Edição 314 | 09 Novembro 2009

Que peso tem para um filho o pai em pecado? Lacan leitor de Kierkegaard

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Márcia Junges e Jasson Martins

Mario Fleig examina a influência do pensador dinamarquês na obra lacaniana. Apesar dos elementos da melancolia presentes em sua filosofia, Lacan não o tomou como caso clínico.

“A referência ao nome de Kierkegaard na obra e no ensino de Lacan é marcante e decisiva”. A afirmação é do filósofo e psicanalista Mário Fleig, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. “Vemos que Lacan busca no filósofo dinamarquês pontos de apoio bem determinados para poder realizar o que denominou de ‘retorno a Freud’: a repetição, a angústia, a existência e o instante”. Entretanto, aponta Fleig, mesmo como um leitor atento de Kierkegaard, Lacan nunca o “tomou como um caso clínico, apesar de todos os elementos de sua melancolia estarem tão disponíveis”.

Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos, e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia pela UFRGS, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e pós-doutor  em Ética e Psicanálise pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França. Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard, apresenta em 12 de novembro a comunicação Lacan leitor de Kierkegaard: que peso tem para um filho o pai em pecado?

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as principais influências de Kierkegaard na obra de Lacan?

Mario Fleig - A referência ao nome de Kierkegaard na obra e no ensino de Lacan é marcante e decisiva. Encontramos o primeiro registro em uma discussão em maio de 1946, na qual Lacan convoca Kierkegaard para demarcar que o humor é uma forma de espirituosidade muito superior e que se manifesta particularmente no adulto e, portanto, bem diferente do humor na criança. Assim, vemos que Lacan busca no filósofo dinamarquês pontos de apoio bem determinados para poder realizar o que denominou de “retorno a Freud”: a repetição, a angústia, a existência e o instante. Este retorno se contrapõe às concepções que tendiam a introduzir na clínica psicanalítica as vias diretas de tratamento, assim como o pensamento de síntese, que inevitavelmente produz cristalizações no discurso e induz o analisante a “atuar” sua angústia. É nesta perspectiva que Kierkegaard fornece noções indispensáveis que valorizam o resto, o detalhe, a falha, enfim, o paradoxo que não se deixa resolver em qualquer síntese redentora.

A última referência ao solitário de Copenhague ocorre no seminário R.S.I, em 18 de fevereiro de 1975, e creio que seja importante lermos esta passagem, pois reúne as indicações da presença do dinamarquês no ensino do psicanalista.

“É certo que essas categorias [real, imaginário e simbólico] não são manejáveis facilmente. No entanto, elas deixam para si mesmas alguns vestígios na história, a saber, que afinal é por uma extenuação filosófica tradicional, cujo cume é dado por Hegel, que alguma coisa que brilhou sob um nome de um assim denominado Kierkegaard, a respeito do qual vocês sabem o quanto eu denunciei como convergente com a experiência que bem mais tarde apareceu com um Freud, e sua promoção da ek-sistência como tal. Há algo, me parece, que não se possa dizer ou não se possa encontrar no próprio Kierkegaard testemunho que é não apenas da promoção da repetição como algo de mais fundamental na experiência que a resolução dita tese, antítese, síntese sobre a qual um Hegel tramava a História, mas a valorização dessa repetição como de uma função fundamental, cuja medida se encontra no gozo e cuja relações (as relações vividas por Kierkegaard são aquelas de um nó, sem dúvida, jamais confessado, mas que é aquele de seu pai com a falta”.

Eu gostaria de destacar nesta citação, de modo breve, cinco pontos que evidenciam o impacto do dinamarquês na obra de Lacan. De saída, sobressai a contraposição à filosofia da síntese. Em seguida, Lacan propõe uma filiação de Freud ao dinamarquês por meio da noção de ek-sistência. Em terceiro lugar, o conceito de repetição, em contraposição à noção platônica de reminiscência, se constitui no ponto nodal da leitura que Lacan faz do filósofo, elucidando assim os emaranhados da confusão feita pelos leitores apressados de Freud entre transferência e repetição. A medida desta repetição, em quarto lugar, se revela na noção de gozo. E, por último, a indicação clínica que indica o ponto nodal na existência do filósofo: a relação com o pecado do pai. A partir deste ponto, na medida em que forem explorados, nos mostrará o quanto Lacan lê Kierkegaard como o antecessor direto de Freud.

IHU On-Line - Como a questão do pai em pecado aparece nos escritos do autor dinamarquês?

Mario Fleig - Em sua obra Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor, publicado postumamente, Kierkegaard se refere à influência que produziu nele, desde a infância, o velho melancólico que foi seu pai. Entretanto, é em suas notas pessoais de 1838 que encontramos o relato do famoso episódio que denomina de “tremor de terra” que produz terrível perturbação que o leva a uma nova interpretação de tudo o que se passa. “Uma falta devia pesar sobre a família inteira, um castigo de Deus planava sobre ela”. O pai pecara pelo menos duas vezes: em excesso de sofrimento, em sua atividade como pastor de ovelhas, ele havia blasfemado contra Deus; e o pai desposara apressadamente a mãe de Kierkegaard, antiga doméstica da casa, e tiveram um filho antes de nove meses do falecimento da precedente. A longevidade do pai não era uma benção, mas uma maldição, que já se mostrara nas catástrofes que se abatiam sobre a família: além dos desastres econômicos que atingia a todos, houve a perda de sua segunda mulher e de cincos filhos. O nó jamais confessado com seu pai se lê em seu Diário: “O próprio pai se tomava por culpado da melancolia de seu filho e o filho por aquela do pai, e era isso que os impedia sempre de se abrirem um com o outro”.

Lacan, evitando o erro banal de enveredar por uma psicologização do personagem, localiza como central a paixão pelo pai e certamente não é um mero acaso que o solitário dinamarquês tenha se tornado um multiplicador do pseudônimo, de tal modo que viesse a subverter o patronímio. Lacan, no final de seu ensino, introduzirá a pluralização do nome-do-pai e essa formulação não deixa de ter relação com os efeitos da falta paterna no roteiro fantasmático do filho, impondo-lhe uma série sem fim de disfarces do nome próprio.

IHU On-Line - O Seminário X, A angústia, de Lacan, é dedicado à angústia. O tratamento que Lacan dá a essa temática possui alguma fundamentação na filosofia kierkegaardiana? Em que aspecto?

Mario Fleig - A angústia como manifestação de um estado inconciliável e insuportável já fora descrita por Freud, que desenvolve duas ou talvez três formulações para tentar dar conta dela. Contudo, Lacan, sem deixar de lado o legado freudiano sobre a angústia como sinal da iminência do impossível, encontra em Kierkegaard o suporte para propor uma especificidade na vivência de angústia: é frente ao desejo do Outro que a angústia emerge, e em sua dimensão temporal, ou seja, o instante em que se precipita a iminência do desamparo radical.

IHU On-Line - É possível fazer uma leitura psicanalítica da obra de Kierkegaard? Quais obras poderiam ser lidas, com proveito dessa chave de leitura?

Mario Fleig - Lacan, atento leitor de Kierkegaard, jamais o tomou como um caso clínico, apesar de todos os elementos de sua melancolia estarem tão disponíveis. Bem pelo contrário, sua atitude sempre foi a de alguém que buscava apreender aquilo que ele teria a ensinar. E Kierkegaard tem muito a nos ensinar. Os quatro pilares que Lacan extrai de sua obra é uma pista notável: a repetição, a angústia, a existência e o instante. Além disso, a sutileza de sua escrita tem muito para ensinar o psicanalista em seu ofício: “não, uma ilusão nunca é dissipada diretamente, só se destrói radicalmente de uma maneira indireta”, afirma em Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor. O método indireto, a via oblíqua de se tocar na verdade insuportável de ser enunciada, o equívoco da boa interpretação que toca no real paradoxal, evitando o risco de produzir objetivação catastrófica, isso tudo o psicanalista pode aprender em cada fragmento da obra do solitário dinamarquês.

Assim, a relação de um psicanalista com Kierkegaard e seu pensamento poderia se inscrever no que foi denominado de psicanálise aplicada, mas não entendida de modo equivocado como a aplicação de seu saber e de seu método a objetos exteriores a especificidade da clínica psicanalítica, tais como as obras literárias ou artísticas, as religiões, as instituições, e outras disciplinas. Trata-se antes de evitar o que seja uma aplicação redutora de um saber totalmente pronto sobre um objeto passivo, sem nenhum reconhecimento da formulação original na obra considerada. Esta não parece ter sido a posição de Freud, que reconhece o valor próprio de uma obra, como afirma em seu ensaio sobre a Gradiva de Jensen.

Entretanto, os poetas são aliados de sumo valor e seu testemunho é altamente apreciado, pois costumam saber de uma multidão de coisas entre o céu e a terra com cuja existência nem sonha nossa sabedoria acadêmica. E, no conhecimento da alma, eles tomaram a nossa dianteira, nós homens vulgares, pois eles se abeberam em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência .

Confronto com o incontornável

Essa perspectiva freudiana foi ratificada por Lacan em seu comentário à obra de Marguerite Duras: 
Haveria, ele [Freud] diz, grosseria em atribuir a técnica admitida de um autor a alguma neurose. [...] a única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, se esta lhe for reconhecida como tal, é de se lembrar com Freud que, na sua matéria, o artista sempre o precede, logo, que não deve brincar de psicólogo onde o artista lhe abre a via .

Assim, a psicanálise se aplica, em sentido estrito, somente como tratamento, na situação em que um sujeito fala para um outro que o ouve. Deste modo, o interesse de um psicanalista por uma obra não visaria entender a obra como um sintoma, e nem mesmo se trataria de compreender ou de relacionar o discurso do escritor com um saber constituído, mas de confiar no escritor, no trabalho da escrita e na coerência interna da obra, em seu desenvolvimento lógico. E, longe da ideia de um discurso aparente, ocultando um sentido profundo, trata-se de operar uma decifração dos significantes em ação, ou seja, tomar o texto à letra.

De modo frequente, o interesse de um psicanalista por uma obra, na prática da psicanálise dita aplicada, começa por um questionamento que emerge no encontro com uma obra. O acontecimento que marca esse encontro entre o psicanalista e a obra seria o modo como a obra atinge um mesmo ponto de impossível, que Lacan denominou de um efeito de real, com a lógica dos instrumentos que lhe são próprios. Este ponto incontornável na obra tenderia a produzir efeitos no psicanalista e na sua prática, ou seja, o psicanalista reconheceria aquilo que a obra lhe ensinou. E isso, às vezes, permite à psicanálise aplicada a uma obra, ou a outra disciplina, ilustrar ou exemplificar a teoria, por meio, então, de um saber que interroga outro saber. Ora, Kierkegaard é um pensador que não cessa de nos confrontar com o incontornável, expresso em seus paradoxos e na radicalidade do instante extraordinário que presentifica a alteridade última, Deus.

Leia mais...

Mario Fleig já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Elas estão disponíveis na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br)

* As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. IHU On-Line número 150, O pai desautorizado: desafios da paternidade contemporânea, de 08-08-2005;

* Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. IHU On-Line número 179, Sigmund Freud. Mestre da suspeita, de 08-05-2006;

* O declínio da responsabilidade. IHU On-Line número 185, O século de Heidegger, de 19-06-2006;

* O delírio de autonomia e a dissolução dos fundamentos da moral. IHU On-Line número 220, O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, de 21-05-2007;

* “Querer fazer o mal parece algo inerente à condição humana”. IHU On-Line número 265, Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie, de 21-07-2008;

* Não cedas do teu desejo: é preciso sustentarmos o que falamos com voz própria. IHU On-Line número 295, Ecoeconomia. Uma resposta à crise ambiental?, de 01-06-2009;

* O direito ao gozo e à violência. IHU On-Line número 298, Desejo e violência, de 22-06-2009;

* IHU Repórter. IHU On-Line número 303, A ética da psicanálise. Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”?, de 10-08-2009.

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