Edição 314 | 09 Novembro 2009

Um Deus para cada contexto

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Patricia Fachin | Tradução Lucas Schlupp

Na opinião de Julius Lipner, todos os sistemas religiosos vitais precisam adaptar-se para sobreviver

Continuando o debate sobre as religiões chinesas, indianas e africanas, tema de capa da edição número 309, de 28-09-2009, recebemos a contribuição de Julius Lipner, professor de Hinduísmo da University of Cambridge. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele explica as manifestações de Deus na cultura hinduísta e diz que, diferente das tradições monoteístas, o divino se apresenta de diversas maneiras e possui formas e nomes distintos para que possa relacionar-se com diferentes seres humanos. “Cada um de nós é diferente e achará mais fácil se relacionar com Deus de acordo com nossos contextos e circunstâncias”. Segundo ele, deuses e deusas hindus não são competitivos e dispõem igualmente de poder e misericórdia, além de estarem interessados no bem-estar da humanidade.

O pesquisador também falou à IHU On-Line sobre o projeto de ética mundial proposto pelo teólogo alemão Hans Küng. Embora concorde com as ideias expostas, ele enfatiza que é preciso “analisar cuidadosamente circunstâncias individuais para implementar estes princípios corretamente. Cada tradição do mundo poderia muito bem dar diferentes ênfases ao aplicar estes princípios”.

Lipner também é professor em Oxford, onde ministra aulas sobre Hinduísmo e pensamento indiano. É membro do Conselho Acadêmico do Centro de Estudos Hindus da mesma universidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a origem da religião hindu? Em que sentido ela molda os costumes e define o pensamento indiano?

Julius Lipner - A religião hindu é única porque, diferentemente do budismo, islamismo ou cristianismo, por exemplo, não tem fundador. Isto porque o que chamamos de “hinduísmo” é um conjunto de muitas crenças similares que carregam uma semelhança familiar entre si, no que diz respeito à crença, à prática, porém, mais importante, no que tange à atitude para com a humanidade. Entretanto, as raízes do hinduísmo são de aproximadamente 2000 a.C. na Índia. A partir daquele período, começou a desenvolver-se uma postura diferente diante da realidade, num grupo de imigrantes que foram para o subcontinente indiano chamado “indo-arianos”. Combinando com algumas crenças e práticas que encontraram entre os nativos, formaram uma visão de mundo “policêntrica”. Isto significa que certas crenças e práticas, como, por exemplo, a crença em um ser transcendente, ganharam diferentes formas e expressões “centrais”. Assim, acreditavam em uma realidade suprema, mas também acreditavam que essa realidade suprema se expressava de formas diferentes, não apenas de uma forma, como é o caso das crenças abraâmicas.

IHU On-Line - Eles acreditam em um Ser superior e ao mesmo tempo veneram vários deuses? Qual é o sentido desta prática?

Julius Lipner - Não há um único sistema de crenças no hinduísmo, pois o hinduísmo não é uma religião, mas uma família de diferentes religiões. Então, o hinduísmo não possui um só credo como, por exemplo, cristianismo e islamismo procuram ter. Assim, você pode ser um hindu religioso e crer em um só Deus pessoal (a maioria dos hindus tem essa crença), ou em um impessoal, ou simplesmente em um universo determinado moralmente. Como a maioria dos hindus acredita haver apenas um Deus, deixe-me explicar o que distingue essa crença. Um cristão, por exemplo, tende a crer que há apenas um Deus, que se revelou claramente com um Nome na Bíblia, e que desceu à Terra apenas uma vez, na forma de Jesus Cristo. Mas a crença hindu em apenas um Deus não é assim – é policêntrica. Então, o hindu poderia crer que a essência do ser supremo é pessoal e sem forma, e que este ser possui um nome preferido, por exemplo, Shiva, ou Vishnu, ou Devi a Deusa, mas que este Deus mostra-se para os humanos em muitas formas diferentes, tanto em forma masculina quanto feminina, até mesmo como Cristo. Para o hindu, as manifestações de Deus não são limitadas a uma forma e um nome, mas são muitas, para que possam relacionar-se com diferentes circunstâncias culturais etc. dos seres humanos. Cada um de nós é diferente e achará mais fácil se relacionar com Deus de acordo com nossos diferentes contextos e circunstâncias. Esta é a explicação para os assim chamados muitos deuses e deusas dos hindus.

Estes “deuses” e “deusas” não são competitivos; mais exatamente, são diferentes centros da crença e prática para conciliar uma grande variedade de circunstâncias humanas. Este é um exemplo do “policentrismo” em contraste com o monocentrismo do judaísmo, islamismo e cristianismo. Pois a grande maioria dos deuses e deusas hindus é todo-poderosa, misericordiosa, e interessada no bem-estar da humanidade. A manifestação em diferentes formas ajuda a alcançar isso.

IHU On-Line - Na Índia, muitos mortos são cremados. Sob o aspecto religioso, qual o sentido da cremação para os seguidores do hinduísmo?

Julius Lipner - Na Índia, o corpo da maioria dos mortos é cremado, não todos. Isto se dá porque, desde os tempos antigos, o fogo era considerado um agente purificador; então, na morte, a cremação purificava tanto fisicamente (para que não houvesse transmissão dos germes do corpo em decomposição) quanto espiritualmente, na preparação para o mundo vindouro. Os corpos de crianças muito jovens (que não têm pecados, portanto não necessitam purificação ritual ou espiritual) e de homens e mulheres santos (que supostamente também não necessitam purificação ritual ou espiritual) não são cremados. São enterrados ou postos em água corrente.

IHU On-Line - O que as Escrituras revelam sobre a teologia, filosofia e mitologia hindu? Que autoridade estes textos representam na Índia moderna?

Julius Lipner – Entre os hindus, há crenças diferentes na família de crenças hindus, e muitas destas possuem diferentes textos como escrituras. Este é outro exemplo de “policentrismo” – a multiplicidade de escrituras dentre as diferentes tradições hindus, as quais compartilham determinadas semelhanças entre si. Entretanto, há uma escritura – o Veda – a qual muitas tradições hindus aceitam ou utilizam como um ponto de referência para articular seus sistemas de crenças. O Veda é uma escritura muito extensa e complexa, que muitas tradições acreditam ter sido simplificada para pessoas comuns nas e através das suas próprias escrituras, que eles chamam de um Veda alternativo ou tratam como um Veda substituto. Aqui há um exemplo de policentrismo novamente.

IHU On-Line – O senhor poderia nos dizer algo sobre o sentido e a metafísica da teologia Vedanta de Ramanuja?

Julius Lipner - Ramanuja (séc. XI) foi um teólogo indiano que era o líder da tradição hindu Sri Vaishnava. Ele acreditava que havia apenas um ser supremo (“Deus”) que era de natureza espiritual, pessoal, misericordioso, todo-poderoso e onisciente que, com frequência, descia à Terra em diferentes formas para o bem-estar e salvação da humanidade. O preferido – mas não o único – nome deste Deus é Vishnu-Narayana. Ramanuja pensava que o mundo era o corpo de Deus, não exatamente no mesmo sentido que nós termos corpos, mas no sentido especial de que Deus mantém a existência do mundo, controla-o com moral e leis físicas e existe de modo que possamos glorificá-lo (isto, para Ramanuja, é o sentido real de “corpo”).

IHU On-Line - Quais são as diferenças entre Vedanta tradicional e moderno?

Julius Lipner - Todos os sistemas religiosos vitais precisam adaptar-se para sobreviver. O Vedanta continua sendo um sistema religioso relevante e contemporâneo para os hindus, e adaptou-se para isso. Tradicionalmente, uma característica importante para o Vedanta foi de considerar o renunciante – a pessoa (do gênero masculino) que abandona o mundo e as relações humanas terrenas pela prática do celibato e penitência – como ideal espiritual. Mas desde o início do século XIX, ocorreu uma mudança de paradigma numa parte significativa desta tradição. O chefe de família casado, que colocasse sua fé em Deus, e tentasse fazer Sua vontade na e através da família e local de trabalho, tornou-se outro ideal. Isso possibilitou estar no mundo e viver uma vida espiritual que trouxesse salvação, sem necessariamente ser carnal e materialista. Desta forma, a vida de casado e trabalhar, como qualquer pessoa no mundo, vieram a ser um caminho para redenção espiritual. Esta foi uma das mudanças mais importantes no Vedanta moderno.

IHU On-Line - Quais os princípios éticos que regem o hinduísmo? Destes, qual pode contribuir para a construção da paz mundial? Por quê?

Julius Lipner - Um dos princípios éticos mais importantes das tradições hindus – que é ensinado numa escritura hindu muito popular, o Bhagavad Gita  (por volta dos séc. I e II d.C.) – é a prática altruísta, ou seja, de não ser egoísta, ação por amor a Deus e toda a humanidade. O Gita ensina que se deve cumprir com os deveres não buscando o fruto de suas ações, mas pelo amor a Deus e ao próximo. Mesmo que este dever seja doloroso em grande ou pequena medida, deve ser realizado sem medo ou favor a ninguém. É bom enquanto for o dharma (dever) de alguém e enquanto for a vontade de Deus, independente das consequências. Este princípio ético influenciou profundamente as ações pessoais e políticas de Mahatma Gandhi.

IHU On-Line - O teólogo alemão Hans Küng  diz que é possível criar uma ética global com princípios básicos. Podem as religiões contribuir para a proposta de uma ética global? Que tipo de ética é possível e desejável?

Julius Lipner - Em princípio, eu concordo com Küng. A maioria das religiões no mundo prega o amor ao próximo e compaixão pelos outros. Entretanto, precisamos analisar cuidadosamente circunstâncias individuais para implementar estes princípios corretamente. Cada tradição do mundo poderia muito bem dar diferentes ênfases ao aplicar estes princípios: assim, os hindus talvez enfatizem a não-violência e pureza de intenção ao aplicar estas regras, os budistas, a compaixão por toda criatura consciente, os cristãos talvez enfatizem o amor ao próximo e a Deus, muçulmanos talvez enfatizem a obediência e a submissão à vontade de Deus, e assim por diante. Cada uma destas ênfases dará um caráter diferente à prática da crença, uma sensação e um resultado diferente, mas se estas práticas forem realizadas pela boa vontade, funcionarão com diferentes pessoas e culturas em prol da harmonização da paz no mundo.

Leia mais...

>> Sobre hinduísmo leia também:

* Revista IHU On-Line número 309, de 28-09-2009, intitulada Sabedoria, mística e tradição: religiões chinesas, indianas e africanas;

- Hinduísmo. A relação entre o indivíduo e a Verdade fundamental do cosmos. Entrevista com Cybelle Shattuck, publicada na IHU On-Line número 312, de 26-10-2009;

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