Edição 329 | 17 Mai 2010

Uma opção de vida mais organizada para os pobres

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Graziela Wolfart

A partir da experiência de produzir um documentário sobre uma igreja pentecostal, Marcos Sá Correa percebeu que, no fundo, as pessoas compravam ordem na vida ao pagar o dízimo 

Ao lado de João Moreira Salles, o jornalista Marcos Sá Correa fez, há dez anos, um dos melhores filmes sobre os pentecostais até hoje realizados no Brasil. Chama-se Santa Cruz e analisa a implantação da igreja pentecostal autônoma Casa de Oração Jesus é o General, na periferia carioca, em Santa Cruz. Para falar sobre essa experiência e sobre o que representou esse documentário para a compreensão do movimento religioso pentecostal, a IHU On-Line entrevistou por telefone o jornalista Marcos Sá Correa. Em suas respostas, ele lembra da experiência vivida e confirma uma hipótese que ele levantava há mais tempo: a de que “as pessoas compravam ordem na vida. Tinha toda a parte religiosa e mística, e isso não se discute. A adesão à Igreja, mesmo custando um dízimo, trazia um benefício mensurável para a vida das pessoas em termos de ordem familiar, o que para o grupo virava ordem pública”. Ele explica que a “busca de uma ordem terrena muda de maneira muito clara todos os lugares onde o pentecostalismo se instala. Não por acaso são áreas não só de pobreza, mas de desordem extrema. Essas igrejas, com todas as suas infinitas variações, no seu conjunto, oferecem uma opção de vida mais organizada para os pobres”.

Marcos Sá Correa é jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja e de Época, diretor do JB, de O Dia e do site NO.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como surgiu a ideia de fazer um filme sobre o pentecostalismo e qual a importância da obra no sentido de retratar esse filão religioso brasileiro?

Marcos Sá Correa - Esse documentário faz parte de uma série de seis episódios, que, naquela época, em 1999, eu comecei a imaginar, junto com João Moreira Salles , que é o documentarista. A série tentava ter uma linha de coerência, que era para mostrar reflexos do ano de 1500 na história do Brasil do ano 2000. E uma das coisas que começaram com o descobrimento foi a evangelização. Na época, eu viajava muito pelo interior, sobretudo no estado do Rio de Janeiro, e ficava impressionado com a velocidade de expansão do movimento pentecostal, e também com a maneira marcante como a pessoa, chegando em qualquer vilarejo do interior, onde nunca tinha estado, sobretudo em finais de semana, identificava, sem fazer nenhuma pergunta, quem eram os evangélicos do lugar. Eles estavam vestidos de maneira mais arrumada e carregavam uma bíblia. Isso me intrigava muito, porque contrariava tudo o que se convencionava no Brasil ao pensar sobre os pobres. Pobre era quem só podia receber, não tinha nada a dar, portanto era objeto de políticas quase sempre só assistencialistas. No caso do movimento evangélico, tínhamos o fenômeno da adesão espontânea a um tipo de religião que cobrava dízimo. Então o pobre estava disposto a pagar por alguma coisa. O que era esta “coisa”? Notávamos que o sistema político brasileiro também criou, em relação ao pobre, uma convenção pela qual ele se arruma melhor na desordem; quanto menos ordem for oferecida a ele, mais ele tem facilidade de arrumar as coisas na sua vida. Esse era o conceito de favelização que se propagou e que começa a ser discutido hoje, mas, durante vinte anos, foi mais ou menos canônico. Se deixasse o pobre com um mínimo de ordem social, com um mínimo de polícia, de administração pública, ele tinha mais chance de se arrumar na vida. Essa é uma longa discussão, mas tem por trás aquela ideia de que o Brasil é uma sociedade injusta, todos os instrumentos da sociedade são feitos para perpetuar a injustiça. Então, se esses instrumentos deixassem de influir na vida do pobre, ele se dava melhor. E o pobre contrariava tudo isso, aderindo a um movimento que exigia dele uma série de sacrifícios que, no conjunto, representava uma enorme disciplina. Isso me chamava atenção, mas nunca tinha parado para pensar nisso, era só curiosidade que me batia no curso de várias viagens.

O começo

Queríamos fazer um documentário no qual nós interviéssemos muito pouco. Decidimos acompanhar uma igreja que estivesse nascendo e ver o que acontecia com a vida das pessoas que estavam aderindo a ela. Evidentemente, isso incluía restrições. Era uma igreja pobre, dos pobres, pequena, num lugar afastado do Rio de Janeiro. Foi difícil escolher, porque eu tinha uma recomendação de encontrar um pastor para acompanhar. Custei a descobrir qual o método para encontrar uma igreja nascendo. Fui informado que uma das maneiras mais fáceis era procurar na Junta Comercial. Como essas igrejas não tinham nada para se institucionalizar, não tinham uma cúria, uma hierarquia, elas geralmente se oficializam registrando a casa nova de oração como um estabelecimento. Era incrível, mais de uma igreja por dia se cadastrava na Junta. Entrevistei uns dez casos diferentes e acabei escolhendo o pastor Jamil, porque ele me pareceu o mais simplório e sincero, parecia mesmo dedicado àquilo, com poucas características que confundissem ele com a caricatura do pastor de TV. Inclusive ele era pouco eloqüente, e tudo isso me pareceu conveniente. Nos plantamos lá dentro, passamos a ser tão frequentadores da igreja e das casas das pessoas que, curiosamente, por mais que uma filmagem implique numa parafernália grande de gente, som, luz, nós éramos tratados como se fôssemos uns deles. Depois de um tempo, eles não posavam para a câmera, não faziam nada ou quase nada porque nós estávamos ali. Isso foi muito bom. 

Comprar ordem na vida

Outra coisa que me trouxe satisfação pessoal é que a hipótese, sem forçarmos nada, estava retratada. E minha hipótese é de que as pessoas compravam ordem na vida. Tinha toda a parte religiosa e mística, e isso não se discute. A adesão à igreja, mesmo custando um dízimo, trazia um benefício mensurável para a vida das pessoas em termos de ordem familiar, o que para o grupo virava ordem pública. Então, a mulher do bêbado conseguiu que o marido deixasse a bebida, ele arrumava emprego, e, meses depois, a vida daquele grupo estava melhorando. Como eles têm a necessidade e a imposição de ler a Bíblia, víamos grandes esforços de alfabetização para lê-la, pois se trata de um texto complexo. Eles tinham alfabetização própria. A leitura regular da Bíblia fazia com que eles tivessem um vocabulário muito mais rico do que se esperava encontrar naquele tipo de população. De fato, era um grupo social que não estava organizando só uma igreja. A igreja era organizada num mutirão e, por sua vez, ela organizava a vida cotidiana daquele grupo de pessoas.

IHU On-Line - Quais as principais marcas da pregação da igreja pentecostal autônoma Casa de Oração Jesus é o General?

Marcos Sá Correa – Sendo uma igreja pentecostal, havia uma evidente necessidade de mostrar que a pessoa estava recebendo a graça da glossolalia. Eles começavam a falar em línguas. Não digo que aquilo era insincero, mas era um esforço de autoconvencimento. Não levanto sequer a hipótese de estarem fazendo aquilo para a câmera. Estavam fazendo isso para o grupo, para os outros, para mostrar que ali a graça estava presente. Outro elemento da pregação que me parecia muito marcante é como apareciam espontaneamente declarações como “eu não pagava a luz, tinha gato, mas tirei o gato da minha casa”. As pessoas tentavam traduzir a doutrina em atos concretos. Isso aparecia toda a hora em pequenas histórias, e não eram provocadas, surgiam naturalmente durante o culto.

IHU On-Line - Como justificar que a igreja tenha escolhido Santa Cruz, na periferia carioca, para se instalar, ou seja, em que sentido o contexto e o cenário locais foram favoráveis para ela?

Marcos Sá Correa - Essa igreja se propagava de maneira mais geral nas periferias do Rio de Janeiro. Eu estive em dez periferias diferentes, em dez favelas de periferia, onde o movimento era mais forte. Acabamos ficando em Santa Cruz por causa do pastor Jamil, porque o momento era muito bom, a igreja estava nascendo naquele instante. O que lembro ter me impressionado foi, durante a minha primeira conversa com o pastor, que as pessoas, os vizinhos interrompiam ele a toda a hora, sobretudo as crianças, para perguntar ou pedir coisas. Eu achava que estava diante de uma pessoa que tinha uma relação realmente boa com aquele grupo.

IHU On-Line - Como o senhor define o impacto da religiosidade pentecostal nas periferias das grandes cidades?

Marcos Sá Correa – Essa busca de uma ordem terrena muda de maneira muito clara todos os lugares onde o pentecostalismo se instala. Não por acaso são áreas não só de pobreza, mas de desordem extrema. Essas igrejas, com todas as suas infinitas variações, no seu conjunto, oferecem uma opção de vida mais organizada para os pobres.

IHU On-Line - O que mais lhe impressionou pessoalmente na experiência de contato com os fiéis e os líderes da igreja?

Marcos Sá Correa – Foi uma convivência longa, em muitos casos com pessoas de vida muito difícil. O que mais me impressionou foi ver o esforço imenso que as pessoas faziam para se distinguir como gente ordeira moradora da favela, apesar de toda a falta de oferta e de soluções sociais para seus casos. Era todo um movimento de criar uma identidade, que era marcada pela diferença. Por outro lado, essa diferença não era perseguida pelos outros, mas tolerada.

IHU On-Line - Como o senhor descreve o pastor Jamil e como sua personalidade se relaciona com a postura do pentecostalismo?

Marcos Sá Correa – O pastor era um ex-operário que se converteu porque sofreu um acidente. Ele trabalhava com metalurgia pesada e caiu numa caldeira, que, naquele momento, por erro, estava desligada, e ele não sofreu nada. Achou que tinha sido salvo por um milagre e resolveu dedicar a vida a isso. Até onde minha vista alcançou, ele não tirava nenhum benefício monetário da igreja. Ele fazia arrecadações muito modestas, e elas aparentemente se convertiam em ações para a igreja, como festinhas e pintura da casa. Ele não parecia ter qualquer outro interesse naquilo. Era uma pessoa de tamanha sinceridade, o que achávamos curioso. Não estou dizendo que as outras pessoas estivessem representando, mas acredito que tivesse um alto grau de autossugestão, pela frequência com que elas começavam a falar línguas. Ele dizia: “eu não tenho essa graça, nunca tive”. E não fingia nada. Era um leitor da Bíblia, não se metia a interpretações muito elaboradas. Era uma pessoa simples, e essa simplicidade me atraiu originalmente para ele, pois acho que o pastor de televisão já tem um estereótipo. Se fosse muito falante, eu teria medo que esse personagem se confundisse com o que já temos demais. Com o Jamil foi o contrário. Ele jamais iria fazer grandes piruetas. Apenas tocava aquilo dia e noite com grande afinco, sem malabarismos verbais. Era alguém convincente.

IHU On-Line - O senhor sabe se a igreja ainda existe?

Marcos Sá Correa – Existe, sim. Mantemos contatos telefônicos eventuais com o pastor Jamil. A igreja é muito difícil de achar hoje, porque, há dez anos, a favela estava nascendo, e, hoje, ela é grande. Depois da montagem final e antes da exibição para qualquer outro grupo, nós exibimos e discutimos o documentário com eles, que aprovaram, gostaram. Foi exibido na igreja e, na época, os prêmios que o documentário ganhou que envolviam dinheiro foram doados para a igreja.

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