Edição 314 | 09 Novembro 2009

A crítica de Gadamer e Kierkegaard à filosofia abstrata

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Márcia Junges e Jasson Martins

Caráter abstrato, vazio e desvinculado da prática é rechaçado por ambos pensadores, menciona Luiz Rohden. Outro ponto que os aproxima é a defesa e concepção de uma estética da vida.

Gadamer e Kierkegaard têm alguns pontos de proximidade. Um deles, central, explica o filósofo Luiz Rohden, é “a crítica ao modelo de filosofia abstrata, vazia, desvinculada da prática, com caráter absolutista. Ou ainda, uma crítica contundente ao modelo de ciência desvinculado da trama real da vida”. Além disso, completa, “a defesa e a concepção, com suas devidas distinções, estética da vida” são outras possíveis convergências. Na entrevista que segue, realizada por e-mail, Rohden analisa a presença de Kierkegaard na filosofia hermenêutica de Gadamer: mesmo não sendo tão citado quanto outros pensadores da tradição filosófica, Kierkegaard “pode ser considerado um dos pensadores que exerceu uma influência decisiva na construção conceitual do seu projeto hermenêutico”. Tal recepção se dá por duas vias. A primeira delas, indireta, acontece pela filosofia de Heidegger e Jaspers. A segunda, direta, pela interpretação e leitura de textos do dinamarquês, como Enter-Eller (A alternativa).

Rohden é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG, mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com a tese Experiência e linguagem: princípios da hermenêutica filosófica. Cursou pós-doutorado no Boston College, nos Estados Unidos. De suas obras, destacamos: O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997), Entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem (São Leopoldo: Unisinos, 2005) e Interfaces da Hermenêutica: método, ética e literatura (Caxias do Sul: Editora UCS, 2008). Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard apresenta em 12 de novembro a comunicação A presença de Kierkegaard na filosofia hermenêutica de H.-G. Gadamer.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se dá a presença de Kierkegaard na filosofia hermenêutica de Gadamer?

Luiz Rohden - Embora Kierkegaard não seja tantas vezes citado por Gadamer, explicitamente, quanto Platão, Aristóteles, Hegel, Husserl e Heidegger, ele pode ser considerado um dos pensadores que exerceu uma influência decisiva na construção conceitual do seu projeto hermenêutico. A recepção de Kierkegaard por parte de Gadamer se dá por duas vias; uma, a indireta, principalmente pela filosofia de Heidegger e de Jaspers, e a outra, direta, pela leitura e interpretação de textos escritos pelo pensador dinamarquês, especialmente o Enter-Eller (A alternativa). Ainda com relação à pergunta proposta, a apropriação de Kierkegaard por parte de Gadamer deve ser compreendida no contexto da filosofia alemã no período entre as duas grandes guerras mundiais, ou seja, a defesa e justificação do ‘mistério indecifrável da individualidade’ em contraposição crítica à filosofia acadêmica do século XIX e à fé liberal no progresso.

IHU On-Line - Quais são os principais pontos de proximidade entre ambos autores?

Luiz Rohden - Um dos pontos centrais que aproxima os dois pensadores é a crítica ao modelo de filosofia abstrata, vazia, desvinculada da prática, com caráter absolutista. Ou ainda, uma crítica contundente ao modelo de ciência desvinculado da trama real da vida. Ainda jovem, Gadamer encontrou em Kierkegaard uma construção teórica que contribuiu para justificar uma filosofia a partir do factum pelo viés do conceito teológico de simultaneidade pelo qual o pensador dinamarquês se contrapôs ao modelo de conhecimento pautado pelo compreender à distância. Gadamer apropriou-se deste conceito teológico e o aplicou ao âmbito filosófico na esteira da filosofia heideggeriana. Vinculado ao tema anterior, compreende-se a defesa da filosofia de cunho “existencial”, patrocinada por Kierkegaard e assimilada por Gadamer na metade do século XIX. Tanto a fé quanto a filosofia já não deveriam mais ser vistas desvinculadas da existência humana em sua finitude, múltiplas possibilidades de ação, historicidade etc. Outro ponto que os aproxima é a defesa e a concepção, com suas devidas distinções, estética da vida. Comungam da concepção segundo a qual, a fé para um e a hermenêutica para o outro, se efetivam enquanto uma experiência de vida, uma postura em relação ao real, muito mais que uma opção teórica. Atrelado aos aspectos anteriores, podemos mencionar ainda que ambos concebem um saber nos moldes da filosofia prática de Aristóteles. Kierkegaard concebe o conhecimento e o ser cristão enquanto uma tarefa, uma prática diária onde temporalidade e eternidade se entrelaçam e convivem dialeticamente; Gadamer justifica um modo de conhecer que costura unidade com multiplicidade, o dito com o não-dito [ainda] enquanto um movimento inesgotável, próprio dos amantes do saber.

IHU On-Line - Quais seriam as simultaneidades kierkegaardianas em Gadamer?

Luiz Rohden – Em primeiro lugar, de acordo com Gadamer, na esteira de Kierkegaard, simultâneo ‘não quer dizer ser-ao-mesmo-tempo, mas formula a tarefa, que é proposta aos crentes de intermediar entre si aquilo que não é ao-mesmo-tempo, como a própria presença e a salvação de Cristo’. Ora, o acontecer da simultaneidade se efetiva enquanto hermenêutica, compreensão, enquanto um movimento entre eterno e temporal, deuses e humanos efetivado pelo deus Hermes. Além disso, considerando o que já foi respondido na pergunta anterior, diríamos que a fé para um e a compreensão para outro são acontecimentos espelhados na metáfora da simultaneidade, ou seja, toda vez que lemos um texto, estamos efetivando uma simultaneidade entre sua letra e seu espírito, entre um tempo passado e o presente do intérprete, entre o mundo de sentidos possíveis e a instauração de sentido que acontece no ato de leitura. Nesse sentido, ocorre uma espécie de repetição que jamais será literal do que está contido num texto, mas será sempre criativa, seja porque ele é apenas uma direção [de sentido] seja porque a leitura é sempre uma espécie de recriação do original. Este espécie de simultaneidade gadameriana se efetiva no modelo estrutural do diálogo.

IHU On-Line - A obra mais importante de Gadamer, Verdade e método, está centrada na possibilidade de transmissão da verdade, através do diálogo. Não temos aqui uma oposição, à medida que a verdade para Kierkegaard é idêntica à verdade da fé, e por isso a dificuldade em transmiti-la?

Luiz Rohden - Eu não diria que a obra mencionada está preocupada pela “possibilidade de transmissão da verdade via diálogo”, mas que o diálogo, ou seja, a dialética dialógica gadameriana – espelhando-se nos diálogos platônicos – por um lado, critica o modelo de verdade identificado com o ideal de certeza veiculado pelas ciências modernas, e, por outro lado, justifica e sustenta que a verdade é sempre um acontecimento, que não se esgota num conceito e muito menos se congela no tempo e no espaço. Em Gadamer, ela se mostra no processo de uma procura incessante, séria e comprometida com o real, cujos corolários coerentes revelam-se sob diferentes âmbitos: ecológicos, éticos, existenciais.

IHU On-Line - Na sua opinião, é possível conhecer o pensamento de autores como Kierkegaard e Gadamer sem um prévio conhecimento da tradição cristã, sobretudo os escritos paulinos?

Luiz Rohden - Tanto um como outro construíram modos de explicitação e de compreensão apropriando-se da tradição cristã e, em minha opinião, sem se delimitarem aos escritos paulinos. Gadamer, um protestante descomprometido com dogmas religiosos, defendeu uma espécie de fé estética, o diálogo entre religiões, ao passo que Kierkegaard realizou uma contribuição fundamental para o próprio cristianismo. Contudo, sua contribuição não se esgota para o âmbito da fé, como todos sabemos.

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