Edição 338 | 11 Agosto 2010

Conhecer Jesus a partir dos não cristãos: uma proposta e um desafio teológico

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Graziela Wolfart e Moisés Sbardelotto

Para o teólogo vietnamita radicado nos EUA, Peter C. Phan, ser religioso hoje é ser inter-religioso. Assim, ser cristão exige viver, trabalhar, teologizar e partilhar experiências espirituais também com os não cristãos

Nascido no Vietnã, Peter C. Phan emigrou aos Estados Unidos em 1975, como refugiado. Por isso, ele é, por sua própria trajetória, um teólogo que compreende o atual período histórico e também religioso, buscando unir as reflexões orientais e ocidentais. Como exemplo disso, ele foi o primeiro presidente nascido fora dos EUA da Catholic Theological Society of America.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Phan aborda a "pessoa e a natureza" de Jesus como "uma forma concreta de viver uma vida verdadeira e plenamente humana". Se mais de 2 bilhões de pessoas na Terra se declaram “cristãs”, defende, não é por causa do apelo da Igreja como instituição, “com suas estruturas de poder e seu sistema jurídico”, mas sim por causa da própria “figura de Jesus”. Ou seja, "porque nele encontram um florescimento pleno da vida humana".

Por isso, além dos Evangelhos, como fonte para conhecer Jesus, e da Tradição, Phan sugere duas outras fontes. A primeira é mais conhecida, mas pouco lembrada: é aquilo que os teólogos asiáticos chamam de “magisterium dos pobres”. Ou seja, os economicamente pobres, mas também aqueles que são “marginalizados por quaisquer motivos, tais como raça, etnia, gênero e orientação sexual, cultura, tradição religiosa”.

Já a segunda fonte chega a parecer paradoxal, mas é justamente sobre ela que grande parte de seus estudos e obras versam profundamente: “as experiências dos crentes em Deus não cristãos (e dos não crentes)” também nos falam de Jesus. Por isso, para Phan, “ser religioso hoje é ser inter-religioso”. Nesse intercâmbio, “nossa fé permanece firme e será intensificada, mas nossa compreensão e as práticas da nossa fé serão desafiadas, corrigidas, complementadas, enriquecidas”.

Peter C. Phan é doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma e doutor em filosofia pela também pela Universidade de Londres, instituição na qual também obteve outro doutorado em teologia pastoral. Publicou diversas obras sobre vários aspectos da teologia, traduzidos em italiano, alemão, francês, espanhol, polonês, chinês, japonês e vietnamita. É o atual titular da Cátedra Ignacio Ellacuría de Pensamento Social Católico da Universidade de Georgetown. Além disso, já lecionou na Universidade de Dallas, na Catholic University of America de Washington e no Union Theological Seminary de Nova York, dentre outros. Neste ano, foi homenageado com o prêmio John Murray Courtney , a mais alta honraria concedida pela Sociedade Teológica Católica da América, por seu “extraordinário e distinto êxito em Teologia”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste a unicidade da intimidade filial de Jesus com Deus?

Peter C. Phan – Os quatro evangelhos sempre usam o título "Filho de Deus" ou "o Filho" para descrever quem é Jesus. Essa expressão é usada no Antigo Testamento para se referir aos anjos, ao rei e ao povo de Israel como um todo. Os Evangelhos Sinóticos relatam que Jesus se refere a si mesmo como o Filho (Marcos 13, 32; 12, 6; Mateus 11, 27; e Lucas 10, 22). Também se relata que, em sua oração a Deus, Jesus dirige-se a Deus como "Abba" (meu Pai). De acordo com o estudioso alemão Joachim Jeremias , Jesus foi o primeiro judeu a usar esse termo de familiaridade e intimidade com o qual as crianças chamam seus pais para se dirigir a Deus (Marcos 14, 36), em contraste com o termo mais formal Abbi usado nas orações judaicas públicas. Essa prática de Jesus foi posteriormente evocada para enfatizar a unicidade da relação de Jesus com Deus, exclusiva dele e não disponível a qualquer outra pessoa, e indicativa de sua natureza divina.

Esse argumento para a unicidade da relação filial de Jesus com Deus, baseado em seu uso do "Abba", não deve, contudo, ser exagerado. O fato de que o relacionamento de Jesus com Deus e de chamar a Deus como seu "Abba" é único dificilmente pode ser negado. No entanto, mesmo admitindo a verdade da afirmação de Jeremias, não significa que nenhum outro judeu, antes de Jesus e durante a sua vida, nunca tenha usado esse termo familiar para se dirigir a Deus em sua oração privada. O fato de que Jesus é lembrado por ter usado esse termo em sua oração a Deus não elimina, por si só, a possibilidade de que outros também usaram esse termo em suas orações privadas, mas não registradas. Com efeito, dada a inevitável prática de aplicar a Deus a nossa língua comum sobre as realidades humanas, é muito provável que palavras como "Abba" tenham sido usadas pelos judeus para se referirem a Deus. Além disso, a ocasião em que se relata que Jesus usou essa expressão foi na sua oração privada no Jardim do Getsêmani, a qual ninguém ouviu ou testemunhou e, portanto, o uso do "Abba" por Jesus, nesse caso, é uma reconstrução histórica de Marcos ou de seus informantes de fontes outras que não o conhecimento pessoal, baseado em uma testemunha real do evento.
 Além disso, deve-se notar que a maneira como cada pessoa se refere a Deus e O nomeia é inescapavelmente "única" e "exclusiva" dela, mesmo quando as mesmas palavras são usadas. Deus como Mistério infinito e amoroso não pode ser experimentado a não ser de maneiras diversas e únicas por cada indivíduo. Em outras palavras, minha forma de experimentar Deus é tão "única" e "exclusiva" quanto a de Jesus. O ponto aqui não é negar a originalidade e a unicidade da relação filial de Jesus com Deus, mas colocá-la dentro do contexto da experiência humana de Deus e relacioná-la ("relativizá-la") com esse contexto mais amplo.
 Em que, então, consiste a unicidade da relação filial de Jesus com Deus? De acordo com os evangelhos, a intimidade dessa relação repousa na total obediência de Jesus à vontade de Deus. Jesus é o "Filho de Deus", porque ele obedeceu à vontade de seu Pai, assumindo o papel do "Servo Sofredor". Como mencionei acima, o título de "Filho de Deus" é dado, no Antigo Testamento, aos anjos, ao rei e ao povo de Israel. No caso de Jesus, esse título está relacionado com o seu papel como Servo Sofredor, para realizar o plano de Deus de estabelecer o reino de Deus e salvar a humanidade. Em outras palavras, a filiação divina de Jesus – sua relação filial com o Pai – é definida em termos de sua obediência a Deus e de seu papel como Servo Sofredor, e não em termos de sua pré-existência eterna em Deus como o Logos. Esse ponto fica especialmente claro no evangelho de Marcos, embora também esteja presente em Mateus e Lucas. É só no Quarto Evangelho que a filiação divina de Jesus consiste explicitamente em sua eterna coexistência com o Pai e sua geração pelo Pai. Diz-se que Jesus é o único (monogenēs) Filho (Jo 1, 4.18; 3, 16) e que fez uma clara distinção (Jo 20, 17) entre Deus como seu Pai ("meu Pai") e Deus como nosso Pai ("vosso Pai").

IHU On-Line – Por que Jesus é atraente para as pessoas?

Peter C. Phan – O fato de Jesus ter atraído todos os tipos de pessoas ao longo dos últimos 2 mil anos não necessita de ênfase. Atualmente, mais de 2 dos 6 bilhões de pessoas na Terra se declaram "cristãs" – isto é, seguidoras de Jesus. As razões pelas quais esses dois bilhões de pessoas aceitaram Jesus como seu "Senhor e Salvador" são tão variadas e tantas quanto as próprias pessoas. Por mais diferentes que essas motivações sejam, podemos estar razoavelmente certos de que não residem no apelo da Igreja como instituição, com suas estruturas de poder e seu sistema jurídico. (A Igreja tem sido a razão pela qual algumas pessoas se recusam a se tornar ou a permanecer cristãs! Crimes recentes de vários tipos perpetrados pela hierarquia são mais do que uma prova disso.) Pelo contrário, o apelo encontra-se na figura de Jesus mesmo.
 Qual é, então, a atratividade de Jesus? Raramente é o Jesus tal como apresentado pelos dogmas cristãos, nas categorias filosóficas greco-romanas abstratas. É, ao invés, o Jesus como narrado nos evangelhos, com seus ensinamentos sobre como viver uma vida plena e verdadeiramente humana, o exemplo de sua vida dedicada ao serviço dos pobres e dos marginalizados até a morte, e seu amor e obediência profundos e incondicionais a Deus. Em outras palavras, as pessoas são atraídas por Jesus, porque nele encontram um florescimento pleno da vida humana. Notemos que não é "felicidade" tal como definida pela modernidade – satisfação autocentrada nas necessidades materiais, psicológicas e até mesmo espirituais – à qual Jesus se refere quando diz que dá "vida abundante". Muitos dos ensinamentos de Jesus são, na verdade, "palavras duras" que afirmam que uma renúncia total de si mesmo é necessária para sermos seus discípulos. Apesar desse ideal ético altamente exigente, muitas pessoas são atraídas a Jesus, precisamente porque encontram nele uma forma concreta de viver uma vida verdadeira e plenamente humana.

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