Edição 316 | 23 Novembro 2009

Para Calvino, a eleição divina independe até mesmo da fé

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Márcia Junges

Traduzida para o português em dois tomos, A instituição da religião cristã possuía estilo próprio, diferente daquele marcante nas obras de Teologia da Idade Média, acentua Carlos Eduardo de Oliveira

“A Instituição da religião cristã é uma obra apologética composta por um estilo próprio, profundamente diverso daquele que marcou as principais obras teológicas da Idade Média. Como pano de fundo de seu trabalho, Calvino apoia-se, sobretudo, na sucessão de citações de várias passagens das Escrituras retoricamente apoiadas, principalmente, pela explanação de textos patrísticos”. A afirmação é do filósofo Carlos Eduardo Oliveira, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Um dos tradutores de A instituição da religião cristã (São Paulo: Editora UNESP, 2008, Tomo I, Livros I e II), junto dos pesquisadores José Carlos Estêvão, Ilunga Kabebgele, Elaine Cristine Sartorelli e Omayr José de Moraes Júnior, ele diz que, quanto ao conteúdo dessa obra, “o adversário é facilmente identificado: os abusos da Igreja de sua época, apontados por Calvino como uma decorrência do mau uso e compreensão da tradição cristã nos quais amplamente teria incorrido a ‘escolástica’”. O pesquisador fala, ainda, sobre a força conferida à teologia de Calvino através da obra de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo. “Muito mal resumidamente, poderíamos dizer que Weber defende que os calvinistas acabaram em algum momento por identificar o sucesso econômico como um sinal da eleição divina, e que isto teria, de algum modo, contribuído na história da evolução do capitalismo”. As proximidades e diferenças entre Calvino e Ockham são outro tema dessa entrevista.

Graduado em Filosofia pelas Faculdades Associadas do Ipiranga, é mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese A Realidade e seus Signos: as proposições sobre o futuro contingente e a predestinação divina na lógica de Guilherme de Ockham. É professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no Centro de Educação e Ciências Humanas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais foram os principais desafios em traduzir A instituição da religião cristã , de Calvino?

Carlos Eduardo Oliveira - Quando nos foi proposta, a tradução da Instituição da Religião Cristã de João Calvino não foi nada menos que uma boa provocação. Atendendo a uma solicitação que, embora curiosamente tenha partido de fora da Universidade, dizia respeito a um texto de reconhecida importância na academia, a editora da Unesp apresentou o pedido de que fosse feita a tradução desta obra de Calvino tendo em vista algo que contemplasse tanto as exigências próprias de um trabalho acadêmico como o possível delineamento de um projeto um pouco mais ambicioso. Por um lado, a proposta da editora era a de que fosse levada a cabo uma nova tradução que pudesse ser apresentada não apenas como legível ou correta – uma vez que já havia em português uma tradução para este livro –, mas como um trabalho que também levasse em conta a tecnicidade do vocabulário empregado pelo autor bem como o seu referencial teórico. Concomitantemente, propunha-se a tarefa de tentar reunir, a partir desta tradução, um conjunto de tradutores que, depois, pudessem ser envolvidos em outros projetos de tradução de textos latinos relevantes tanto para a área de filosofia como de humanidades em geral.

O responsável por reunir as pessoas que poderiam corresponder a este perfil foi o professor José Carlos Estêvão,  professor de História da Filosofia Medieval no Departamento de Filosofia da USP. Além de montar a equipe de tradutores e ele próprio contribuir ativamente na tradução do primeiro dos dois volumes do texto de Calvino, publicados pela editora da Unesp (equivalentes aos livros I e II da “Instituição”), ele foi também o principal revisor e assessor para as questões técnicas e propriamente teóricas do texto apresentado neste tomo. Assim, no final, o primeiro volume da tradução acabou sendo feito por uma equipe que mesclou tanto especialistas em filosofia medieval (o próprio professor Estevão e eu) como contou com a colaboração de especialistas em língua latina, como o professor Ilunga Kabengele, especialista em letras clássicas (latim). Outro ponto interessante foi a preocupação de agregar novos formandos que poderiam vir a se dedicar a este tipo de trabalho, donde a colaboração de alguns alunos do curso de letras da USP na realização das versões iniciais da tradução. Num segundo momento, encarregou-se da tradução do segundo tomo da “Instituição” (correspondente aos livros III e IV) a professora Elaine Cristine Sartorelli,  do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, com a colaboração de Omayr José de Moraes Júnior.

Desafios da tradução

Falando propriamente dos desafios de realizar esta tradução, vale a pena mencionar alguns dos percalços que ladearam a constituição da primeira equipe acima mencionada. Basicamente, seja ela feita a partir de uma língua clássica, como é o caso do latim, seja ela a tradução de um texto escrito numa língua moderna, importa bastante para a realização de uma tradução de qualquer texto filosófico não só, como é óbvio, um bom conhecimento da língua original, mas também certa fidelidade na reprodução das escolhas do autor por certas palavras e expressões, mesmo quando isso possa vir a ser finalmente visto, tanto em matéria de tradução como de redação, como estilisticamente pouco recomendável.

Um exemplo para que isso possa ser mais facilmente compreendido é o expediente, às vezes, empregado pelo autor da repetição seguida de certas palavras. Uma das tentações do tradutor, preocupado inclusive com uma melhor fluência da versão por ele elaborada, é o emprego de sinônimos. E isso, é claro, não acontece somente quando as repetições são manifestas. É obviamente ainda mais fácil ocorrer o emprego de termos sinônimos para traduzir uma mesma palavra ou expressão, especialmente quando esta repetição não é tão evidente assim. Ora, o grande problema por trás destas opções, seja para o tradutor, seja para o autor, é que o emprego, seja reiterado ou não, de uma mesma palavra pode não significar simplesmente uma (boa ou má) escolha estilística, mas a própria construção de um conceito.

Perceber quando este é o caso é fundamental para qualquer pessoa que se propõe a traduzir um texto acadêmico, o que faz com que se espere da tradução não apenas um bom trabalho de versão, mas inclusive, e, principalmente, uma tradução que tenha por base um bom trabalho de interpretação, que seja o máximo possível fiel às ideias do próprio autor. Assim, a má compreensão do argumento que está sendo traçado ou do horizonte teórico a partir do qual o texto está sendo escrito são ameaças constantes à realização da tradução, e os motivos mais frequentes de um possível insucesso. É nesse sentido que não é nada despropositado o ditado de que todo tradutor não é senão um traidor...

Demandas acadêmica e comercial

No caso de Calvino, especificamente, foi preciso, além disso, que aprendêssemos quando seus textos faziam referência a uma certa tradição de debates, fato nem sempre evidente. Basta lembrar que muito da argumentação de Calvino busca seu apoio em textos patrísticos, especialmente os textos de Agostinho de Hipona,  autor que possui um estilo próprio baseado principalmente numa filosofia de caráter platônico. Com o apoio destes textos, Calvino busca construir uma argumentação que apareça como uma sorte de contraposição ao modo de argumentar próprio daqueles que, seguindo sua própria esteira, podemos vagamente chamar de “escolásticos”, autores que, por sua vez, eram claramente devedores da tradição aristotélica. Sendo assim, ainda mais quando se trata de um texto volumoso como o traduzido, fica claro que a principal dificuldade a ser superada e uma das coisas que dificilmente podem ser negociadas é o espaço de tempo requerido para a realização de uma tradução como a proposta. E quanto a esse aspecto, no final foi forçoso constatar que, mesmo em se tratando de uma editora universitária, infelizmente o tempo visado ainda não consegue deixar de estar completamente vinculado ao tempo do financiamento externo e da suposta “oportunidade” editorial, no mais nem sempre conseguindo escapar de não se deixar reduzir a muito mais do que a uma promissora carta de boas intenções.

Por fim, não é possível deixar de mencionar que a versão da tradução por nós entregue passou ainda por uma revisão independente e, por vezes, desavisada das opções tomadas, alterando tanto a tradução de termos técnicos quanto substituindo por traduções correntes da Bíblia trechos em que a própria citação de Calvino não segue exatamente a Vulgata... Assim, é um pouco como o resultado espremido entre o que é exigido por essas duas demandas, a saber, a acadêmica e, digamos assim, a “comercial”, que aparece a presente tradução.

IHU On-Line - Quais são as principais peculiaridades dessa obra?

Carlos Eduardo Oliveira - A Instituição da Religião Cristã é uma obra apologética composta com um estilo próprio, profundamente diverso daquele que marcou as principais obras teológicas da Idade Média. Como pano de fundo de seu trabalho, Calvino apoia-se, sobretudo, na sucessão de citações de várias passagens das Escrituras retoricamente apoiadas, principalmente, pela explanação de textos patrísticos.  Por outro lado, apesar de sua declarada contrariedade para com a filosofia “escolástica”, quando conveniente, Calvino não se furta nem mesmo a retomar alguns dos principais tópicos discutidos na teologia medieval. Mas sem abandonar seu estilo polêmico, Calvino parece frequentemente preferir a força da retórica aos recursos argumentativos, desenvolvidos na esteira da aproximação medieval da teologia com a filosofia aristotélica. Quanto ao seu conteúdo, o adversário é facilmente identificado: os abusos da Igreja de sua época, apontados por Calvino como uma decorrência do mau uso e compreensão da tradição cristã nos quais amplamente teria incorrido a “escolástica”. Inicialmente não mais que um pequeno catecismo, as várias versões da obra certamente conferiram à Instituição o lugar de uma das mais abrangentes e importantes obras de teologia do século XVI.

IHU On-Line - Por que essa obra é considerada um dos tratados teológicos mais influentes da história do cristianismo?

Carlos Eduardo Oliveira - Antes de tudo, é preciso ter cuidado com os superlativos para não confundir a justa menção à real importância de uma obra com o mero proselitismo, seja ele de cunho religioso ou não. Isto observado, é inconteste a importância e a influência exercida pelo pensamento de Calvino na história da Reforma, principalmente na formulação dos diversos tipos de protestantismo que puderam de algum modo ser abarcados sob o rótulo de “calvinismo”.

Embora eu utilize aqui, frequentemente, o adjetivo “calvinista” indicando aquilo que é próprio à obra do próprio Calvino, especialmente a Instituição, sabe-se que nem tudo o que é classificado sob este rótulo e o de “calvinismo” pode ser tomado como a exata expressão daquilo que propôs Calvino. Neste sentido, talvez fosse melhor chamarmos de “calviniano” aquilo que entendemos dizer respeito diretamente às propostas do próprio Calvino. Mas, ainda assim, se for possível afirmar que as várias espécies de calvinismo tenham (ao menos enquanto pretensão) suas raízes no pensamento do próprio Calvino, já teríamos nisto um bom sinal indicativo da força e da importância da obra, digamos desta vez, calviniana. Mas, para além de sua fortuna crítica dentro da história da própria Reforma, o protestantismo calvinista e a teologia de Calvino ganham nova força na atualidade através da obra de Max Weber, que, em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, defende a existência de uma ligação entre o sucesso do capitalismo moderno e as bases da ética calvinista, cujos princípios são elencados por Weber com base principalmente no texto da Confissão de Westminster.

Predestinação e sucesso econômico

É também através desta obra de Weber que a teoria calvinista da predestinação ganha nova força e reaparece como objeto de grande interesse mesmo fora da esfera protestante. Muito mal resumidamente, poderíamos dizer que Weber defende que os calvinistas acabaram em algum momento por identificar o sucesso econômico como um sinal da eleição divina, e que isto teria de algum modo contribuído na história da evolução do capitalismo. É certo que hoje já há quem defenda que aquilo que Weber havia proposto como próprio da ética calvinista não teria senão uma pálida relação de familiaridade com o calvinianismo original. Seja ou não assim, permanece o fato de que não há como negar a extensão da fortuna seja de Calvino, seja dos diversos “calvinismos”. Agora, que estes elementos sejam suficientes para fazer da Instituição a obra mais influente da história do cristianismo parece ser já uma outra conversa...

IHU On-Line - De que forma a teologia calvinista dialoga com a tradição cristã, em especial com Agostinho e Tomás de Aquino, por exemplo?

Carlos Eduardo Oliveira - Basta dar uma rápida passada de olhos na introdução que Calvino escreve para a Instituição, especialmente na carta ao rei Francisco I, para perceber o quão Calvino quer apresentar-se consoante ao espírito da mais primitiva Igreja cristã. Para isso, afirma estar imediatamente alinhado ao que seria próprio dos ensinamentos que ele reclama serem seguidos diretamente dos Pais da Igreja, afastando suas conclusões do que entende ser uma má apropriação feita destes ensinamentos pela Igreja de sua época. De fato, grande parte do que é defendido por Calvino aparece, em última análise, apresentado como apoiado na doutrina de Agostinho, Pai da Igreja a quem Calvino presta grande deferência, preferindo-o a qualquer outro. Para a evidência disso, basta lembrar a elaboração da doutrina da predestinação de Calvino, insistentemente por ele apresentada como lastreada obviamente pelas Escrituras e pelas conclusões da doutrina agostiniana. No que diz respeito a Tomás de Aquino,  apesar da declarada antipatia de Calvino pelos escolásticos, a relação equilibra-se entre a crítica e o manejo de algumas de suas teses. Mesmo que Tomás não guarde no pensamento calvinista nem de longe o mesmo estatuto conferido a Agostinho e aos demais Pais da Igreja, Calvino não esconde que encontra, no Aquinate, algumas boas distinções, como é possível constatar em sua exposição sobre a lei moral. Aliás, é importante reconhecer aqui que a crítica de Calvino aos escolásticos não é cega, como comprova o trecho que encerra o capítulo XVI do primeiro livro: “[...] Por isso vemos, novamente, serem inventadas nas escolas, não sem propósito, distinções entre a necessidade segundo algo [secundum quid] e a necessidade absoluta, assim como entre a necessidade do consequente e a da consequência [...]”.

IHU On-Line - Como especialista em Ockham,  você percebe similaridades na forma como esse pensador e Calvino concebiam a predestinação?

Carlos Eduardo Oliveira - Não é novidade para a literatura especializada a indicação de uma pretensa relação entre o que propõe Calvino e certo “nominalismo” de verve ockhamiana, ou mesmo entre Ockham e a Reforma em geral. Mas, pelo menos no caso de Calvino, esta relação parece ser muito tênue, senão inexistente. Para não ignorá-las sem mais, talvez seja prudente considerar se tais aproximações não teriam seguido um raciocínio semelhante ao proposto por Etienne Gilson,  que, ao falar sobre Ockham, aponta ser preciso notar que a crítica ockhamiana à “filosofia escolástica” foi capaz de provocar a ruína desta filosofia muito antes da constituição da filosofia moderna. Assim, se encarado como um crítico do aristotelismo, ou, ao menos, de certa tradição interpretativa do aristotelismo própria àquilo que se chama vagamente de escolástica, talvez de fato seja possível ver alguma aproximação entre Ockham e Calvino. Mas, para além desse quadro muito geral e, por isso mesmo, provavelmente falho, o que há de concreto entre Calvino e a filosofia ockhamiana não parece ir além de uma relação de profunda antipatia. As poucas referências feitas a Ockham por Calvino no segundo livro da “Instituição” são sempre negativas, não fazendo mais do que desqualificar como “vulgares” as propostas ockhamianas.

A predestinação em Ockham e Calvino

No que diz respeito precisamente ao tema da predestinação, a preocupação de Ockham parece, de fato, completamente distinta daquela proposta por Calvino. Ockham, que dedicou até mesmo um Tratado ao assunto, o Tratado da Predestinação, parecia ter em vista não mais do que a tentativa de mostrar o quanto aquilo que, segundo sua interpretação, a fé propunha sobre a predestinação de fato se afastava das teses que Ockham entendia serem as de Aristóteles. E no que poderia ser visto como um motivo de grande contrariedade para qualquer espírito calvinista, a resposta ockhamiana será que Aristóteles e a fé divergem muito pouco. A maioria das aparentes diferenças entre o discurso religioso e o filosófico não passariam, em última instância, de diferenças semânticas. No fim das contas, Ockham defenderá que apenas seria possível apontar uma única diferença real entre o que, na sua interpretação, é defendido por Aristóteles e o que é defendido pela fé: a certeza aristotélica de que Deus nada poderia conhecer certeiramente a respeito do futuro contingente. Mas mesmo aqui Ockham deu o crédito para Aristóteles: em sua opinião, de fato é impossível que compreendamos racionalmente o modo pelo qual Deus é capaz de ter tal conhecimento. Nada mais próximo de Calvino e, ao mesmo tempo, nada mais anticalvinista.

Eleição divina independe até mesmo da fé

No que diz respeito ao aspecto estritamente teológico da questão, para Ockham, tal como depois também defenderá Calvino, aquilo que faz o homem absolutamente não pode ser considerado como uma causa para a sua salvação ou condenação, no sentido de que podemos entender por isso que as ações do homem de certo modo “obrigariam” Deus a salvá-lo ou a condená-lo. Mas para Ockham, Deus claramente escolhe salvar aqueles que são finalmente justificados pela graça e condenar aqueles que morrem em impenitência final, uma vez que, como reza o adágio proposto por Agostinho, “Deus não se vinga antes que alguém seja pecador, do mesmo modo que não recompensa antes que alguém seja justificado pela graça”. Uma única possibilidade de exceção a esta regra é considerada por Ockham no caso da Bem-aventurada Virgem e dos anjos bons, que poderiam ter sido predestinados antes mesmo que fossem merecedores da predestinação. Mas Ockham nem mesmo leva o assunto adiante, dizendo tratar-se de um caso sobre o qual não é possível arriscar nenhum palpite. Provavelmente, não por outra razão senão pelo próprio fato de Deus não ter-nos revelado o que realmente se deu...

Assim, de seu lado, Calvino provavelmente concordaria com Ockham enquanto ele diz que é impossível conhecermos a vontade divina. Mas sua compreensão deste ponto se dá de um modo muito diferente daquele que é defendido por Ockham. Transformando em regra aquilo que em Ockham não aparece senão em tese e como um possível caso de exceção, Calvino defenderá que a eleição divina seja absolutamente, independentemente de qualquer coisa feita por parte do homem. Para Calvino, a eleição divina independe até mesmo da fé.

Desígnios divinos insondáveis

Portanto, de acordo com Calvino, cabe somente ao desígnio divino – que para nós continua, no mais, insondável – salvar ou condenar a alguém. E ele avança ainda um pouco mais a esse respeito: ao eleger alguém para a salvação, Deus confere a ele seu espírito de sabedoria, dando-lhe a conhecer a revelação cristã. O condenado, porém, seria privado por Deus da graça de seu espírito como sinal de sua condenação. Ainda a esse respeito, Calvino não hesita afirmar que seja certo que aqueles que se afastam do Cristo perecerão, e que é certo que aqueles que se afastam de Cristo o fazem porque a eles não foi conferido o espírito divino. Ao propor tais teses, Calvino não faz mais do que reafirmar sua profunda crença na absoluta liberdade divina. No entanto, este modo pelo qual Calvino confessa esta sua crença parece não fazer mais do que lhe trazer alguns problemas que podem, ao final, se mostrar até mesmo insolúveis.

Ainda que os desígnios divinos permaneçam insondáveis, para Calvino é certo que o homem, principalmente aquele que é conhecedor da revelação cristã, deve se mostrar grato pela graça que lhe foi dada e se mostrar desejoso de que, uma vez conhecedor do Cristo, ele também seja um dentre os eleitos. Mas, se de um lado Calvino alerta que esta esperança não pode ser convertida em soberba através de uma falsa “certeza” da salvação, por outro lado, seus argumentos não são suficientemente claros para que se entenda de fato como este reconhecimento que o homem tem para com seu salvador poderia ser muito mais do que uma consequência de sua eleição. Embora refutada por alguns calvinistas como não expressando senão uma má caricatura daquilo que é defendido por Calvino, ainda parece válida uma velha objeção já muitas vezes levantada contra o pensamento de Calvino a respeito da relevância de qualquer ação humana. Por um lado, dado que a eleição de qualquer homem seja absolutamente independente de qualquer coisa que ele faça, não se vê muito bem a razão da insistência de Calvino na importância de o homem mostrar-se reconhecido a Deus pela graça da salvação. Afinal, se ao eleito é dado o espírito divino e a falta de tal reconhecimento não seria senão a expressão da não eleição, parece impossível para aquele que Deus escolheu não ter tal reconhecimento. Por outro lado, como dito, na contramão do que acontece para com os eleitos, o afastamento do condenado não é senão uma das consequências de sua não eleição, uma vez que ele está privado do espírito divino que propicia a adequada compreensão da revelação cristã. Sendo tal afastamento não mais do que um dos sintomas de sua não eleição, como Calvino ainda pode sustentar, na esteira de Agostinho, que o homem escolhe livremente agir mal, uma vez que o livre-arbítrio não poderia ser negado a fim de justificar o pecado? Desafortunadamente, a resposta de Calvino para esta questão não vai além de um dogmatismo esmagador: “se certas línguas desenfreadas vomitam seu veneno contra isto, não nos envergonhemos de exclamar: « ó homem! Quem és tu, para que alterques com Deus? » (Rm 9, 20). Porque Agostinho diz muito bem que aqueles que medem a justiça de Deus pela dos homens agem muito mal”. Aqui, fica evidente que o que Calvino tem reconhecidamente de melhor parece poder lhe servir também de problema: embora claramente um excelente polemista e retórico, de fato a leitura de seus textos, frequentemente, dá a impressão ao leitor de que ele tenha preferido a boa prosa a uma melhor estruturação dos argumentos propostos.

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