Edição 346 | 04 Outubro 2010

Perfil Vera Portocarrero

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Patricia Fachin

Filha de mãe religiosa e pai ateu, Vera Portocarrero sempre foi incentivada a estudar. Herdou do pai o gosto pela leitura e, ainda criança, leu A Odisseia, de Homero e A República, de Platão. Nascia aí seu interesse pela Filosofia. Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, ela foi influenciada pela obra de Foucault e dedicou-se ao estudo da psiquiatria no Brasil. Depois de quase trinta anos de contato com instituições religiosas de ensino, Vera declara-se “completamente ateia” e menciona: “Talvez por ter tido um pai ateu e uma mãe religiosa, esse foi um processo simples. Não tive conflito de consciência, como não tenho até hoje”. A professora esteve na Unisinos em ocasião do XI Simpósio IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, e contou um pouco de sua trajetória à IHU On-Line. Confira.

Origens – Sou carioca, nasci no Rio de Janeiro e tenho uma família grande; somos cinco irmãos. Meu pai é pernambucano e minha mãe é baiana. Tenho dois filhos e um neto de dois anos. Passei minha infância no Leblon, na praia, brincando e estudando muito. Sempre estudei em colégios de freiras porque minha mãe era religiosa e queria que os filhos tivessem essa formação. Por outro lado, meu pai era ateu e de esquerda. Aprendi com os dois lados da minha família.
A educação dos filhos foi interessante porque minha mãe era rigorosa com a disciplina, ensinava as atividades da casa, enquanto meu pai tinha uma posição marcante do ponto de vista intelectual. Ele comprava livros para nós e as duas primeiras obras que li foram A Odisseia, de Homero e A República, de Platão. Eram livros de bolso, da Ediouro e, nas capas, tinha uma figurinha, que na verdade era a mitologia grega. Li com a cabeça de criança.

Graduação – Estudei Filosofia na escola, além de grego e latim. Nesta época, tinha interesse em trabalhar com o ensino. Sempre fui professora. Cursei a graduação na PUC, em 1971, porque a Universidade Federal estava destroçada em função da ditadura. O curso da PUC era bastante ligado à Teologia, mas direcionei meus estudos para a Filosofia da Ciência, sem estar submetida à religião. Estudávamos escondido as teorias de Marx. Não existiam cursos sobre ele, então, fazíamos grupos de estudos com professores. Também estudávamos Nietzsche, Freud e Marx. Comecei a me interessar por Foucault justamente porque ele já vinha fazendo uma análise crítica desses pensamentos.

Estudos sobre Foucault - Fiz um curso sobre Foucault com Roberto Machado , o maior conhecedor da obra foucaultiana, e estudei As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987) – achava quase inacessível, mas interessante. Em 1975, Foucault foi à PUC ministrar cinco conferências. Fiquei impressionadíssima porque ele era carismático e culto. Foi convidado pelo departamento de Letras da universidade, que estava estudando o estruturalismo. Lembro que os estudantes estavam com expectativa de vê-lo falar sobre o tema. No entanto, a primeira frase que ele disse foi: “Eu não sou estruturalista, não vou falar sobre o estruturalismo”. E discursou sobre a invenção do sujeito, sobre Nietzsche.
Um colega muito rico, que morava na avenida Vieira Souto, convidou Foucault para jantar no apartamento dele. Foucault, num rasgo de socialização, disse que aceitava se o encontro fosse aberto para todos os estudantes. O apartamento lotou. Eu fui, mas ficava tímida perto do filósofo. Depois de sua morte, estive no apartamento dele, em Paris, porque fui estudar com o professor Roberto Machado. No mais, meu cruzamento com ele foi filosófico.

Fui estagiária de Roberto Machado, quando ele pesquisava a história da psiquiatria no Brasil, na PUC. Ele me ensinou a trabalhar com pesquisa de arquivos na linha de Foucault. Encantei-me definitivamente, tanto que meu trabalho de mestrado foi sobre a psiquiatria no Brasil. Fui muito influenciada por Roberto Machado e Foucault. No doutorado, trabalhei com a antipsiquiatria no Brasil. Essas pesquisas foram marcantes na minha vida porque depois eu fui trabalhar na Colônia Juliano Moreira. Apresentei uma conferência, eles pediram outra, mais um curso e fiquei lá por sete anos.

Mais tarde, recebi um convite para trabalhar na Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, com uma pesquisa sobre a história da medicina no Brasil justamente porque eu já tinha um estudo sobre a história da psiquiatria. Em função disso, comecei a estudar a microbiologia de Pasteur  e isso resultou no livro As ciências da vida. De Canguilhem a Foucault (Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009). Foi muito bom trabalhar na Fiocruz porque meus colegas eram das áreas de Sociologia e História; tive de aprender os temas que eles estudavam e, além do mais, continuar aprendendo o que eu tinha como propósito. Mantive sempre um referencial de influência foucaultiana. Em certa ocasião, organizei um evento sobre Foucault na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UERJ e o reitor me passou uma caixa de fitas inéditas com as conferências que Foucault ministrou na universidade, há alguns anos. Tenho esse material guardado na minha casa. Preciso fazer um projeto para abrir essas fitas de rolo e averiguar se tem algum tema inédito.

Leitura – Gosto da literatura de Machado de Assis  e Guimarães Rosa . Inclusive, esses são meus autores de cabeceira.

Lazer – Meu lazer número um é a praia. Gosto de aproveitar o dia, adoro o mar, caminhar, passear de barco. O Rio de Janeiro é um lugar excelente para quem gosta de ar livre. Gosto de cinema, mas não sou conhecedora. Também gosto de pintura e de brincar com meu neto. Um dos meus filhos está casado e o outro mora na minha casa. Ele fez um doutorado muito difícil sobre Geociências.

Religião – Depois de estudar 16 anos em colégios de freiras, dez numa universidade católica, tenho uma relação excelente com os religiosos, mas sou completamente ateia. Fiz Primeira Comunhão e casei na Igreja, mas não batizei meus filhos. Acho que a religião, para quem é religioso, é um bom recurso de vida, uma boa forma de lidar com as dificuldades. Eu arranjei outros meios.
Quando ingressei na universidade já não acreditava em Deus. Talvez por ter tido um pai ateu e uma mãe religiosa, esse foi um processo simples. Não tive conflito de consciência, como não tenho até hoje.

Sonhos – Não sonho com longevidade. Meus sonhos são muito simples, ou extremamente complicados: viver feliz, ter uma vida tranquila, cercada de pessoas que estão bem, ou seja, a idade do ouro: onde não tem doença, morte, necessidade para o trabalho. A idade do ouro já passou, é antes da humanidade: é o Éden.

Leia mais...

>> Vera Portocarrero concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Acesse no sítio do IHU (www.ihu.unisnos.br).

* Ciências, um conhecimento sempre inacabada, publicada na edição 345, de 21-09-2010, intitulada Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate.

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