Edição 379 | 07 Novembro 2011

“Já temos uma filosofia brasileira”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

É preciso atentar para o uso precoce da denominação filósofo àqueles que se ocupam “com a história, a filologia e a justaposição eclética de textos”, assevera Ernildo Stein. Filosofar exige continuidade e produção de livros e volumes de investigação

“Talvez tenhamos chegado ao tempo em que as grandes questões tradicionais da filosofia possam ser tratadas de modo competente, mas nos deixam solitários, sem que com elas se abram as janelas para as questões da história, da sociologia, da política e da antropologia em geral. Saber coisas de filósofos e recitar textos e combinações de textos de Hegel, Husserl ou Heidegger, já não significa grande coisa na era da globalização”. A ponderação é do filósofo Ernildo Stein, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ele constata que ocorre a produção de “uma massa de titulados em filosofia e uma infinita produção de textos chamados filosóficos, mas motivados por obrigações externas, por rendimento acadêmico, e pressionados para performances vazias”. E completa: “Temos até agora poucos filósofos que se ocupam realmente com o conhecimento da comunidade científica. O que aparece são notas marginais, que servem mais para ornamentar o discurso empobrecido das individualidades filosóficas autossuficientes”. Em seu ponto de vista, “a filosofia exige uma continuidade que vai além de simples artigos e ensaios rápidos. Dela se espera ainda que os que estudam nesse campo produzam livros e volumes de investigação filosófica”. Contudo, observa, já se pode falar numa filosofia brasileira, inclusive internacionalizada. Stein destaca, ainda, a questão da inovação na filosofia, tema que intitula sua publicação mais recente, Inovação na filosofia (Ijuí: Unijuí, 2011): “na maioria dos campos de conhecimento, a inovação e os vetores da inovação não dependem tão fortemente das individualidades como na filosofia”.

Stein é graduado em Filosofia e Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Cursou doutorado em Filosofia na mesma universidade e pós-doutorado na Universität Erlangen-Nürnberg, Alemanha. Atualmente é docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e membro do corpo editorial das publicações Reflexão, Problemata, Natureza Humana e Ágora. Publicou dezenas de livros, entre eles Seminário sobre a verdade: lições introdutórias para a leitura do parágrafo 44 de Ser e Tempo (Petrópolis: Vozes, 1993); A caminho de uma fundamentação pós-metafísica (Porto Alegre: Edipucrs, 1997); Diferença e metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000); Compreensão e finitude (Ijuí: Unijuí, 2001); Introdução ao pensamento de Martin Heidegger (Porto Alegre: Edipucrs, 2002); Mundo Vivido: Das vicissitudes e dos usos de um conceito da fenomenologia (Porto Alegre: Edipucrs, 2004) e Seis estudos sobre Ser e Tempo (3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em quais aspectos Heidegger continua atual nos debates filosóficos?

Ernildo Stein – A atualidade de um filósofo deve ser entendida de dois modos. De um lado, o filósofo é atual pelas questões que levanta em sua época, e pela continuidade que elas podem ter através do tempo. Mas, de outro modo, o filósofo torna-se atual através de uma leitura renovadora de questões postas por ele em algum momento histórico, mas cuja importância somente é descoberta por uma nova leitura feita por pensadores que descobrem para ela um novo contexto e um sentido ainda não percebido.
Heidegger possui uma atualidade que sempre se renova desde a publicação de Ser e tempo, em 1927, tanto pelo número de questões que a obra contém (Tugendhat  acha que Ser e tempo é a obra principal do século XX, porque mais que qualquer outra levantou o maior número de questões importantes), como pela sucessão de uma grande quantidade de livros que o filósofo foi publicando durante o século XX. Possuo uma concepção particular da atualidade dos filósofos. Penso que um filósofo só pode continuar atual, num sentido profundo, quando elementos centrais de seu pensamento se constituem como um paradigma novo na história da filosofia. Com essa afirmação, não quero privilegiar o filósofo como um fenômeno único em seu tempo; pelo contrário, gostaria que Heidegger conquistasse uma epocalidade, isto é, que nós pudéssemos problematizá-lo com outros filósofos, e nele descobrir as fragilidades de qualquer pensamento na filosofia.

IHU On-Line – Que questões esse filósofo propôs que seguem “não resolvidas” ou ainda pertinentes?

Ernildo Stein – O que causou impacto no surgimento dos temas centrais de Ser e tempo foi justamente eles nunca terem sido analisados na tradição ocidental, e por isso não se tinham respostas para eles. Certamente o filósofo traz o estilo de quem faz muitas perguntas que termina não conseguindo responder e que o levam a mudar até de direção por causa dos impasses. Questões filosóficas podem receber várias respostas, mas isso não significa que elas estejam resolvidas. O importante é que elas continuem pertinentes. Entretanto, muitas perguntas não resolvidas pela fenomenologia parecem misteriosas porque em grande parte do século XX não se conseguiu separar de maneira adequada o alcance que tinha a fenomenologia para a filosofia de nosso tempo. Ela foi misturada com a metafísica e posta em conflito com ela, porque não se reconheceu o campo limitado em que se movia a sua interrogação. A fenomenologia não surgiu para resolver tudo na filosofia; ela trouxe algumas questões sem as quais a filosofia seria menos atual e estaria estagnada em certas áreas teóricas. Não olhemos para Heidegger como o pensador que conseguiu responder às perguntas da esfinge, porque na filosofia elas sempre se colocam de outra maneira.

IHU On-Line – Nesse sentido, como se situam as discussões sobre o fim da metafísica e a fenomenologia hoje?

Ernildo Stein – Num determinado momento da história da filosofia ocidental, a metafísica começou a ser considerada uma espécie de guarda-chuva que protegia todos os campos teóricos da filosofia e que defendia sua originalidade diante do resto do conhecimento. Hoje muitos estão em busca de um novo guarda-chuva para garantir essa unidade da filosofia, já que muitos falam no fim da metafísica. Mas Gadamer já dizia que nunca conseguiremos sair da metafísica, ainda que ele mesmo não a tenha trabalhado como um tema central. Heidegger, sim, fala de uma história do ser, que representaria uma sucessão de épocas, em que a metafísica dava um nome ao seu objeto principal, o ser. Mas, como nomes, essas épocas confundiam o ser com algum ente determinado, particular e superior. Quando então fala em fim da metafísica, Heidegger levanta a hipótese de que talvez estejamos chegando a uma época em que não se confunda mais a questão do ser com uma resposta através do apelo a um ente. Podemos lembrar a sua afirmação: “A superação da metafísica não é o fim da metafísica”. Mas cuidemos para não pensarmos que a fenomenologia vai ser a nova metafísica que não chegou ao fim. Temos até o título de um ensaio do filósofo, que nos pode fazer pensar essa questão: “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”.

Lembremos a afirmação de Heidegger de que “a fenomenologia pode desaparecer como movimento, mas ela deve continuar como tarefa do pensamento, mantendo o modo correto de perguntar” na filosofia. Gostaria ainda de observar que o ser do qual fala a fenomenologia não deve ser confundido com o ser da metafísica. A fenomenologia pensa o ser ligado à compreensão do ser, portanto, ligado ao modo finito do ser humano. Repito de novo: “Tão finitos somos nós, que precisamos do conceito de ser para pensar”. O ser da metafísica representa seu tema central desde os gregos. Heidegger apenas pensa que seu verdadeiro sentido foi encoberto na história do pensamento, e que esse fato pode ser tomado como tema central da interrogação filosófica. Podemos, portanto, fazer uma teoria do ser sem talvez entrar em conflito com o conceito de ser de que fala a fenomenologia.

IHU On-Line – Qual é o grande desafio de ser filósofo em nossos dias, considerando o contexto da técnica, do relativismo e da globalização da informação?

Ernildo Stein – Primeiro, convém deixar de lado o precoce uso de filósofo para quem se ocupa com a história, a filologia e a justaposição eclética de textos. Não quero fixar a data nem medir o nível de competência para que alguém possa carregar esse título. Afirmo isso um pouco como defesa de uma esperada modéstia que hoje a filosofia deve ter diante do pensamento e do conhecimento científico. É que eu dificilmente consigo separar alguém que apareça como filósofo de suas relações com a comunidade científica em geral. É que não há especialista em filosofia, no verdadeiro sentido, sem que sua atividade seja atravessada pela atmosfera que se produz hoje pela investigação em geral. Talvez tenhamos chegado ao tempo em que as grandes questões tradicionais da filosofia possam ser tratadas de modo competente, mas nos deixam solitários, sem que com elas se abram as janelas para as questões da história, da sociologia, da política e da antropologia em geral. Saber coisas de filósofos e recitar textos e combinações de textos de Hegel, Husserl ou Heidegger, já não significa grande coisa na era da globalização. No fundo, o que eu quero dizer é que não podemos trazer as questões fundamentais de nosso tempo, da técnica, da ciência, das novas tecnologias, de fora para dentro da filosofia. A filosofia deve ser posta de maneira tal que a questão da técnica se torne fundamental como, por exemplo, na obra de Heidegger. A mesma coisa acontece com o relativismo, nesse tempo de indigência e medo de afirmação de valores absolutos. É certo que nunca encontraremos no discurso filosófico sentenças definitivas, que abranjam a totalidade. Ainda não pensamos de maneira suficiente o enraizamento da filosofia nas formações históricas e culturais, para assim pensar o nosso tempo. Mas isso não significa que tenhamos uma resposta conclusiva algum dia, trazida por um gênio da filosofia, que conseguiu se aliar com o conhecimento científico. Não quero agora enumerar toda uma lista de temas, acontecimentos, questões éticas e políticas que certamente devem ser analisados e renovados diante dos desafios do novo milênio.

IHU On-Line – Em vez do domínio da certeza, o domínio da incerteza e do exercício de questionar. Essa seria uma definição adequada para a filosofia? Por quê?

Ernildo Stein – Para responder à sua pergunta, vem-me à memória um curso que dei a respeito da filosofia na Europa dos anos 1920. Trazia o título: Incerteza e risco. Nessa década, entre as duas guerras mundiais, em que a humanidade europeia lamentava seus milhões de mortos e já acompanhava o desenvolvimento dos irracionalismos em diversos campos da cultura e na organização social e política, aparecem muitos gênios na arte, na filosofia e na ciência. Diante do novo em nossa época, certamente também cresce a incerteza, sem falar dos riscos que resultam como consequência dos enormes avanços da aplicação do conhecimento – no homem, na natureza e no futuro do planeta. A filosofia tem se empenhado no registro e na meditação sobre essa nova era de interrogações. Mas ela está muito debilitada e atrasada para responder a essas novas interrogações. O que quero dizer com isso? Simplesmente que produzimos uma massa de titulados em filosofia e uma infinita produção de textos chamados filosóficos, mas motivados por obrigações externas, por rendimento acadêmico, e pressionados para performances vazias. É aqui que se coloca a pergunta que faço num livro sendo atualmente publicado com o título Inovação na filosofia. Penso que estamos diante de um sério desafio, de redescobrir uma filosofia, produto de séria reflexão, é verdade, mas aliada num diálogo de iguais com o conhecimento científico. Temos até agora poucos filósofos que se ocupam realmente com o conhecimento da comunidade científica. O que aparece são notas marginais, que servem mais para ornamentar o discurso empobrecido das individualidades filosóficas autossuficientes. Não vou me aprofundar nessa questão, da inovação na filosofia, porque estou ensaiando algumas modestas tentativas de pensar essa questão decisiva, da inovação na filosofia.

IHU On-Line – Quais são os principais limites e possibilidades da Filosofia que se faz no Brasil? Pode-se falar numa filosofia brasileira? Por quê?

Ernildo Stein – Não podemos negar que a expansão da filosofia na graduação e nos programas de aperfeiçoamento e pesquisa tem feito grandes avanços, sobretudo, com o apoio e a consciência dos órgãos de fomento. Esses têm ampliado recursos e negociado projetos de alcance profundo com os pesquisadores da filosofia. Se nos podemos lamentar é pela grande pobreza da produção dos programas em andamento e pela ausência de verdadeiros filósofos em diálogo com a ciência, responsáveis por esses programas. Não estou generalizando, mas apenas insistindo para que não se espere apenas inovação por parte de pessoas, mas com relação aos conteúdos e linhas de investigação dos programas. É verdade que a pressão por produção de quantidade tem levado a uma circulação de materiais muito frágeis para responderem às expectativas da comunidade científica em geral. Mas já temos certamente uma filosofia brasileira. E temos também essa mesma internacionalizada. Olho com certa ironia essa expressão “já atingimos um nível internacional”, como se a filosofia crescesse em importância somente por trazer esse adjetivo. Vamos preenchê-lo com sentido, através de nossa imaginação filosófica e consciência diante da inovação.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição