimento.


Falsas vítimas

A testemunha apresenta-se, em primeiro lugar, como vítima. A condição de vítima não é algo subjetivo que invoca, mas que se viu reduzida a tal situação em virtude de uma imposição objetiva. Ela é vítima apesar de si. Reduzida à condição de vítima da violência, tem que testemunhar como tal. A condição de vítima tem que ser testemunhada. O seu testemunho desvela as condições injustas que a levam a sofrer a situação de vítima. A crítica de Nietzsche à condição da vítima como algo subjetivo que pode ser utilizado como artifício para culpar os outros das próprias incompetências pode, de fato, constatar-se em muitas situações. Contudo, estas são falsas vítimas. A vítima existe de forma objetiva porque houve uma injustiça ou violência que a reduziu a tal condição. Por isso só a vítima pode testemunhar plenamente do acontecimento sofrido.
O testemunho da vítima revela o lado oculto da violência e da injustiça que a mirada objetiva da exterioridade não capta. A vítima testemunha o inominável da violência. Seu testemunho excede todas as formas de linguagem para tornar-se uma linguagem própria. A linguagem da testemunha vítima da violência é paradoxal porque a integralidade de seu testemunho é inversamente proporcional à sua incapacidade de dizer o acontecido. O torturado e o muçulmano testemunham integralmente pela incapacidade de dizer tudo o acontecido que lhes conduz a essa situação.

Nietzsche não soube captar a singularidade do testemunho da vítima que transvalora todos os valores ao tornar-se ela o critério ético por excelência. A relatividade dos valores perde tal condição quando confrontada com a objetividade do sofrimento humano da vítima. Relativizar o sofrimento das vítimas como algo normal ou natural, significaria naturalizar a barbárie como norma moral da política. A aporia do relativismo ético fica ao descoberto perante a condição de indignidade das vítimas da injustiça. É nesse sentido que as testemunhas integrais representadas pelo muçulmano e pelo o torturado se tornam paradigmas éticos de justiça.


Leia mais...

Confira os outros artigos de Castor Bartolomé Ruiz sobre o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”

* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011

* O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011

* O estado de exceção como paradigma de governo. Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011

* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011 

* A testemunha, um acontecimento. Revista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-2011

* A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011

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