Edição 371 | 29 Agosto 2011

A heurística do temor e o despertar da responsabilidade

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Tom antecipador e “primazia do mau prognóstico” são característicos dessa heurística, afirma Jelson Roberto de Oliveira. Jonas acusa Kant de ter permanecido num modelo antropocêntrico de ética, por reconhecer a natureza como campo eticamente neutro e porque sua ética se limita ao âmbito humano

Um dos conceitos mais interessantes e polêmicos da obra de Hans Jonas. Trata-se da heurística do temor, erroneamente traduzida do alemão como heurística do medo, acentua o filósofo Jelson Roberto de Oliveira. “Trata-se de uma opção ética pelo mau prognóstico, de um antídoto contra a esperança sem sentido que pode afetar a ação humana no mundo. Em vez das probabilidades otimistas e idealistas, Jonas propõe utilizar-se o medo como forma de aprendizado e fazer da projeção da possibilidade da previsão negativa como condição para alterar a atitude do ser humano frente à natureza. Para o autor, é preciso utilizar as predições e os presságios apontados pelos saberes científicos modernos como forma de antecipação das condições desastrosas previstas caso o ser humano não altere as suas ações, em sentido de fomentar a responsabilidade”. E completa: “Trata-se de uma tomada de consciência do perigo, do risco do mal que adviria do uso perigoso do poder da técnica. Como a ameaça ambiental é geralmente imperceptível ou, pelo menos, de difícil acesso para o cidadão comum, a heurística poderia contribuir para revelar a real possibilidade do perigo e serviria de convocação. O temor tem, portanto, um tom antecipador e é a “primazia do mau prognóstico” que despertaria no ser humano a responsabilidade. O pesquisador fala também sobre a crítica de Jonas ao marxismo e a Kant. “Para Jonas o marxismo é um tipo utópico de proposta política que não se deu conta dos limites das condições materiais. Ao ser embasado numa esperança redentora através do materialismo, leu errado os limites da tolerância da natureza e da sua oferta”. Sobre o filósofo de Könnigsberg, Jelson assinala: “Em Kant, Jonas reconhece um vazio ético no que tange ao problema dos riscos de extinção do homem, de alteração de sua essência, de cuidado com a natureza, de uma marca profundamente antropocêntrica da ética, de uma ausência do problema do futuro e das exigências que ele traz em termos de garantia de sua factibilidade”. As informações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em Filosofia, especialista em Sociologia Política e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Jelson Roberto de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR com a tese Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011), A solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010) e Ética de Gaia: ensaios de ética socioambiental (São Paulo: Paulus, 2008). Leciona na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a heurística do medo, de Hans Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – Um primeiro ponto que deveríamos nos ater diz respeito à tradução desse conceito Heuristik der Furcht por heurística do medo. A palavra medo tem uma posição negativa na língua portuguesa que não traduz bem o alemão Furcht, que seria melhor traduzido por temor, que daria a ideia não de um medo passivo, mas de um receio fundado, de um medo acompanhado de respeito frente à força do mal eminente. Tem a ver com escrúpulo e com zelo e menos com a perturbação mental provocada por algo estranho e perigoso, como um sentimento desagradável frente ao desconhecido.
Dito isso, podemos afirmar que esse é um dos conceitos mais interessantes e, por isso mesmo, mais polêmicos da obra jonasiana. Trata-se de uma opção ética pelo mau prognóstico, de um antídoto contra a esperança sem sentido que pode afetar a ação humana no mundo. Em vez das probabilidades otimistas e idealistas, Jonas propõe utilizar o medo como forma de aprendizado e fazer da projeção da possibilidade da previsão negativa como condição para alterar a atitude do ser humano frente à natureza. Para o autor, é preciso utilizar as predições e os presságios apontados pelos saberes científicos modernos como forma de antecipação das condições desastrosas previstas caso o ser humano não altere as suas ações, em sentido de fomentar a responsabilidade. Catástrofes e calamidades serviriam, portanto, de mote para refletir e vislumbrar os desastres futuros que podem levar à extinção da própria humanidade. Esse prognóstico negativo não é um mero pessimismo ou um procedimento puramente instrumental. Mas a heurística do temor não deve ser entendida como uma palavra última da nova ética da responsabilidade proposta por Hans Jonas. Aliás, muitas confusões apareceram entre os intérpretes justamente por causa dessa má compreensão do conceito. A heurística, como hipótese adotada provisoriamente na forma de uma diretriz moral da qual se aprende tendo em vista a descoberta que se faz a partir dos eventos que despertam o temor, é um passo considerado indispensável na reelaboração do agir moral.

Tomada de consciência

Como princípio prático da sua ética, a heurística do medo remete à ideia de que o uso desse sentimento de preservar-se frente à ameaça possível. Quanto mais investirmos no conhecimento e na divulgação desse temor, mostrando as reais possibilidades e o quão terrível pode ser a ameaça, mais seria despertado o temor das pessoas e mais elas estariam dispostas a alterar as causas dessa ameaça. Para isso, a heurística também seria um princípio de conhecimento, porque sua efetividade e eficácia estariam ligadas justamente ao conhecimento (ou, se quisermos, à tomada de consciência em relação às causas, ou aos agentes e motivos geradores da crise, no sentido de domínio dos conhecimentos científicos que ajudam a realizar o diagnóstico e o prognóstico, bem como da reflexão ética a respeito da ação humana no mundo). Trata-se de uma tomada de consciência do perigo, do risco do mal que adviria do uso perigoso do poder da técnica. Como a ameaça ambiental é geralmente imperceptível ou, pelo menos, de difícil acesso para o cidadão comum, a heurística poderia contribuir para revelar a real possibilidade do perigo e serviria de convocação. O temor tem, portanto, um tom antecipador e é a “primazia do mau prognóstico” que despertaria no ser humano a responsabilidade.
Obviamente a polêmica do conceito logo salta aos olhos. Poderíamos resumi-la em duas perspectivas: uma primeira, que remete ao fato de que talvez seja problemático que uma ética do porte proposto por Hans Jonas necessite se fundamentar numa objeção adversária, ou seja, na representação de um perigo exterior pela via de um sentimento que altere e mobilize o sentido ético dos sujeitos; e uma segunda, que diz respeito ao fato de que, talvez, frente ao medo do absurdo fim (extenuado em vista do benefício de uso heurístico do temor) a consequência pode não ser a mudança das ações, mas justamente, pela gravidade do prognóstico, o despertar de um sentimento contrário, do tipo “por que mudar a minha atitude se tudo vai acabar mesmo”; ou ainda: ao exacerbar com vivacidade o perigo, ele pareça tão exagerado que soe justamente como impossível de acontecer realmente, porque tal perigo não tem nenhuma semelhança com a experiência real de mundo das pessoas. Seria, então, essa representação do medo algo inerte? Talvez, mas aqui incorremos no erro de interpretar, mais uma vez, o conceito como fundamento último. Jonas é claro: a heurística do temor é um antídoto contra as profecias de salvação (muitas vezes anunciadas, hoje em dia, pela boca daqueles que esperam da ciência, mais uma vez, uma solução milagrosa para os problemas ambientais que nos afetam, enquanto cruzam os braços para atitudes urgentes que indiquem a responsabilidade com o meio ambiente) e não um pessimismo em relação do futuro.
A “profecia da desgraça” não é a mesma coisa que a heurística do temor. Pessimista, diz Jonas, é a posição daqueles que julgam o existente tão ruim que não mereça ser considerado do ponto de vista do risco de sua extinção.

IHU On-Line – De que forma esse conceito se relaciona com a utopia da abundância, a que o autor se refere?

Jelson Roberto de Oliveira – O diagnóstico de Hans Jonas remete ao imenso poder humano representado pelo advento da técnica e à promessa de felicidade escondida sob o afã do progresso infinito e da esperança utópica por ele prometido. Para isso, o autor passa em revisão os ideais utópicos que encontraram na técnica e nos seus utensílios, a promessa de bem-estar. A abundância de recursos e de possibilidades oferecidas pela natureza torna-se, assim, o alvo da crítica jonasiana, de tal forma que poderíamos afirmar que o princípio responsabilidade aparece como antinomia dessa promessa, cujo maior prejuízo revela-se como dano à natureza. O que fundou a promessa da abundância natural em benefício do bem-estar absoluto e infinito do homem no mundo é a ideia de que a natureza era inviolável e, mais ainda, doadora de forças, energia e matérias-primas infinitas e ilimitadas para a construção da felicidade pela via do progresso tecnológico. As éticas do passado e os saberes disponíveis em outros tempos não foram capazes, por erros de interpretação da história evolutiva da vida, de diagnosticar de forma correta os limites da natureza em fornecer as bases dessa abundância desejada. O que descobrimos – agora já como dano e como prejuízo inalterável e, segundo muitos, irreversível – é que a oferta de alimentos, matérias-primas e energia por parte da natureza não é ilimitada, mas justamente o contrário. As condições materiais que fundaram as utopias de tipo desenvolvimentista, marxista, liberal, progressista, político-revolucionárias ou conservadoras (tanto faz, todas acreditaram na utopia da abundância), revelam-se agora como excessivas no que tange ao desgaste dos recursos. Não há abundância, portanto, quando a Terra é reconhecida em seus limites. Só poderíamos falar de abundância em sentido fraco, na medida em que reconhecêssemos a urgência do uso responsável desses recursos. A abundância é do tamanho da nossa responsabilidade!

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição