Edição 326 | 26 Abril 2010

As marcas indeléveis da pedofilia

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Márcia Junges | Tradução: Benno Dischinger

Vítimas dessa violência carregam para sempre problemas com sua sexualidade, acentua o psicanalista Nazir Hamad. Aos adultos cabe ajudar a criança a socializar suas pulsões; inocência infantil é fonte de atração para o perverso.

“O adulto casto deve socializar as pulsões da criança quando esta se deixa ultrapassar. O adulto casto, tanto mais quando se trata de seus parentes ou de um padre, deve ajudar a criança a expressar com palavras o que lhe acontece. Ele deve educá-la para o respeito de seu corpo e para o respeito dos corpos dos outros”. As afirmações são do psicanalista libanês radicado na França, Nazir Hamad, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, “quanto menos a criança sabe, mais ela atrai o perverso”. Os efeitos da pedofilia na vida da criança molestada são indeléveis. “Essas sequelas se traduzem frequentemente por dificuldades em ter uma vida sexual normal, mas, sobretudo uma interferência de marcas simbólicas que nos inscrevem como membros numa cultura e numa comunidade humana. Em outros termos, a maior dificuldade para elas é de se situar quanto às gerações e quanto ao elo de parentesco”. A respeito da polêmica recente em torno da pedofilia e da Igreja, Hamad afirma que esta é uma instituição composta por homens falíveis, ainda que consagrados a Deus. “É agora necessário, mais do que nunca, que a Igreja reveja sua posição referente ao celibato”.

Nazir Hamad é especialista na área de adoção de crianças, e psicanalista da Association Freudienne Internationnale (AFI). Atuou durante anos junto à ASE (Action Sociale à l’Enfance), órgão francês responsável pela emissão dos certificados que orientam a habilitação dos candidatos à adoção. Escreveu, entre outros, A criança adotiva e suas famílias (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004) e Um homem de palavra (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que os atos de pedofilia não são, necessariamente, obra de alguém perverso?

Nazir Hamad - O perverso é aquele que tem uma relação particular com a lei. Entendemos por lei, a lei que rege o interdito do incesto e a diferença de sexos. Ele não aceita que haja algo que regule a relação entre as pessoas e entre os sexos e as gerações. Ele quer organizar o mundo a serviço de seu deleite. O fetichista, por exemplo, não aceita a ideia que uma mulher seja desprovida de falo. Sua sexualidade, bem como seu gozo, organiza-se em torno de um objeto que vem encobrir para ele a ausência do pênis na mulher. Um objeto qualquer, calçados, uma meia, um pé ou sei lá o quê, vem ocupar para ele a função de véu que cobre a castração da mulher. Seu fetiche organiza para ele o chamariz de sua não castração. A criança é a vítima típica para o pedófilo, pelo fato de seu não-saber sobre a sexualidade genital, e pelo fato de que ela esteja em uma relação de confiança com o adulto. Seu não saber sobre o sexo, seu corpo que se deleita em seu contato com o corpo maternal; seu desejo de se oferecer como objeto de deleite a seu Outro maternal faz com que este corpo seja o primeiro receptáculo das emoções que são, ao mesmo tempo, sensações, mas também a matriz da linguagem. A mãe sabe colocar limites a este gozo e também sabe significar que seu amor por ele exclui o desejo em seu sentido sexual. Seu desejo vai para o homem que ela ama, seja ele o pai ou não. A mãe perversa cultiva este gozo na medida em que ela confunde amor e desejo.

É justamente neste plano que a frase de Jesus “deixai vir a mim as crianças” é particular. Dizendo isso, Jesus é supostamente casto. Seu amor exclui forçadamente seu desejo. Os pintores, depois que a pintura invadiu os muros de nossas igrejas e catedrais, nos apresentam crianças, seja o menino Jesus ou os anjos como pequenos seres roliços, desnudados e se confiam aos padres e aos clérigos. Confiando, a criança se entrega ao adulto e tende a tudo receber do adulto como algo normal. Um pai que maltrata, por exemplo, acaba por fazer dos maus tratos algo normal na relação da criança com seu pai. Um padre que se deixa enternecer por seu desejo pela criança, acaba por habituar a criança aos seus toques como algo normal na relação do adulto com a criança. Pior ainda, suas atitudes não implicam sua responsabilidade somente enquanto pessoa, elas implicam este Outro a serviço do qual ele reza e recebe as crianças. É este Outro, Deus, que vem abonar o que acontece como mal à criança. E se, além disso, um padre que se confessa se vê perdoado, então é claro que para a criança e para qualquer um inscrito como membro da Igreja, Deus se lhe revela como um Deus perverso.

O homem é perverso

A Igreja não é perversa. O homem é perverso. O homem que é forçado a lutar contra seu desejo, sabendo, ao mesmo tempo, que enfrenta uma batalha antecipadamente perdida, não é senão um simples homem. A posição da Igreja é tanto mais ambígua que ela perdoa, ao invés de se questionar quanto ao próprio objeto do celibato. Quanto mais duro é lutar contra seu desejo sexual, mais os clérigos são impelidos a fechar os olhos sobre os comportamentos de seus homens. A Igreja, por aquilo que ela exige de seus padres, é vítima de sua visão errônea do homem e de sua relação com seu desejo. Um padre que age mal com uma criança não é forçosamente um perverso, mas um pobre sujeito que, por força de lutar contra seu desejo, acaba um dia por fazer uma passagem ao ato terrível para a criança e para ele próprio também. Há padres que sofrem profundamente pelo que lhes aconteceu, mas há outros também que sabem que eles são acobertados, e isso os torna insaciáveis. Deus que perdoa se torna o Deus que acoberta suas ações e sua conduta. Este é justamente o sonho de todo perverso. Seu sonho é fazer de Deus alguém à sua imagem, alguém que acoberta seu desejo. Eis como a Igreja corre o risco de se tornar perversa. Ela o é forçosamente na medida em que perdoar não tem outro sentido do que encobrir e, consequentemente, abonar.

O celibato, neste sentido, é a virtude do perverso. É o perverso que vai reivindicá-lo, posicionando-se como seu defensor. Isso não é assombroso de sua parte, porque ele teria feito da lei da Igreja uma lei que é a sua e está a serviço de seu prazer.

É agora necessário, mais do que nunca, que a Igreja reveja sua posição referente ao celibato. Recusando uma vez mais a aceitar esta realidade simples que um homem é falível, mesmo se ele consagra sua vida a Deus, ela terá escolhido submeter-se à norma desses perversos.

IHU On-Line - Como podemos compreender a relação instintiva das crianças em relação à sua sexualidade, e a reação indomada dos adultos?

Nazir Hamad - O adulto casto deve socializar as pulsões da criança quando esta se deixa ultrapassar. O adulto casto, tanto mais quando se trata de seus parentes ou de um padre, deve ajudar a criança a expressar com palavras o que lhe acontece. Ele deve educá-la para o respeito de seu corpo e para o respeito dos corpos dos outros. Uma criança que se acaricia sobre os joelhos do adulto ou em sua presença, o toma como testemunha do que lhe acontece. O adulto, tanto mais quando ele é casto, deve significar à criança que ela não tem o direito de se servir de seu corpo para excitar seus sentidos. Uma criança que se acaricia o faz, muitas vezes, porque ela se aborrece. Ela luta contra o sentimento de vazio despertando seus sentidos. Basta falar-lhe ou propor-lhe um jogo de sociedade, por exemplo, para re-situar esta criança na alegria de viver.

Não é preciso se enganar com aparências. Não é porque a criança se acaricia que devemos concluir que temos a ver com um perverso em formação. Quando ela o faz, ela luta contra o fastio, ou ainda, ela é invadida (dominada) por seu corpo. É a interpretação do adulto que é perversa. O sexo propriamente dito é o adulto que o introduz na vida da criança quando esta confia seu corpo e pulsão à arbitrariedade de um adulto incapaz de respeitar seu corpo e sua pessoa. E, quando é este o caso, a criança não sabe discriminar entre o que se faz e o que não se faz. Isso faz parte da educação, e esta é o domínio do adulto.

IHU On-Line - Como podemos entender que a maior parte dos casos de pedofilia acontece dentro da própria família? Em que medida isso é um sinal de dissolução desta instituição?

Nazir Hamad - A pedofilia deve ser diferenciada do que se chama de toques sexuais. A pedofilia é o ato sexual que o adulto pedófilo faz uma criança sofrer quando ela se encontra na relação de confiança com ele. Ela está tanto mais numa relação de confiança quando se trata de uma pessoa de seu entorno imediato. O pedófilo é atraído pelo não-saber da criança, ou, para dizê-lo em linguagem corrente, por sua inocência. Sade sabia algo sobre isso quando escreveu seu famoso livro Os infortúnios da virtude. Quanto mais uma mulher é virtuosa, mais ela excita os convivas de Sartre . Quanto menos a criança sabe, mais ela atrai o perverso. É um pouco como o esquiador obstinado: seu prazer consiste em fazer seu sulco na neve fresca.

Em minha experiência clínica, fiquei sabendo de toques sexuais cometidos pelos pais e, de tempos em tempos, casos de violação caracterizados e cometidos por um amigo da mãe com sua própria filhinha. Alguns desses homens violaram filhinhas durante anos antes que o fato fosse conhecido. A gente se pergunta como é que uma mãe atenta não tenha notado nada sobre o corpo de sua filha ou sobre sua maneira de ser em casa. É o caso de acreditar que se trata, muitas vezes, de mães mais ou menos coniventes que entregam suas filhas, ou suas crianças, às pessoas que as circundam. Essas mães são, muitas vezes, coniventes, mas à sua revelia.

IHU On-Line - Quais são as consequências da pedofilia para o psiquismo da criança e como esse fato pode retroagir em sua vida adulta?

Nazir Hamad - As crianças que sofreram tal violência guardam sequelas indeléveis. Essas sequelas se traduzem frequentemente por dificuldades em ter uma vida sexual normal, mas, sobretudo uma interferência de marcas simbólicas que nos inscrevem como membros numa cultura e numa comunidade humana. Em outros termos, a maior dificuldade para elas é de se situar quanto às gerações e quanto ao elo de parentesco.

IHU On-Line - Em sua experiência psicanalítica, qual é a realidade sobre a pedofilia com crianças adotadas? Há maior incidência de casos entre esse grupo de crianças?

Nazir Hamad - Nada nos diz que as crianças adotadas sejam com mais frequência vítimas dos abusos sexuais do que as crianças biológicas. Isso quer dizer que o elo de parentesco em adoção introduz o interdito do incesto, como é normalmente o caso na família biológica.

Leia mais...

Confira o artigo exclusivo de Nazir Hamad às Notícias do Dia do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

* A pedofilia e a questão do celibato. Notícias do Dia 15-04-2010.

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