Edição 315 | 16 Novembro 2009

Fundamentalismo ateu deslocou debate para dinâmica política

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Márcia Junges

Profetas do novo ateísmo querem banir cristãos, igreja e comunidade dos debates públicos, e politizam debate, que carece de nível e fundamentação. Organização do movimento é quase eclesial, um verdadeiro paradoxo, assinala João Vila-Chã

O problema do ateísmo é legítimo, mas as discussões de hoje, diferentemente daquelas entabuladas nos séculos XVIII e XIX, carecem de nível e fundamentação. Há um deslocamento do debate, transformado numa dinâmica política, o que é inaceitável, adverte o filósofo português João Vila-Chã. Referindo-se aos profetas do novo ateísmo, como Richard Dawkins e Michel Onfray, o jesuíta acentua que o debate sobre o tema não avançou. Pelo contrário: houve apenas um reforço de posições de ambos os lados. “O ateísmo tem se tornado cada vez mais militante e com organização quase que eclesial, o que não deixa de ser um paradoxo”, afirmou na entrevista que concedeu pessoalmente à IHU On-Line. “Penso que os representantes do ateísmo estão dando uma prova que não me parece muito consistente, porque transformam a militância ateia em programa de agressão muito clara”. O objetivo final desse pensamento é expulsar os cristãos, igreja e comunidade dos debates públicos que definem questões relativas à cidadania. Vila-Chã explica, ainda, que não se trata de um fundamentalismo da razão, e sim um fundamentalismo ateu: “a razão nunca pode ser fundamentalista”.

Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa (UCP), obteve o Diplom-Hauptprüfung (Katholischer Theologie), na Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen em Frankfurt am Main, Alemanha, com a tese Theologie und Kirche: Erik Petersons Program ‘konkreter Theologie’. É doutor em Filosofia pelo Boston College, com a tese Amor intellectualis? Leone Ebreo (Judah Abravanel) and the intelligibility of love. É diretor da Revista Portuguesa de Filosofia desde 2000, leciona Filosofia da Religião e História do Pensamento Contemporâneo na UCP, na Faculdade de Filosofia e na Universidade Gregoriana de Roma. Entre inúmeras outras atividades, foi diretor do Centro de Estudos Filosóficos dessa Faculdade (2001-2007), e é, atualmente, o diretor do Programa Integrado de Mestrado e Doutorado em Filosofia da Religião na UCP.

Ele esteve na Unisinos participando da Jornada Argentino-Brasileira de Estudo de Kierkegaard, apresentando a conferência O significado de crise em dialética: a recepção crítica de S. Kierkegaard no pensamento de Erik Peterson.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as grandes discussões entre filosofia analítica e filosofia continental hoje, na Europa?

João Vila-Chã - O debate entre filosofia analítica e continental é antigo não apenas na Europa, mas nos EUA, e tem muita força sobretudo nos últimos anos. Na Europa, penso que o problema fundamental não é o debate ou a rivalidade em diversos níveis, principalmente da distinção conceitual e epistemológica entre filosofia analítica e continental. O grande problema na Europa agora é o lugar da filosofia no contexto da cultura europeia em relação à sua posição histórica. Outra questão é o sistema universitário do saber em função do futuro dessa cultura e da contribuição que a filosofia europeia pode dar para esse mesmo desenvolvimento cultural. Assim, penso que, na Europa, uma das características básicas de nosso mundo cultural, a nível filosófico, é uma grande diversidade. A situação em Portugal é uma, na França, outra, na Espanha também, assim como no Reino Unido ou Alemanha. Permanece, de fato, o sentido de uma corrente que diz que o desenvolvimento da filosofia, o valor e a percepção desta como um modo específico de saber, no futuro, deveria orientar-se pela filosofia analítica. Há outros que dizem que a filosofia transcendental, fenomenológica, hermenêutica em geral, a abordagem histórica da filosofia, permanece intacta em suas pretensões. Este debate não terá uma solução no sentido de que uma corrente vença a outra. Pessoalmente, embora reconhecendo o valor e importância da filosofia analítica, penso que o valor cultural da filosofia, pelo menos na Europa, passará, necessariamente, por uma reafirmação da “velha” filosofia continental. Isso porque essa filosofia responde de uma forma mais profunda, e talvez mais completa, às grandes questões como sobre o sentido da vida, da existência dos seres humanos.

IHU On-Line - Em que aspectos essa ciência pode apontar luzes para a crise civilizacional que vivemos?

João Vila-Chã - Hoje não se pode fazer filosofia de uma forma separada, desconectada daquilo que chamo de crise estrutural da cultura humana. Quando falamos de pensamento metafísico ou pós-metafísico, modernidade e pós-modernidade, estamos falando de designações que nos ajudam a compreender o que se passa em nossa cultura, em nosso mundo e em nosso tempo. Mas, para além disso, estamos falando de algo mais profundo, que é esta realidade que experimentamos através do pensamento, ou experiência social, da inserção da realidade sócio-econômica, sócio-política e cultural de nosso mundo, uma situação, no meu entender, de crise. Essa crise não é apenas da economia. A crise da economia é apenas um epifenômeno de uma outra muito mais profunda – a crise da orientação do ser, do mundo e da vida. É aqui que vejo, precisamente, o lugar da filosofia e seu caráter imprescindível. A Filosofia, nesse contexto, tem a provocação de fazer despertar os recursos humanos que o espírito tem para sair de uma situação desse tipo. Contudo, penso que se trata de uma crise epocal e, certamente, passageira.

A filosofia tem o papel de despertar esse potencial de criatividade, reflexão e imaginação que nos ajuda, no âmbito globalizado universal da sociedade humana, a despertar cada ser humano e indivíduo. É uma tarefa comum, mas que implica o compromisso de cada sujeito, cada pessoa como ser capaz de pensar e de se orientar através dos recursos que o espírito lhe dá. O papel da Filosofia no contexto de uma sociedade pós-metafísica se dá como o saber, a disciplina, capaz de fazer despertar a dinâmica e os recursos do espírito humano. Independentemente da crença, ou não, em Deus, a filosofia é chamada a fazer esse despertar nas gerações do tempo presente para essa coisa extraordinária que é a capacidade de ver o sentido mais profundo, longínquo e essencial que a vida tem.

IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa revista, o senhor manifestou sua contrariedade quanto aos profetas do ateísmo, que fazem do “problema Deus” um problema de ciência. Como está este debate atualmente?

João Vila-Chã - O debate não avançou muito. A única coisa que avançou, ou se desenvolveu de ambos os lados, foi um reforço das posições. Esses autores de orientação ateísta têm sido capazes de criar uma rede de colaboração surpreendente na história dessa matriz de pensamento. O ateísmo tem se tornado cada vez mais militante e com organização quase que eclesial, o que não deixa de ser um paradoxo.

Surgem, também, respostas de bom nível. Entretanto, basicamente, o problema continua o mesmo. A questão do ateísmo, em si, traduz um eixo de desenvolvimento da cultura europeia, e a incapacidade de um grande diálogo fica exposta. Penso que os representantes do ateísmo estão dando uma prova que não me parece muito consistente porque transformam a militância ateia em programa de agressão muito clara. Essa agressão tem a ver com a tentativa de não debater o assunto com os crentes, acolhendo as razões do outro. Tais autores têm um objetivo que deixa de ser teórico para ser claramente prático. Esse objetivo é fazer com que a religião, sobretudo o cristianismo, desapareça do espaço público. Ninguém se atreve a dizer às pessoas que elas não têm direito de ter a sua fé, mas sim de ter sua fé e expressá-la em público. Deduzem da fé consequências inevitáveis que são estruturantes do ato de fé, sobretudo o ato de fé eclesial, em função da vida pública. Do ponto de vista teórico, o grande problema é que o debate cada vez acontece menos, porque não há uma capacidade de enfrentamento dialógico, de argumentar ao nível das razões. Há como que um desperdiçar da oportunidade de debate, da potência argumentativa da razão. Isso me preocupa muito.

Além disso, preocupa-me aquela tendência mais ou menos clara de criar uma dinâmica de exclusão da posição crente, sobretudo cristã. Ao Islã, por exemplo, o “ataque” é muito mais sutil, principalmente em função do perigo do revide do fundamentalismo islâmico. Assim, o grande alvo de ataque é o cristianismo. Quer-se reprimir a presença do cristianismo na sociedade.

No século XVIII e XIX, houve um grande debate sobre o ateísmo. Essa discussão era de altíssimo nível. Hoje, diferentemente, há um deslocamento do debate, transformando-se numa dinâmica política, muito problemática, e que eu acho inaceitável. Não podemos pactuar com essa dinâmica porque ela busca expulsar os cristãos enquanto cristãos, a Igreja enquanto comunidade, dos grandes debates públicos que definem as questões relacionadas com a cidadania. Nesse sentido, penso que a evolução desse debate não tem sido positiva. Não se trata de um debate científico, a nível das ideias, mas um debate político e, no fundo, sectário. As duas posições têm comportamentos sectários sem possuir justificação intelectual e teórica. O problema do ateísmo, em si, é um problema legítimo e estimulante intelectualmente. Mas ele se torna um debate político, e isso tem consequências graves e sérias porque deixa as pessoas muito confusas.

IHU On-Line - Então o próprio termo “fundamentalismo da razão” não se sustenta porque se baseia numa autocontradição... Partindo dessa constatação, quais são as principais limitações dessa forma de pensar?

João Vila-Chã - A própria ideia da qual partem esses autores, de monopolizar uma ideia de razão, que é extremamente pobre, é uma concepção de razão que já nem sequer é a razão e a ciência do nosso tempo, mas os conceitos de 100 ou 150 anos atrás. Esses autores do ateísmo contemporâneo tentam arrastar-nos a um momento cultural e do desenvolvimento de mais de um século atrás. Esse é um dos fatores pelos quais há um desnível de debate. Tais autores, de fato, não têm coerência de fundo em relação ao seu pressuposto de defender a razão por todos os meios. Eles usam determinado entendimento da razão para atacar as razões que os outros têm, mas que eles não querem. É por isso que eu afirmo que o debate está deturpado. A razão é uma característica fundamental que nós temos enquanto seres humanos, seja para quem crê nela como um dom divino ou como um fato dado. Refuto a ideia, inclusive, de que esse ateísmo é um racionalismo, porque é feito em nome de uma determinada razão, limitada na história, no tempo e, sobretudo, em função de sua própria autocompreensão. É uma razão que se compreende dum modo muito minimalista. Ora, não há nada que justifique epistemologicamente de que tenhamos que ser minimalistas diante da razão. O verdadeiro fundamentalismo acaba sendo o ateu. Não há interesse num diálogo verdadeiro. Reitero que se trata de um fundamentalismo ateu, e não um fundamentalismo da razão, porque a razão nunca pode ser fundamentalista. O problema é uma má compreensão do conceito da razão.

IHU On-Line - Qual é a atualidade de Kierkegaard  para pensarmos o indivíduo em conexão com a alteridade? O senhor vê aproximações do pensamento do dinamarquês com Lévinas,  por exemplo?

João Vila-Chã - Kierkegaard tem um grande impacto na cultura europeia. É um autor genial com o qual temos muito a aprender através de seu pensamento crítico. Seus escritos são multifacetados, e sua interpretação não pode ser feita literalmente. Tanto para a filosofia quanto para a teologia, Kierkegaard tem uma importância fundamental. O primeiro aspecto dessa importância é o fato de ser um mestre do pensamento crítico que não se deixa dominar pelas evidências do tempo presente. É um pensamento que nos remete para a dimensão mais originária do próprio pensar. Por outro lado, é também um autor que, pelas temáticas múltiplas de sua obra, nos ajuda a compreender alguns dos problemas do qual toda a filosofia está prenhe, como o problema da questão do ser, por exemplo. Para debater esses tópicos, Kierkegaard se vale de expedientes de enorme atualidade e profundidade, nos ajudando a compreender o que significa viver.

Outro aspecto que destaco é o fato de Kierkegaard ser um pensador que nos ajuda a pensar a individualidade e a subjetividade ao mesmo tempo. Com esse pensador, atingimos um dos momentos mais elevados na história do pensamento da subjetividade. Eu diria, inclusive, que ele pode ser considerado o profeta da subjetividade e da nossa autocompreensão. Basta pensarmos que, tantos anos após sua morte, continuamos a debater suas ideias com profundo interesse e com a consciência das nossas próprias limitações em função da imensidão de sua obra. Kierkegaard nos ajuda a nos compreendermos não apenas como realidade já dada, mas como realidade proléptica, que se abre para o futuro, para o devir, para nossas possibilidades. Atribui-se a ele a criação de uma ontologia do futuro, da abertura. Seu objetivo mais elementar é ajudar-nos a compreender aquilo que somos não em função do pensar ou das determinações fáticas da nossa história, mas tendo em conta projetar a realização humana num futuro que não pode deixar de lado a liberdade, a abertura.

Kierkegaard e Lévinas aparentemente são incompatíveis, pois vêm de matrizes diversas, inclusive teológicas. Kierkegaard, um pensador aparentemente da individualidade, do sujeito, da subjetividade, pensa em termos de relação. Lévinas é um pensador do ser em comunhão, do sujeito em relação. Isso nos dá a impressão de que temos dois modelos diferentes da ontologia da subjetividade. Entretanto, penso que os dois autores são mais próximos do que se imagina. A heterologia típica de Lévinas converge com a categoria da relação, de Kierkegaard. Aquilo que, aparentemente, são conteúdos diversos, com Kierkegaard parecendo afirmar o indivíduo, e Lévinas afirmando o outro, é, na realidade, uma concepção limitada. São dois testemunhos profundos de que não há modo de pensar o ser humano, sujeito e subjetividade que não seja um pensar da relação e da comunhão do ser.

IHU On-Line - Em que medida Kierkegaard subverte o conceito tradicional de Igreja e, por outro lado, inspira o fortalecimento da fé e da busca pela transcendência?

João Vila-Chã - Essa questão toca o cerne da problemática da fé em Kierkegaard. Primeiramente, devo fazer uma reserva. É muito difícil delimitar esse autor, pois seus textos são de difícil compreensão e porque estamos longe de entender verdadeiramente o alcance das implicações hermenêuticas, da estratégia que implantou em sua obra, como o recurso aos pseudônimos, por exemplo. Kierkegaard é um crítico da Igreja instituição, especificamente aquela à qual pertencia, a luterana dinamarquesa. O que o motiva, diz, é fazer despertar a Igreja para a sua verdadeira essência. Seu objetivo, assim, não é destruir a Igreja, atacá-la, mas despertá-la para sua vocação.

Contudo, aquilo que predomina em Kierkegaard, para usar uma linguagem tributária a Derrida,  é submeter a ideia de Igreja a uma desconstrução. Ele critica e desconstrói a instituição com o objetivo de fazer com que essa acorde para seu verdadeiro papel e sentido.

Contudo, saliento que em Kierkegaard essa eclesiologia é deficiente, porque não me parece articular a necessidade teológica da Igreja como uma necessidade estruturante e constituinte do próprio pensamento. A sua relação crítica à Igreja é uma relação de exterioridade, e não de interioridade. Ele critica a Igreja a partir de fora, em nome da fé. Portanto, Kierkegaard é, ao mesmo tempo, uma benção, mas um corrosivo.

Uma crítica salutar

Concordo com Paul Ricoeur,  que classifica Kierkegaard como um mestre da suspeita, que nos ajuda a atravessar o muro da indiferença. A crítica que faz à cristandade é a crítica que faz a um estado de coisas na qual a palavra de Cristo, o Evangelho, não penetra. Isso é mesmo uma crítica necessária. Em perspectivas diferentes, Kierkegaard faz o mesmo que Nietzsche  fez em relação à Igreja. Esses autores nos obrigam a repensar aquilo que somos, ou aquilo que dizemos ser. Assim, Kierkegaard é um autor cristão muito importante que nos faz confrontar com a seiva, com a vida que todo aquele que se quer cristão tem que atravessar.

Criticando a Igreja, Kierkegaard faz um grande serviço a ela. Ele ajuda a ver a razão de ser da instituição. Assim, é um autor que funciona como “médico da alma cristã”. Ele submete o cristianismo a uma espécie de terapia constante. O lado sombrio desse pensador tem a ver com aquilo que é o perigo de todo pensamento crítico: não criticar-se a si próprio, não fazer autocrítica. Entretanto, Kierkegaard tem um nível autocrítico bastante elevado. Temo que o problema, na verdade, não esteja no autor, mas em nós, que lemos seus escritos tantos anos depois. O perigo é nos esquecermos de que esse pensamento está movido por uma dinâmica que é aquela da abertura do ser individual que se vê a si próprio não como senhor e dono de si, mas como crente de uma comunhão, de uma inserção num todo. Nesse pensamento, ainda bem, Kierkegaard continua muito hegeliano.

Precisamos tomar cuidado para não fazer com os escritos de Kierkegaard a concretização do dito popular alemão de que jogamos fora a água que serviu para dar banho no bebê com este junto. Uma crítica exasperada ao cristianismo pode fazer com que isso aconteça.

Leia mais...

João Vila-Chã já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Ela está disponível na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br)

* A fúria do ateísmo contemporâneo tem cariz quase religioso. IHU On-Line número 245, O novo ateísmo em discussão, de 26-11-2007.

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