Edição 379 | 07 Novembro 2011

O mito da caverna e a liberdade humana

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Márcia Junges | Tradução Luciana Cavalheiro

Texto platônico continua extremamente relevante no século XXI, garante Jean-François Mattéi. Os filósofos podem beneficiar a humanidade ao se “retirarem” do mundo em seu imediatismo para liberar o “horizonte do sentido que lhes é comum” com os demais

Um texto cuja atualidade transcende a filosofia e impacta a ciência, a arte, o teatro e a literatura até nossos dias. Assim é o mito da caverna, de Platão, pertencente ao sétimo capítulo de A República. “A caverna simboliza o mundo das aparências, no qual os homens se encontram, e sugere que haja uma realidade que fundamente suas aparências fugindo de suas garras”, acentua o platonista francês Jean-François Mattéi. Explicando o sentido da alegoria, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, pontuou que “os homens procuram viver em um universo fantasmático e virtual, em vez de afrontar o mundo verdadeiro e real. Eles se desviam assim do ser final das coisas que lhe parecem desconhecidas ou perigosas, preferindo desse modo se entregarem à sedução das sombras, de imagens e de fantasias que não lhe exigem nenhum esforço. Todo o enredo do mito da caverna é então o da liberdade humana”. E completa: “A filosofia posterior ensinará a se libertar da dependência das aparências imediatas do mundo para tentar compreender de que forma elas são constituídas e como o mundo as produz racionalmente”. Em termos de importância filosófica, o pensador francês coloca Nietzsche e Heidegger ao lado de Platão, e argumenta que atualmente a política como “governo legítimo dos cidadãos por seus representantes” foi “absorvida” pelos viéses social e pela econômico. E dispara: “O homem político não ‘governa’ mais homens, ele ‘gerencia’ documentos, a gestão administrativa tendo tomado a frente ao governo político”.

Mattéi é professor emérito da Universidade de Nice-Sophia Antipolis e do Instituto Universitário da França. Escreveu, entre outros, L’Étranger et le simulacre. Essai sur la fondation de l’ontologie platonicienne (Paris: PUF, 1983), L’ordre du monde. Platon, Nietzsche, Heidegger (Paris: PUF, 1989) e Platon et le miroir du mythe. De l’Âge d’or à l’Atlantide (Paris: PUF, 1996). Em português, foi traduzido o livro A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno (São Paulo: Unesp, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em outra entrevista concedida à nossa publicação, o senhor menciona que a alegoria da caverna, de Platão, é o texto filosófico mais importante do Ocidente. Quais são os aspectos que tornam esse escrito tão atual e importante? Haveria algum outro texto que se aproximaria dele em termos de relevância?

Jean-François Mattéi – A alegoria da caverna, no livro VII de A República de Platão, é certamente o texto mais importante do Ocidente devido a sua influência sobre os filósofos futuros. Sua atualidade não se limita à filosofia, mas diz respeito também à ciência, à arte, ao teatro e à literatura. A caverna simboliza o mundo das aparências, no qual os homens se encontram, e sugere que haja uma realidade que fundamente suas aparências fugindo de suas garras. Essa dualidade da aparência e do ser, contracenando com a oposição das sombras na tela da caverna e das realidades exteriores ao mundo subterrâneo, comandará o pensamento europeu, depois o ocidental, na paixão pela verdade, no campo do saber teórico, mas também em sua exigência pela justiça, no campo da ação prática. O que Sócrates nos diz sobre isso? Que os homens sejam submetidos, desde o nascimento, a uma sequência contínua de projeções que os mantenham em sua dependência, como espectadores em uma sala de cinema seduzidos pelo desenrolar de um filme interminável que os impeçam de entregarem-se a outra atividade. Várias histórias do cinema salientam, inclusive, que o princípio do cinematográfico está fundamentado, de uma parte, sobre o mecanismo de projeções automáticas do mundo, como demonstra Stanley Cavell, filósofo americano, em The world viewed. Reflections on the ontology of film; e, por outro lado, sobre o desejo dos espectadores de se perderem no universo de ficções ilusórias que eles sabem não serem reais.

Sedução das sombras

Os homens procuram viver em um universo fantasmático e virtual, em vez de afrontar o mundo verdadeiro e real. Eles se desviam assim do ser final das coisas que lhe parecem desconhecidas ou perigosas, preferindo desse modo entregarem-se à sedução das sombras, de imagens e de fantasias que não lhe exigem nenhum esforço. Todo o enredo do mito da caverna é então o da liberdade humana. É necessário submeter-se ao jogo das aparências visíveis, que Platão chama de “sombras”, “ídolos” ou “fantasmas”, ou tentar compreender sua origem buscando o ser invisível que os produz? Essas sombras não são um puro vazio; elas são uma realidade incerta e passageira, que é preciso, entretanto, compreender para se libertar pelo conhecimento e pela ação.
A filosofia posterior ensinará a se libertar da dependência das aparências imediatas do mundo para tentar compreender de que forma elas são constituídas e como o mundo as produz racionalmente. Imaginemos um espectador, em uma sala de cinema, que está apaixonado por um filme ao qual está assistindo. Ele é livre, entretanto, de desviar sua atenção do filme para tentar compreender de que forma as imagens são produzidas por um aparelho de projeção que as reproduz através de uma fita, como elas foram filmadas antes pelo diretor, qual é o princípio óptico e mecânico do cinematográfico, e qual é, enfim, o principio físico de difusão da luz, não somente na sala de cinema, mas no mundo iluminado e nutrido pela energia solar.

O texto literário mais admirável que se aproxima do texto de Platão é certamente o romance argentino de Adolfo Bioy Casares , La invención de Morel, no qual o protagonista procura se integrar em uma sequência de ações filmadas por um inventor, chamado Morel, para conservar a memória de um tempo passado enquanto todas as pessoas filmadas em três dimensões vão morrer. O protagonista se apaixona pela imagem de uma mulher que não existe mais e que tem então apenas uma realidade virtual, ou fantástica, tão sedutora quanto etérea. Tudo acontece como se o espectador de um filme não quisesse mais sair da sala obscura, mas penetrar no filme que se desenrola na tela e viver para sempre na ilusão.

IHU On-Line – Que outros pensadores o senhor aponta como fundamentais no panteão filosófico?

Jean-François Mattéi – Os pensadores fundamentais no panteão filosófico são, a meu ver, Aristóteles, Plotino , Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche e Heidegger. Todos introduziram uma ruptura na história da filosofia mostrando-se fiéis à tradição que eles pregavam. Todos criaram ou uma escola, como Aristóteles, ou discípulos, como Plotino, ou um método, como Descartes, ou uma ética, como Kant, ou uma filosofia da história, como Hegel, ou um abandono da tradição idealista, como Nietzsche, ou por um “novo começo” no ser, em ruptura com a metafísica, como Heidegger.
O que faz a originalidade de um grande pensador, assim como a de um grande artista, é sua capacidade de conjugar a fidelidade com a filosofia, desde sua origem grega, e a novidade de um novo olhar sobre o que é. Como demonstrava Bergson , todos os filósofos captaram por uma intuição singular o ser e, a esse título, empenharam-se em explorá-la para encontrar a verdade. Mas esta intuição inexpressível foi expressa através de uma imagem mediadora: a da caverna, por Platão, do Um por Plotino, do cogito por Descartes, da lei universal por Kant, do círculo por Nietzsche, e da estrela por Heidegger (“Caminhar em direção a uma estrela. Nada além” – nossa tradução – escreve em Da experiência de pensar em 1947). E essa imagem mediadora, que comanda sua pesquisa e a construção do seu sistema, renova completamente o que exploraram os filósofos anteriores abrindo a via para as pesquisas futuras.

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