Edição 380 | 14 Novembro 2011

A palavra escrita, falada e cantada como realizações da arte literária

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Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira

“Qual canção, qual literatura ou qual arte, das que se fazem hoje em dia no país, consegue romper os limites da recepção na esfera privada e deslocar a reflexão e o debate para e sobre o domínio público?”, questiona Alexandre Graça Faria

Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, o professor Alexandre Faria, da Universidade Federal de Juiz de Fora, afirma que, no caso brasileiro, “a inserção da canção nos estudos literários é, antes de tudo, uma estratégia política de formação de leitor e de construção de autoestima em relação à própria cultura”. Ele acredita que “não precisamos esconder ou tratar como menor todo um saber popular que circula nos sambas, valsas e boleros cantados por nossos avós ou pais, ou no funk e no rap das novas gerações”. Para Alexandre “como as artes em geral, a literatura não pode ser reduzida a um olhar historiográfico, mas deve circular como elemento de desautomatização e de ampliação das percepções e dos sentidos, de forma que o leitor possa, com sua leitura, contribuir com alternativas para a realidade utilitária, pragmática e mercantil que limita a compreensão do humano”.

Alexandre Faria graduou-se em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Em seguida cursou mestrado em Literatura Brasileira na PUC-Rio. Publicou o livro Literatura de subtração: experiência urbana e literatura contemporânea (Rio de Janeiro: Papel Virtual, 1999), resultante de sua dissertação de mestrado. Em 1998, ingressou no doutorado em Letras, também na PUC-Rio. Desenvolveu pesquisa sobre a representação da identidade nacional na cultura brasileira contemporânea, que resultou na tese O Brasil presente: construções-ruínas do imaginário nacional contemporâneo. No Rio de Janeiro, atuou como docente em cursos livres e no ensino superior. Em 2004, ingressou na Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Letras – ICHL, onde está atualmente.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como você analisa a inserção da canção nos estudos literários? Será que, no caso brasileiro, incluir a canção unicamente como objeto de análise dos estudos culturais é suficiente para se compreender a canção no século XX, ou ainda a literatura brasileira no século XX?

Alexandre Faria – No caso brasileiro, a inserção da canção nos estudos literários é, antes de tudo, uma estratégia política de formação de leitor e de construção de autoestima em relação à própria cultura. Mas não deixa de ser também uma opção de quem busca alguma coerência teórica e histórica em relação à proposta de um conceito mais amplo de literatura.
Como estratégia política, significa reconhecer que parte significativa da tradição lírica no país se consolidou pela oralidade. Seja através da palavra falada ou cantada, é forte a circulação e mesmo a construção da expressão literária e poética em saraus, feiras, etc. A base desse fato poderia ser vista no histórico analfabetismo da maioria da população brasileira, mas me parece mais produtivo localizá-la na elitização da palavra escrita. De fato, a quase inacessibilidade do letramento e da formação escolar, para significativa parcela de negros e pobres no Brasil, foi o que contribuiu tanto para a permanência do analfabetismo como para o afastamento das formas orais de literatura do cânone escolar. Isso permitiu que a ideia de literatura se restringisse à produção escrita. Ora, na medida em que o país vence o analfabetismo e que as propostas de inclusão, através de ações afirmativas, vão reconfigurando os valores e as relações sociais, insistir nessa restrição seria continuar com a perspectiva elitista, pois o saber literário estaria associado a uma forma de escolarização e de ascensão sociocultural. Para recorrer a uma dicotomia oswaldiana, a da escola e da floresta, através da qual o poeta modernista busca sintetizar elementos díspares da nossa formação cultural, estaríamos insistindo apenas em nosso lado escola. Reconhecer a tradição oral, falada ou cantada, é uma forma de investir também em nosso lado floresta. E isso tem um alcance político muito significativo com relação à construção de uma autoestima nacional. Não precisamos esconder ou tratar como menor todo um saber popular que circula nos sambas, valsas e boleros cantados por nossos avós ou pais, ou no funk e no rap das novas gerações.

O gênero lírico

Do ponto de vista teórico e da história da literatura, sabe-se que o gênero lírico originalmente foi realizado através do canto, em paralelo com a música (e entre os gregos antigos com a dança também). O próprio termo lírico deriva de lira, instrumento naquela época usado para acompanhar o canto dos poemas. Da mesma forma, na Idade Média é riquíssimo o repertório de cantigas dos trovadores. Foi somente com a Renascença (e a invenção da imprensa, é claro) que a poesia foi se deslocando da voz e se fixando na página. É claro que a notação linguística se fixou e se difundiu de forma muito mais ampla do que a escrita musical. Por isso muito se perdeu da composição antiga e medieval escrita para voz ou instrumento. E continuaria se perdendo não fossem os meios técnicos de gravação e difusão, que garantiram a popularização massiva da informação poético-musical.

Por outro lado, apenas defender que a canção é uma forma de literatura não resolve a questão descritiva ou analítica do objeto. É claro que não se pode ler uma canção levando em conta apenas sua camada verbal. Há toda uma informação melódica, rítmica, harmônica, pertencente ao domínio da música, que deve ser abordada. E se se tratar de uma apresentação ao vivo? Elementos da performance cênica do intérprete e/ou da banda também podem interferir na leitura. Ora, sempre foi ponto pacífico a vocação interdisciplinar da literatura. Com exceção dos exageros de algumas correntes críticas do século XX, que almejavam a formulação de uma ciência da literatura, de natureza exclusivamente textual e linguística, sempre foi comum que o leitor de literatura buscasse diálogos com outros saberes, como a sociologia, a psicanálise, a filosofia, etc. Por que não com a música? Nesse sentido, o currículo disciplinar das escolas tradicionais ainda está muito aquém do que se espera para a formação de leitores, consequentemente de cidadãos.
Diante dessa constatação, e voltando à pergunta, “compreender a canção no século XX, ou ainda a literatura brasileira no século XX” não podem ser os objetivos da inserção desses saberes no currículo. Como as artes em geral, a literatura não pode ser reduzida a um olhar historiográfico, mas deve circular como elemento de desautomatização e de ampliação das percepções e dos sentidos, de forma que o leitor possa, com sua leitura, contribuir com alternativas para a realidade utilitária, pragmática e mercantil que limita a compreensão do humano.

IHU On-Line – Podemos dizer que ainda há entre os estudantes, de todas as classes sociais, a formação de um repertório a partir do contato com a canção? Você percebe essa formação em seus alunos, na literatura produzida a partir das periferias do Rio e de São Paulo?

Alexandre Faria – De forma geral, independentemente de classes sociais, percebo que o repertório do estudante é formado pelos meios de comunicação de massa, não necessariamente apenas com a canção. Se o referencial lírico, por exemplo, está nas canções, o narrativo e o dramático estão no cinema e na telenovela. Isso é algo que se reflete, inclusive, em novos autores e em novas investidas editoriais. É cada vez mais frequente a observação de jogos alusivos, na literatura contemporânea, que estão em franco diálogo com os meios de comunicação de massa, especialmente com a TV. Muitas narrativas tangenciam o roteiro, por exemplo. Da mesma maneira, canções e filmes originais são adaptados para contos ou romances. Há ainda fortes evidências de que os jovens poetas iniciaram sua formação através da canção e só depois foram procurar a poesia nos livros. Há ritmos, corte de versos, recursos de rimas, típicos da canção, mas pouco presentes na poesia modernista, que caracterizam as primeiras realizações dos poetas iniciantes que apresentam suas criações nas oficinas que eventualmente ofereço.

No caso de autores das periferias urbanas que venho estudando atualmente, é muito evidente a referência a elementos da cultura de massa. Lembro agora a citação do Ultraman  em um poema do Sérgio Vaz . Há também um diálogo muito estreito entre a literatura das periferias e a cultura hip hop. Não há dúvida de que é forte o apelo à tradição oral e que o próprio domínio da escrita é objeto de problematização em muitos textos, dos quais vale citar a peça Da cabula, de Allan da Rosa . Por outro lado, também é frequente na literatura das periferias a referência à leitura de autores do cânone literário, principalmente os realistas e neorrealistas, mais críticos do sistema social.

IHU On-Line – O que a canção brasileira traz da literatura? O que a literatura traz da canção?

Alexandre Faria – Essas questões partem de uma lógica a qual tenho me esforçado para evitar. Tendo a considerar tanto a palavra escrita como a falada e a cantada como realizações da arte literária. Há literatura escrita e oral. Ambas têm a mesma importância. Prefiro dizer que não há permuta entre elementos do mesmo ser. Falar da contribuição de uma à outra leva ao risco de hierarquizar os discursos a partir de valores e preconceitos. Prefiro evitá-lo. Não existiria Guimarães Rosa  se não fosse a riqueza da oralidade brasileira. Também não existiria Chico Buarque sem a palavra escrita e a literatura francesa. É claro que ler com os ouvidos requer uma habilidade específica para a qual o leitor nem sempre teve formação adequada. E a grande vantagem de aproximá-las em um mesmo escaninho disciplinar é o fato de ampliar a possibilidade da formação de leitores.

IHU On-Line – Quais são as relações entre o movimento modernista brasileiro e a canção produzida nos anos 1960? Para onde foi o modernismo brasileiro?

Alexandre Faria – No caso específico do Brasil, há uma geração de compositores com forte formação literária. Chico Buarque, Caetano Veloso, Fernando Brant, Aldir Blanc, Fausto Nilo, Tom Zé são alguns dos nossos compositores herdeiros diretos da tradição literária modernista. Estão em suas letras Mario (que também era músico, porém pensava a cultura popular mais em direção ao folclore do que em função da música urbana), Oswald , Drummond , Bandeira , Cabral, e mesmo prosadores, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Fenômeno semelhante se dá com o Cinema Novo . É forte a presença de diretores que irão adaptar as obras dos modernistas. Dessa forma, entendo que as realizações culturais dos anos 1960/1970 foram processos de democratização, disseminação, massificação do nosso modernismo literário. Como previra Oswald, a massa, enfim, comia seus biscoitos finos. Nesse sentido, um ciclo iniciado em 1922 encontra seu clímax em 1968. Nesse período funda-se e difunde-se uma tradição estética e política para o Brasil. De lá pra cá, o que aconteceu na cultura brasileira ainda não está bem respondido. Há bons mapeamentos dos anos 1970/1980, mas nenhuma análise de fôlego ainda surgiu para dar conta de como se conjugaram fatos políticos, culturais, sociais, para resultar no mundo que vivemos hoje. Muitos críticos insistem em julgar negativamente a qualidade da produção cultural mais recente. Não acho essa avaliação da produção suficiente nem produtiva. Creio que compreenderiam melhor o quadro aqueles que investissem no estudo das transformações do sistema de circulação e de recepção das obras, tentando avaliar o quanto que essas transformações interferiram na construção da esfera pública no Brasil. Qual canção, qual literatura ou qual arte, das que se fazem hoje em dia no país, consegue romper os limites da recepção na esfera privada e deslocar a reflexão e o debate para e sobre o domínio público? Em certo sentido, buscar a resposta a essa pergunta é também ter uma orientação crítica para investigar sobre a permanência de importantes aspectos da tradição modernista.

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