Edição 326 | 26 Abril 2010

A paranoia em torno da pedofilia

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Jornalista francês Philippe Di Folco alerta para os “mecanismos de prudência” instalados para combater a pedofilia. É preciso ter bom senso, acentua. As pornografias não interferem sobre os delitos sexuais, analisa.

Não se pode generalizar quando o assunto é pedofilia, acentua o jornalista francês Philippe Di Folco, em entrevista exclusiva, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. É preciso julgar caso a caso já que “cada ser é um percurso singular, cada humano é uma história única, que é uma acumulação de encontros, de discrepâncias, de pulsões, de impulsos para diversas formas de conhecimento, reconhecida como mais ou menos útil”. Ele alerta para a verdadeira paranoia que se criou em torno do tema. Mecanismos de prudência estão instalados por toda parte, destaca, “para evitar todo risco de ‘derrapagem” e, por decorrência, todo risco de contato simplesmente linguístico”. Tal preocupação não é salutar, diz Di Folco: “as crianças necessitam, para tornar-se adultas, de um freio, mas também de ver o mundo de verdade, de correr risco, de aprender o que é o risco, o perigo, e, portanto, a vida”. Quanto à relação entre pedofilia e pornografia, ele questiona: “Como compreender as amálgamas entre o que é da ordem da ficção, nutrindo-se de fantasmas, de imaginários sexuais, e o que efetivamente tem lugar, portanto, fatos, em termos de direito comum, isto é, o abuso sexual contra o menor?” Em sua opinião, as diferentes pornografias “não interferem mais sobre o aumento, ou não, dos delitos sexuais contra o menor do que um filme de gângster influencia sobre os ataques à mão armada”.

Philippe Di Folco é o organizador de Dictionnaire de la pornographie (Paris: PUF, 2005). É escritor e ensaísta.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que significa a palavra pedofilia? É “amar crianças”, “gostar de crianças”, ou o “prazer de ter relações sexuais com elas”?

Philippe Di Folco - Esta palavra “pedofilia”, em vista de sua arqueologia, é uma “patologia verbal”, saída dos estudos proto-psiquiátricos dos anos 1880, ou se quiser, é uma invenção linguística que deu lugar a um abuso de linguagem homologada pelo uso corrente (um lugar comum, um clichê). Ela nasceu da aliança de duas raízes gregas: pais, paidos, significando “criança” e philein, “amar por amizade”. Em meados do século XIX, a criança e o adolescente obtêm um status social: eles existem, são vistos, se pensa neles em termos de direito, de obrigação (Kindergarten, escola pública elementar obrigatória etc.). De fato, na língua francesa (não sei dizer para as outras línguas), não existe nenhuma palavra para expressar “o desejo de um ato sexual com uma criança”, sabendo que este desejo seria condenado, já que isso significaria instaurar um policiamento dos fantasmas e dos sonhos, como em qualquer romance de antecipação (assim, é ridículo condenar as obras de René Scherer , de Tony Duvert , ou de Gabriel Mazneff).

A partir dos anos 1950-60, conceitos saídos do Direito e da Lei, da Religião, da Psicanálise, apelam a termos tais como violação, abuso, desvio e, por vezes, de maneira eufemística, achego e perversão. Este regime jurídico-linguístico comum, visa, pelo menos no Ocidente, ou antes, na esfera euro-americana, a proteger os menores, isto é, os humanos que não atingiram a idade da maioridade sexual (que é diferente da maioridade cidadã: nos Estados Unidos até há três graus de maioridade: 16 anos para a condução de automóveis, 18 anos para a votação e o sexo, 21 anos para o álcool). O que significa esta “idade da maioridade”? É o momento em que se estima que um indivíduo seja capaz de tomar uma boa decisão por ela mesma, a qual não ponha em perigo sua saúde física e mental. Mas tudo isso está longe de ser racional e sofre numerosas exceções. Por que o Estado deveria incumbir-se, preocupar-se com nossos jovens corpos? Com que objetivos? E o que é de fato essa saúde mental? Existiria um modelo perfeito para o qual cada uma e cada um deveria tender, o do “cidadão responsável e bom pai / boa mãe de família”? Vê-se bem, pelos fatos, que não.

IHU On-Line - Em sua relação com as crianças, a pessoa qualificada como pedófila põe em prática seus desejos. De outro lado, certos aficionados à pornografia parecem ávidos, através de filmes, de tais representações. Como entender esse limite que separa os fantasmas de sua passagem ao ato e, mais especificamente, de que ato se fala aqui, como por exemplo, o de alguém que não pode decidir por si mesmo?

Philippe Di Folco - As pornografias, aqui consideradas como visuais, obedecem à oferta e à demanda: existe uma demanda de representações, de ficções pedófilas, portanto de atrizes / atores, de realizadores e de produtores para efetivamente produzirem tais ficções que, sob a forma de produtos visuais (DVD, site da Internet, revistas impressas) aparecem no mercado. O mercado absolutamente não é unificado ou unívoco: por exemplo, as sexualidades japonesas (ou seus códigos sexuais) diferem das outras esferas sexuais simbólicas: pense no fantasma da “filhinha falsamente inocente” etc. Numa mesma ordem de ideias, os códigos evoluem com o tempo: na Euro-América, Lewis Carroll , se ele vivesse hoje, seria, sem dúvida, qualificado de pedófilo (de fato, ele o foi, ele o diz em suas cartas, no sentido de 1880: “amizade/amor pelas crianças”).

É preciso, além disso, distinguir as encenações pedófilas (falsos corpos adolescentes etc.) das verdadeiras produções de caráter pedófilo que, pessoalmente, eu jamais vi. É um pouco o mesmo problema que o “snuff movie”: se está entre o rumor, a lenda urbana e a realidade de um mercado liberal onde tudo parece possível. Eu não digo que tudo isso não existe, eu digo simplesmente que aquela ou aquele – e isso, mesmo que essa pessoa seja menor – que quer ver material pedófilo o obtém sem dúvida mais facilmente do que há um século. E agora, o que fazer?

Como compreender as amálgamas entre o que é da ordem da ficção, nutrindo-se de fantasmas, de imaginários sexuais, e o que efetivamente tem lugar, portanto, fatos, em termos de direito comum, isto é, o abuso sexual contra o menor? Creio que é preciso confiar em nossas democracias, em seus sistemas jurídicos que sabem julgar os fatos e, portanto, gerenciar caso a caso: por exemplo, nossos jurados deliberam em segredo, e é por aí que nos aproximamos o mais possível da noção do justo. Isso é paradoxal, mas serve para se opor à vingança popular, ao linchamento, aos julgamentos do “levar a melhor”, aos amálgamas veiculados por certa imprensa populista... É preciso crer na sociedade quando ela é capaz, graças às ferramentas fundamentais que são as assembleias eleitas, os juízes independentes, os advogados, os jurados populares, e um direito capaz de evoluir pela jurisprudência, de contrapor-se a esses amálgamas e assim evitar que seja aviltada ou empregada exageradamente a noção de pedofilia, ou de ser confundida com as pornografias.

IHU On-Line - Numa entrevista anterior para nossa publicação, o senhor declarou ser errônea a ideia de que a pornografia conduz a uma argumentação dos atos de pedofilia. Por quê?

Philippe Di Folco - Eu trabalhei nos anos 2003-2005, durante a elaboração do Dictionnaire de la pornographie (Paris: PUF, 2005), com pessoas incumbidas da vigilância sobre as redes eletrônicas na França para tudo o que liberasse representações de caráter pedófilo comprovado. Discutindo na ocasião com esses serviços de controle estatais, e também com pesquisadores especializados nas sexualidades (Ph. Brenot , A. Giami ), e tendo frequentemente contatos com juristas e filósofos do direito (R. Ogien ), continuo dizendo que as diferentes pornografias, tais como elas se manifestam hoje, em sua amplitude, sua rapidez de circulação, seus delírios, não interferem mais sobre o aumento ou não dos delitos sexuais contra o menor do que um filme de gângster influencia sobre os ataques à mão armada. Não é George Clooney  com Ocean 13 que explica o aumento dos arrombamentos, nem é a série Saw que explica o fato de ainda haver assassinos em série. Nem mesmo menciono a série televisiva Dexter!

IHU On-Line - Você escreve que não se pode pensar a pornografia em termos de “pânico moral”. É possível dizer a mesma coisa sobre a pedofilia? Por quê?

Philippe Di Folco - A locução “pânico moral” é empregada pelo filósofo Ruwen Ogien para intitular sua obra publicada pela editora Grasset em outubro de 2004. Este estudo, muito preciso, está ligado ao seu precedente ensaio Penser la pornographie (2003). Ogien mostra que a pornografia visual provoca reações de enlouquecimento e, eu cito “que a partir do momento em que se aceita [...] os princípios de uma ética minimalista, não existe nenhuma razão para estigmatizar a pornografia visual como um ‘gênero’ imoral” (LPM, 10-11). A pedofilia enlouquece, é o mínimo que se pode dizer: ela provoca grandes títulos na imprensa (caso Outreau, resenha pedofílica austríaca, caso dos padres irlandeses e do Vaticano etc.), ela inquieta, pois, no coração do lar, os pais e as crianças e, no terreno público, as instituições educacionais e repressivas.

O fato de que, durante séculos, em Atenas, velhos professores tinham o dever de se ocupar sexualmente de seus alunos-garotos antes que eles se tornassem “Andrei”, isto é, homens (barbeados, em idade de se casar e de combater, de assumir a responsabilidade de um lar), não faz do filósofo ateniense um monstro, não macula em nada a dimensão moral do pensamento antigo. O fato de que R. Polanski  tenha dormido com uma jovem moça de 13 anos, em 1977, não faz deste cineasta um monstro e não condena sua obra à execração pública (ou à “morte civil”). O fato de que, no segredo do lar, crianças durmam com seus pais, como é o caso na Itália, por exemplo, não leva a se julgar dito lar como ninho de uma série de atos sexuais. Kant  reivindicava a neutralidade de julgamento ante as maneiras de viver pessoais e se abstinha de toda justificação religiosa ou metafísica. Eu digo simplesmente que se devem evitar os amálgamas, as generalidades, colocar todo o mundo num mesmo saco, notadamente os pais: é preciso julgar caso a caso, cada ser é um percurso singular, cada humano é uma história única, que é uma acumulação de encontros, de discrepâncias, de pulsões, de impulsos para diversas formas de conhecimento, reconhecida como mais ou menos útil.

IHU On-Line - O que a atual classificação de pornografia e pedofilia diz sobre a sexualidade e as “escrituras do corpo” do sujeito no início do século XXI?

Philippe Di Folco - Eu digo com bastante frequência: lembrem-se de sua infância. O que vocês sentiam quando, pelos 7 ou 8 anos, estavam no meio de uma reunião de adultos que se pavoneavam? Você sentia uma impaciência em crescer, em se tornar como eles? É o que mostra Almodóvar  em La mauvaise éducation (A má educação): no final das contas, não houve morte de ninguém, o pai Manolo não matou ninguém, e a criança, seu corpo, conheceu o desejo, depois o reconheceu, aprendeu a lidar com ele, a se educar, a crescer. A coisa que bloqueia é instalar sistemas de controle para evitar, não importa a que preço (inclusive em nome das liberdades fundamentais), e impedir todo ato que tenderia a tornar-se pedófilo. Assim, imagine-se apenas, num jardim público, com crianças brincando sob a vigilância de seus pais. Você decidiria falar com uma criança? Creio que, bem em breve, isso não será mais possível. Mecanismos de prudência quase paranóicos se instalam por toda parte para evitar todo risco de “derrapagem” e, por decorrência, todo risco de contato simplesmente linguístico. Ora, as crianças necessitam, para tornarem-se adultas, de um freio, mas também de ver o mundo de verdade, de correr risco, de aprender o que é o risco, o perigo, e, portanto, a vida. O fechamento, o contingenciamento das crianças, do lar à escola, passando por centros esportivos - será isso o que nós queremos? É de causar espanto que muito cedo a criança, e depois o jovem adolescente, vá procurar na Internet “foros”, lugares de socialização, experiências, meios a fim de conhecer seu corpo, sob risco de pô-lo em perigo?

IHU On-Line - Qual é seu ponto de vista sobre a opinião pública em referência à pedofilia?

Philippe Di Folco - Uma vez mais, é muito difícil julgar globalmente a opinião. As sondagens nada provam. Nem os grandes títulos da imprensa e, ainda menos um “caso”. Recordemos que, na França, em 1973, por ocasião do caso Bruay em Artois, suspeitou-se de um notário local que teria violado e matado uma adolescente: imediatamente, segundo o contexto sócio-político da época, isso se tornou o “crime dos burgueses” contra os filhos de operários. Nem Marx , nem Emile Zola  jamais exigiram tanto! Em 1898, em seu Eu acuso!, quando ele fustiga o antissemitismo consubstancial de uma época, mas também e sobretudo o nacionalismo histérico, o ódio antialemão que nos deveria conduzir à carnificina de 1914-18 (e ao massacre de milhões de jovens euro-americanos), em suma, quando ele, o escritor, se agarra ao dispositivo perverso de uma sociedade cegada por crenças, pelo fanatismo, pelo pânico, o qual foi sabiamente mantido pela ideia de revanche, de desforra, se está num grande momento de puro pensamento midiático. Daquele pensamento que modela, que modifica o decurso da História e que é, e isso eu afirmo, fundamentalmente pedo-criminosa: é sempre o jovem que deve combater e, portanto, morrer para proteger a retaguarda, ou seja, os velhos. Em casos de fome, é o filho que marcha primeiro. As usinas absorvem o trabalho dos filhos e, portanto, suas jovens forças.

Tenho confiança nos espíritos clarividentes de nossa época. Sempre os haverá. Tento, de minha parte, permanecer vigilante. E, para retomar a advertência de Fritz Lang  no final de M le Maudit, M o Maldito: “Presto muita atenção ao meu filho”, isso quer dizer que eu creio no cuidado, que eu não posso não cuidar do ser que me é mais caro, meu filho, com o qual eu assinei um pacto tácito, o de educá-lo, de ajudá-lo a tornar-se autônomo, forte, livre. Há as palavras, as promessas que se fazem, mas há acima de tudo os atos: a filosofia do cotidiano deve ser: “quando dizer é fazer”. Zola, com seu Eu Acuso, é um dos grandes momentos de “dizer é fazer”.

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Confira outras entrevista concedidas por Philippe Di Folco à IHU On-Line.

* Pensar a pornografia sem pânico moral. IHU On-Line número 173, de 27-03-2006.

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