Edição 379 | 07 Novembro 2011

Amartya Sen, o ser humano e a alternativa do diferente

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Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

“Muitos trabalhos importantes refletem uma visão de liberdade que só pode existir se o ser humano for pensado de modo mais complexo”, pontua o docente Flavio Vasconcellos Comim

“São muitas as contribuições do trabalho de Sen para o desenvolvimento humano. E, qualquer pessoa que fale sobre o trabalho dele, começa fazendo uma seleção que considera mais relevante para a realidade em que está”, afirma o professor Flavio Vasconcellos Comim, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Ele adianta o tema “Amartya Sen: o desenvolvimento como liberdade para a superação da fome, da miséria e do mal-estar social”, que apresentará na programação do Ciclo de Estudos: repensando os clássicos da economia, no dia 7 de novembro, das 20h às 22h, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. Para o docente, o trabalho do Sen ainda não aterrissou no Brasil. “Suas pesquisas ainda não foram absorvidas pela política pública no nosso país; nós continuamos medindo a pobreza da maneira que se media na década de 1950; permanecemos tratando a desigualdade em termos unidimensionais; continuamos vendo a educação apenas como item de mercado, de formação de capital humano; desconsideramos ainda todos os aspectos relativos à saúde, no sentido de sua produção, o envolvimento dos próprios cidadãos como parte, não do problema, mas da solução, para o desenvolvimento humano”. E completa: “os ensinamentos mais importantes de Sen, apesar de conhecidos na academia brasileira, ainda não aterrissaram na política pública e talvez esse seja o maior desafio dos próximos anos: compreender melhor o que ele diz e dar um sentido de uso às ideias que sejam relevantes para o desenvolvimento do Brasil”.

Flavio Vasconcellos Comim possui graduação em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP, mestrado em Economia pela University of Cambridge e doutorado, na mesma área, pela University of Cambridge. É pós-doutorado pela University of Cambridge. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – De que maneira os estudos de Amartya Sen contribuem para pensarmos o desenvolvimento de nosso país com liberdade, visando a superação de grandes problemas, como a fome, a miséria e o mal-estar social?

Flavio Vasconcellos Comim –
São muitas as contribuições do trabalho de Sen para o desenvolvimento humano. E, qualquer pessoa que fale sobre o trabalho dele, começa fazendo uma seleção que considera mais relevante para a realidade em que está. Então, a minha seleção começa com a ideia de pobreza como privação de capacitações. Isso parece ser apenas teórico, mas no fundo tem uma implicação prática que é dramática. Trata-se do fato de que a pobreza não é apenas insuficiência de renda, de saúde e educação, mas tem a ver com a transformação do ser humano e é algo que ainda não é completamente apreciado pelas políticas públicas. Logo, essa é a primeira contribuição de Sen que eu saliento referente à maneira de enxergar a pobreza. A segunda, relacionada a ela, tem a ver com o conceito de justiça social, principalmente no trabalho recente dele, mas é característica de quase toda a sua obra uma articulação de tópicos como: desigualdade, pobreza, abordagem das capacitações, como a questão da fome, que estão profundamente articulados através de um conceito de justiça social. E ele, por muito tempo, fundamentou o seu trabalho na contribuição do John Rawls . Cabe agora notar que, nesse seu trabalho recente sobre justiça, Sen constrói uma alternativa própria fundamentada no conceito de que a justiça é construída nas sociedades através das reações que as pessoas têm às injustiças, que elas presenciam e vivenciam. Então, ele tem uma teoria de justiça social que é diferente, posterior à contribuição de John Rawls, e que é muito articulada com uma terceira dimensão do trabalho de Sen, que é a dimensão dos indicadores. E aqui cabe citar o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH. Ao ser baseado em três dimensões, ele procura construir a razão pública. Trata-se da ideia de informar os cidadãos sobre o que está acontecendo na sociedade.


Democracia

Um quarto tema que perpassa esses outros, e que é importante na obra do Sen, é a questão da democracia, como esta faz parte do desenvolvimento humano. Em 1981, ele fez um trabalho sobre a pobreza e fome e chamou a atenção de que a maior parte das nações que passavam por grandes fomes generalizadas eram países que não eram democráticos. E a democracia não tem a ver apenas com as instituições democráticas, com voto; a preocupação dele com a democracia não é de procedimento, mas sim uma preocupação efetiva, das liberdades substantivas que as pessoas têm para que a democracia possa existir. Então, o chamamento do Sen é para uma visão de desenvolvimento humano que articula uma série de conceitos que são, em geral, ausentes do entendimento do desenvolvimento econômico ou da economia tradicional.


IHU On-Line – De que maneira a liberdade ocupa um papel central para a superação do mal-estar social?

Flavio Vasconcellos Comim –
A liberdade é um conceito-chave para Sen, porque ele escreve dentro de uma perspectiva que nós podemos chamar de liberalismo americano. A ideia do liberalismo americano é a promoção das liberdades das pessoas. É importante qualificar, porque Sen não está preocupado com as liberdades negativas. O que são liberdades negativas? São as liberdades principalmente do cidadão, de não ter sua vida modificada ou sofrer interferência pela intervenção de outros cidadãos ou pelo Estado. A preocupação fundamental dele não é essa. Ele se preocupa com o que nós chamamos de liberdades positivas, que são aquelas coisas que as pessoas podem ser ou fazer e que é importante para a vida delas. Ou seja, educação e saúde são liberdades positivas; poder expressar sua opinião livremente é uma liberdade positiva fundamental, faz parte da carta dos direitos humanos. Então, toda a perspectiva dele está centrada nisso. E muitos trabalhos importantes refletem uma visão de liberdade que só pode existir se o ser humano for pensado de modo mais complexo. Esse, dentro do trabalho de Sen, é um ser humano mais complexo. O indivíduo dentro da economia é uma pessoa simplista que reage mecanicamente a contas e a cálculos; entre vantagens e desvantagens, custos e benefícios. No trabalho do Sen, o ser humano tem a opção moral de ser diferente, de escolher de maneira diversa; de optar, por exemplo, em função de normas, costumes, regras e não apenas porque isso traz uma vantagem. Tem um trabalho do Sen, que se chama Bobos racionais, publicado em 1976, que é muito emblemático, no qual ele mostra os limites da racionalidade, da economia, e como ela produz alguns resultados que muitas vezes não são aderentes à prática, porque na prática os seres humanos são mais complexos. Dito isso, a liberdade tem papel crucial na obra do Sen, e isso está em diversos aspectos, mas deve chamar atenção mais a liberdade positiva do que a negativa, que é a preocupação dele, e isso está articulado com uma visão do ser humano mais complexa.


Mal-estar social

Podemos dizer que os problemas que poderiam estar vinculados ao mal-estar social, que são os da pobreza e da desigualdade, são respondidos por Sen de forma concreta, no sentido de que a pobreza não seja vista apenas como insuficiência de renda, mas analisada dentro de uma perspectiva multidimensional e que coloque o cidadão na direção do seu próprio destino, que estimule a razão pública para oferecer informação para as pessoas. Então, do ponto de vista dele, a pobreza é um problema muito mais complexo do que apenas distribuir renda para as pessoas. Esse é o primeiro ponto. O segundo, que diz respeito à desigualdade, é que Sen fundamentou toda a perspectiva de que essa desigualdade tem que ser avaliada nos espaços das capacitações. O que é isso? Capacitações são liberdades que as pessoas têm. Com isso ele chama atenção de que não é importante você ficar fazendo as mesmas contas de desigualdade de renda sempre, porque o que interessa não é apenas a capacidade que as pessoas têm em gerar tributo (renda), mas sim em utilizá-lo. Esse uso da renda é o que dá a ele o enfoque no que as pessoas podem ser e fazer a partir dela. Então, toda a atenção de Sen é no uso que as pessoas dão para este aspecto. Você pode ter um salário muito alto, mas se o seu nível de educação é baixo, possivelmente irá comprometer a sua saúde, porque não irá saber utilizar seu dinheiro. E essa ênfase faz com que a educação seja uma questão-chave em todo o trabalho de Sen, como motor de promoção de desenvolvimento humano.


IHU On-Line – O senhor acredita que o nosso país tem liberdade, no sentido de promover o desenvolvimento?

Flavio Vasconcellos Comim –
Dentro da perspectiva de Sen, acredito que nós temos boas condições. A pobreza monetária no nosso país diminuiu; houve uma redução significativa de insegurança alimentar. Hoje, temos um percentual de crianças que estão na escola bem superior ao que nós tínhamos há duas décadas. E, apesar de ainda vivermos pouco – a nossa média é de 73,5 anos, houve um grande progresso, se analisarmos os últimos 30 anos. Então, melhorou. O grande problema é que melhoramos pouco. Para respeitar os direitos das pessoas sobre liberdades substantivas, segundo o que Sen diria, precisaríamos andar em passos mais rápidos. Existe progresso em termos individuais, mas muito tem que ser feito ainda. Nós não eliminamos uma herança histórica de um país do tamanho do nosso, com o tamanho dos problemas que o Brasil tem, em apenas uma geração.


IHU On-Line – Além de trabalhos referentes à fome e à liberdade, Sen realizou alguns estudos sobre a mulher. Quais foram as descobertas que o economista fez nesse sentido?

Flavio Vasconcellos Comim –
O principal texto do Sen se chama As mulheres que estão faltando, em que ele fez algumas pequenas contas demográficas e viu que na Ásia a relação entre homens e mulheres era mais baixa, quando deveria ser uma relação de 10.2 mulheres para cada homem, essa relação era 0.96, 0.98. Então, ele se deu conta que estavam morrendo mais meninas que meninos. Ele foi investigar por que isso estava acontecendo e registrou que tanto na China como na Índia, que foram os dois focos principais do trabalho dele, as meninas morriam por preconceito. Então, ele abriu uma caixa preta cultural que mostrou que na Índia, por exemplo, quando nasce uma menina, os pais veem como uma carga, porque eles vão educar, criá-la e irão entregar depois para trabalhar para outra família. Por outro lado, os meninos eram vistos como ativos. A falta de atenção às meninas nessa idade, até os cinco anos, fez com que a mortalidade infantil fosse muito alta, que houvesse uma descompensação demográfica e que mulheres estivessem faltando. Esse é o trabalho mais importante de Sen, apesar da questão do gênero sempre estar presente, em todos os trabalhos dele. Mas eu destacaria esse estudo das mulheres que estão faltando como um divisor de águas na questão do gênero na pesquisa dele.


IHU On-Line – O que caracteriza a “vergonha social”, apontada por Amartya Sen?

Flavio Vasconcellos Comim –
Sen resgata dentro do trabalho de Adam Smith  a ideia de que as pessoas têm um conjunto de necessidades que extrapolam o conceito de necessidades básicas. Então, ele recorre à teoria dos sentimentos morais para tratar a ideia de que o indivíduo é um ser muito mais complexo e completo, como ele dizia no início, em relação ao que ele é modelado normalmente pela ciência. A dificuldade principal é a de enxergar essa complexidade. Mas quando começamos a perceber a complexidade do ser humano, nós vemos que já no século XVIII, relato de Adam Smith, algumas pessoas tinham vergonha de sair à rua se não vestissem uma camisa de linho. No Brasil, nós temos relatos, logo após a escravidão, de pessoas que andavam com sapatos pendurados no ombro, como um símbolo, signo, de não sentir vergonha de ter sido escravo anteriormente. Hoje em dia, pessoas, mesmo pobres, usam camisa da Nike, do Barcelona, uma vestimenta que simboliza uma inserção social, que muitas vezes elas não têm. Então, Sen problematiza essa ideia de necessidade básica. Ele faz a mesma pergunta: “Você tem fome de quê?” Creio que, ao colocar essa dimensão mais complexa das necessidades básicas, ele faz com que termine essa dicotomia nas ciências sociais entre aspectos absolutos ou relativos da pobreza e da desigualdade, porque uma coisa que é relativa para um é essencial para outro. Ou seja, essa vergonha social, no fundo, tem nome e sobrenome para a pessoa que sente isso, pois afeta a sua dignidade.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Flavio Vasconcellos Comim –
Gostaria de dizer, num tom provocativo, que o trabalho do Sen ainda não aterrissou no Brasil. Suas pesquisas ainda não foram absorvidas pela política pública em nosso país. Continuamos medindo a pobreza da maneira como se media na década de 1950; permanecemos tratando a desigualdade em termos unidimensionais; continuamos vendo a educação apenas como item de mercado, de formação de capital humano; desconsideramos ainda todos os aspectos relativos à saúde, no sentido de sua produção, o envolvimento dos próprios cidadãos como parte não do problema, mas da solução, para o desenvolvimento humano. Os ensinamentos mais importantes de Sen, apesar de conhecidos na academia brasileira, ainda não aterrissaram na política pública e talvez este seja o maior desafio dos próximos anos: compreender melhor o que ele diz e dar um sentido de uso às ideias que sejam relevantes para o desenvolvimento do Brasil.

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