Edição 314 | 09 Novembro 2009

O texto como arena

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Márcia Junges e Jasson Martins

Livro do pensador dinamarquês não pode ser classificado facilmente, e sinaliza questões só discutidas na segunda metade do século XX. Além disso, menciona Jacqueline Ferreira, é palco de confronto entre ações e pontos de vista

Uma obra de difícil classificação. Seria um gênero ficcional? Filosófico? Literário? Romance? Tratado estético? Na opinião de Jacqueline Ferreira, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a leitura de Either/Or (A alternativa), obra de Kierkegaard de 1843, “aponta aporias que escapam a própria teoria da literatura, antecipando, no século XIX, questões abordadas pela crítica somente na segunda metade do século XX, tais como: autoria, autobiografia, sujeito da escrita, pseudonímia, heteronímia”. Esse livro “joga com o movimento da própria escrita, joga com sua própria autorrepresentação, ou seja, joga com aquilo que o texto mostra no seu processo contínuo, ininterrupto de significações”. É um texto como arena, explica a pesquisadora, “lugar de confronto entre ações e pontos de vista”.

Graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em Belo Horizonte (FAFI), Jacqueline possui mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, e doutorado em Literatura Comparada pela mesma Universidade. Sua dissertação focou os aspectos literários da obra O diário do sedutor, e em sua tese fez uma análise literária do prefácio do livro Either/Or no que diz respeito à autoria, pseudonímia, memória, texto, escrita e leitor. Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard, apresenta a comunicação O prefácio ficcional de "Either/Or" - espaço de jogo, jogo constante de escrita, reescrita e leitura, em 13 de novembro.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como você define o espaço de jogo na obra Either/Or de Kierkegaard?

Jacqueline Ferreira - Primeiramente, como leitora de Either/Or, não me prendo à consciência estética ou à natureza do jogo em si, mas à experiência provocada pela leitura do texto, pela escrita de Kierkegaard, por seu jogo pseudonímico. Então, se o sentido do texto não se esgota na subjetividade do autor e muito menos na objetividade do dado representado, Either/Or joga com o movimento da própria escrita, joga com sua própria autorrepresentação, ou seja, joga com aquilo que o texto mostra no seu processo contínuo, ininterrupto de significações. A ficção é, sem dúvida, o lugar privilegiado do jogo, do jogo disposto no campo da representação no qual se articulam as operações textuais, promovendo a inter-relação entre autor-texto-leitor. Por outro lado, “Either/Or” é obra dialética, os escritos de A e B estão em constante diálogo. As concepções sobre estética, ética e religião são desenvolvidas de acordo com o perfil e ação representados pelo personagem específico, embora nenhum posicionamento seja fechado ou concluído dentro de um único ponto de vista para o leitor. O próprio título – Either/Or –, comprova que a narrativa reverbera no seu próprio interior, e seu conteúdo filosófico adquire maior sentido quando a obra é lida no todo, quando Kierkegaard traz à cena o seu “Either” ou “Or” da decisão. Além disso, a ficção ficcionaliza o real e o ficcional através do jogo irônico em que o texto joga com sua própria ironia. Se Victor Eremita, então pseudônimo, carrega em si a função de autor de forma indireta e nega sua implicação autoral, efetiva-se o movimento de jogo que não se relaciona à ação negada, mas à negação do próprio pseudônimo, que procura romper com a ideia de ilusão. Victor Eremita, pois, pseudônimo de Kierkegaard, dissolve-se no texto, resultando na distância do escritor com sua própria escrita e coloca em jogo não só o papel do autor como leitor (e vice-versa), autor-leitor seres ficcionais, mas do próprio texto como arena, lugar de confronto entre ações e pontos de vista. Então, por essa mesma ideia de perda da origem e de infinitude passa, metaforicamente, a questão autoral, vale lembrar que os autores estão incrustados uns nos outros como “caixinhas chinesas” – procedimento escritural que invoca não só a marca de ficção do texto, mas também que recorre ao modelo clássico de ironia romântica. Se nos apropriarmos da imagem de um dado, cujas seis faces sempre determinam, sem qualquer previsibilidade, o lance de movimento do jogo para o jogador, observaremos que, analogamente, Kierkegaard, em Either/Or, redimensiona o jogo entre palavra e ideia, poética e ironia. Além do mais, não se limita a jogar com a escritura e o leitor, mas transforma o próprio jogo autoral em instrumento de rebeldia, processo de libertação, de afirmação perante os seus questionamentos de ser no mundo.   

IHU On-Line - Na sua percepção, existe alguma relação de semelhança entre o estilo literário de Kierkegaard e a pseudonímia por ele criada? Se sim, qual é esta relação?

Jacqueline Ferreira - Interessante, talvez, seja perceber que a concepção de ironia em Kierkegaard é a base para o estudo da dialética do jogo em Either/Or, obra que ecoa no jogo de reflexão e de ironia do próprio autor. Além disso, a ironia é que recorta a “comunicação indireta”, ou seja, o jogo dos pseudônimos no domínio do texto, sendo, pois, o eixo que articula e orienta as discussões e pontos de vista da filosofia existencial de Kierkegaard, principalmente no tocante aos três estádios da existência que, na verdade, são determinações subjetivas do indivíduo em particular. A ironia para Kierkegaard é o mal-entendido, a dualidade entre o fenômeno e o conceito, o início da ironia manifesta-se em Sócrates, pelo silêncio da pergunta sem resposta. Para Kierkegaard, a ironia consiste em dizer, em tom sério, o que não é pensado seriamente, embora, de forma mais rara, possamos lançar mão da retórica irônica ao dizer algo sério em tom de brincadeira. De ambas as maneiras, a ironia é arte sedutora, encerrando algo de enigmático, paradoxalmente, revelador. Curioso é que Kierkegaard, ao lançar mão das estratégias da ironia romântica na escrita de Either/Or, contrapõe-na fervorosamente à ironia socrática. Em sua opinião, a ironia preconizada pelos românticos representava apenas a brincadeira descomprometida com a realidade dada, a ilusão que, simultaneamente, rompia com o espírito de seriedade das obras literárias e assegurava a manifestação do autor por trás dos personagens criados e da própria narrativa.

A ironia socrática, diferentemente, preocupava-se em promover no indivíduo mudanças comportamentais em relação à existência, partindo de interiorização de reflexões filosóficas, embora, se assim podemos dizer, fazendo uso do adereço estético. Com efeito, o emprego sistemático da pseudonímia é considerado na exegese da obra de Kierkegaard, variável facilmente remissível aos aspectos teóricos de seu pensamento. Para muitos críticos, os pseudônimos constituem, sobretudo, a expressão formal da estratégia adequada à manifestação da subjetividade, da comunicação indireta, em oposição clara à linguagem disseminada pelo pensamento filosófico da época. Kierkegaard jamais quis indicar caminhos certeiros ou estruturas sistemáticas definidas ao seu leitor. Através da pseudonímia, procurou conduzi-lo ao movimento articulado das relações entre o seu projeto de escritor existencialista e o mundo representado pelos pseudônimos, impulsionando-o a indagar sua própria existência. Nesse sentido, os leitores e estudiosos desse autor não devem investigar e descrever somente o que Kierkegaard disse, mas, sobretudo, considerar como ele disse. Assim sendo, importa reconhecer os recursos estéticos de sua escrita, assimilando os seus significados, mas tais significados não são facilmente recuperados pela leitura por não se apresentarem de forma simples. Na verdade, Kierkegaard, embora criticasse o romantismo, recorre aos artifícios da escola romântica, deslocando e reinventando os sentidos dos seus textos, invertendo a comunicação com o leitor.     

IHU On-Line - A sua formação é na área de literatura comparada. Tendo isso em mente, poderia indicar algumas “inovações” ou “tendências” de estilo ou forma na composição kierkegaardiana?

Jacqueline Ferreira - As inquietações filosóficas e, sobretudo, as provocações literárias advindas dos escritos de Kierkegaard demarcam meu olhar e lugar de leitora, e também a tentativa de interpretá-lo à luz das teorias em torno do autor, do leitor e do próprio texto, com a ousadia de ir além de simples revisão da fortuna crítica do autor. Principalmente, através da leitura de Either/Or, acredito ser possível recolocar alguns conceitos inerentes ao próprio discurso crítico para repesarmos os lugares da autoria e da recepção não como demarcações estanques ou fechadas em si mesmas, mas como jogo dinâmico do revés de uma mesma moeda. Contudo, perguntas aparentemente simples são difíceis de ser respondidas, por exemplo: a que gênero pertence a obra Either/Or? Kierkegaard cria um texto filosófico? Ficcional? Literário? Um romance? Ou um tratado estético? A leitura de Either/Or aponta aporias que escapam a própria teoria da literatura, antecipando, no século XIX, questões abordadas pela crítica somente na segunda metade do século XX, tais como: autoria, autobiografia, sujeito da escrita, pseudonímia, heteronímia (esta última tratada por Fernando Pessoa  através dos seus textos máscaras). Borges  é outro a ficcionalizar, ao extremo, o eu, se inventando como personae em seus textos. Either/Or apresenta caráter ficiconal e teórico ao mesmo tempo, sendo, pois, gênero literário misto, deslizando nas próprias armadilhas literárias.   

IHU On-Line - O espaço da ficção literária é o espaço do imaginário subjetivo? Como você percebe isso?

Jacqueline Ferreira - Primeiramente, gostaria de lembrar que essa questão entre o fictício e o imaginário foi muito bem analisada por Wolfgang Iser. A literatura faz com que o texto ficcional se desagregue de todas as molduras da realidade, pois a ficção não se compromete com o real, apenas abre-se em lacunas, em fendas, em brechas para poder representá-lo através da presença do imaginário em seu fazer ficcional de comunicação com o leitor e o próprio texto. Por outro lado, em “Either/Or”, por exemplo, Kierkegaard apresenta várias narrativas em constantes confrontos e vazios, cuja importância reside justamente no estado suspensivo do mundo aberto à decifração do leitor. O que não foi, explicitamente, escrito por Kierkegaard, no texto, é justamente o eixo que estimula a ação criativa e imaginativa do leitor, ou seja, o oculto atua como projeção do não-dito na própria construção textual. A ficção que se constrói desse modo, instaura condições de comunicação e suscita o jogo de respostas decorrentes dos efeitos estéticos produzidos na mente do leitor. Se isso pode ser dito, lato sensu, sobre qualquer obra ficcional, no caso da escrita de Kierkegaard, essa suspensão se dá como projeto escritural que vai sendo explicitado simultaneamente ao seu processo de construção, de jogo levado a extremos labirínticos através das sobreposições de eus escriturais.

IHU On-Line - É sabido que o estilo dos escritos kierkegaardinos é apaixonante e, por isso mesmo, exercem um fascínio nas pessoas que o leem. A que se deve esse fenômeno?

Jacqueline Ferreira - Como foi dito, a minha formação é na área de Literatura Comparada, e minha paixão por Kierkegaard perpassa (e muito) por seus escritos estéticos, por sua estética do artifício, os seus personagens-pseudônimos tão sedutores. Certa vez, ouvi algo apaixonante sobre a escrita e, por incrível que pareça, se aplica muito bem à sua pergunta. Ouvi dizer que escrever é um ato de libertação, gesto que deve ser realizado sem medo, deixando-se, apenas, seduzir pelas palavras, pelo texto que se inscreve na folha em branco, enfim, pelo eu da escrita, pelo outro eu dentro do texto. Nesse sentido, vejo que, assim, são os textos de Kierkegaard. Eles nos seduzem, nos enlaçam, nos fisgam com os seus jogos de leitura e escrita: com suas chaves de leitura complexas que pluralizam a enunciação e os horizontes de expectativa da recepção. Contudo, se posso reportar-me a uma imagem, vem à tona o Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Lembro-me muito da tradução da principal frase do livro “apprivoise-moi” que o tradutor verteu por “cativa-me”, e que, igualmente, poderia ser traduzido por “prenda-me”, “domestica-me”, “amansa-me”, acredito que os textos de Kierkegaard e, aqui, muito particularmente, recorro ao Diário de um Sedutor, é uma obra que nos prende em suas amarras literárias, discursivas através da história erótica entre o esteta sedutor Johannes e a jovem Cordélia.

IHU On-Line - É fato que alguns pseudônimos de Kierkegaard personificam o “momento estético” da sua obra. Para você, literariamente falando, qual a relação entre sedução e literatura?

Jacqueline Ferreira - Para responder essa pergunta, trarei à cena algumas palavras do escritor Octavio Paz, em seu livro A dupla chama – amor e erotismo. Como sabemos, a sedução é um vocábulo de origem latina que significa atração, encantamento e fascínio, além de ser o artifício impulsionador do fenômeno erótico através da recriação e reinvenção do próprio corpo. No momento de sedução, os sentidos não mais demarcam os limites e as confluências do certo, errado ou proibido; ao contrário, sem perder seus poderes, convertem-se em servidores da imaginação, libertando os fantasmas mais secretos do desejo, a fim de proporcionarem maior intensidade à pouca duração do gozo. Ao entrelaçar no exercício poético da imaginação erotismo e sensualidade, o sedutor reveste sua arte de signos e rituais, artifícios reconhecidos como truques, como magia que tentam destruir, através do encantamento, a ordem de todas as verdades. Ao filósofo Platão, associa-se a ideia de erotismo como impulso vital que ascende ao bem supremo, purificando a alma à medida que esta se distancia da sexualidade, simplesmente, animal. Contudo, na própria história primitiva da sexualidade humana, algumas posturas moralistas e “antieróticas” foram descaracterizando o lado sagrado do erotismo, acentuando pontos que o colocaram em oposição radical à religião, tornando-o algo imundo, sujo, repulsivo. Por outro lado, obsceno, profano ou não, a questão do amor, juntamente com os seus enigmas – a sedução, o erotismo, o desejo e o sexo –, tornou-se lugar comum na literatura, levando muitos poetas a uma reflexão sobre o tema. Se, para Paz, o poema não aspira a dizer, e sim a ser, a literatura, a poesia, não vislumbra somente a comunicação, como o erotismo nunca vislumbraria a reprodução, ou seja, podemos entender que a relação entre erotismo e literatura (e poesia) é que a primeira configura como poética corporal e a segunda como poética verbal. Nessa rede metafórica de significados, tanto o fazer erótico quanto o fazer poético, estético, atos que reinventam o corpo e a palavra, encontram-se, paradoxalmente, numa mesma “oposição complementar”: a literatura, a poesia, desvia a linguagem de sua função primeira e imediata, a comunicação; o erotismo, através do jogo de representações, desvia o corpo de sua finalidade essencial, a reprodução. Daí ser a literatura, a poesia, uma erotização da linguagem, e o erotismo, sexualidade transfigurada em metáfora. Juntamente, com a imaginação, literatura, poesia e erotismo são elementos que potencializam o desejo da constante “sede de outridade”.       

IHU On-Line - Para você, qual é a atualidade do pensamento de Kierkegaard no contexto atual?

Jacqueline Ferreira - Após mais de um século e meio de certa incompreensão e desapreço, os textos do pensador dinamarquês parecem ganhar lugar de destaque não só nas bibliotecas e livrarias da Dinamarca, mas no mundo inteiro. O interesse pelas obras desse polêmico autor não se circunscreve apenas à área dos pesquisadores ou críticos escandinavos, embora o alcance e a diversidade de seu pensamento também não facilitem a tarefa de analisar os múltiplos aspectos de sua escrita filosófica e literária. Aliás, muito do que já se escreveu sobre Kierkegaard é considerado, quase sempre, estudo apenas introdutório, mas que se impõe sempre a investigações amplas tanto para o pesquisador da filosofia, da literatura e das mais variadas áreas do conhecimento.

Mais especificamente, na literatura, a pseudonímia de Kierkegaard traz à cena personae contrastantes que perturbam a possibilidade de unificação em torno de um nome, obrigando-nos a refletir sobre os diversos eus kierkegaardianos. Jogo constante não somente do autor consigo mesmo, mas, sobretudo, ludicamente, com o leitor. Kierkegaard suscita questões teóricas atuais em torno do fenômeno estético e dos indícios de sua recepção, ou seja, a apreensão das relações de leitura encenadas por seus textos.

A Literatura Comparada é atividade crítica que não exclui o fator histórico, e sim lida amplamente com os dados literários e os extraliterários, fornecendo à historiografia e teorias literárias base fundamental de pesquisa. Nesse sentido, muito embora não seja nenhuma novidade, é importante dizer que estudar Kierkegaard na contemporaneidade demanda uma discussão crítica capaz de rastrear o autor no propósito de re-significar respostas e reformular questões, propiciar e ampliar o universo de expectativas do leitor contemporâneo.

Além disso, também na perspectiva da Literatura Comparada, o processo de escritura de Kierkegaard deixa lacunas em sua interpretação, abrindo possibilidades para estudos atuais. Nessa direção, poderíamos analisar como oscilação – e até mesmo como reverberações complexas – a coletividade, a autonomia e disseminação da voz dos pseudônimos, principalmente no estádio estético; a singularidade, reafirmação do eu autor em Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor.

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