Edição 314 | 09 Novembro 2009

O indivíduo como ponto inicial na filosofia kierkegaardiana

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Márcia Junges e Jasson Martins

Hannah Arendt compreendeu o uso estratégico dos pseudônimos do filósofo dinamarquês, e não o considerava individualista ou enclausurado, menciona Marcio Gimenes de Paula. Ela O tinha como um dos mestres da suspeita, que toma o indivíduo como ponto de partida

Nem individualista, nem enclausurado. Para Hannah Arendt, Kierkegaard valia-se de pseudônimos estrategicamente, e “sua posição de defesa do indivíduo não pode ser vista meramente como reacionária, mas antes como uma defesa diante da massificação, inclusive daquela operada pelos movimentos esquerdistas”. A explicação é do filósofo Marcio Gimenes de Paula na entrevista que concedeu, com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Ao lado de Nietzsche e Marx, Arendt coloca Kierkegaard, e não Freud, como um dos mestres da suspeita. O indivíduo em Kierkegaard deve ser compreendido como ponto inicial de sua filosofia, pontua Marcio. Outro tema discutido na entrevista é a questão da secularização na obra dos dois pensadores. Arendt entende-a como “momento onde os homens param de olhar para os céus e começam a preparar, a partir da sua condição dada, uma sociedade produzida por eles próprios. Nesse sentido, a política é, por si só, secularizante”. Por outro lado, para Kierkegaard, “descrente de sistemas e crítico da cristandade, a secularização é o ponto onde a humanidade vai inevitavelmente desembocar, pois depois da racionalização teológica, da massificação do homem e do tempo dos sistemas, tudo será explicado e resultará em produto da mão humana”.

Marcio Gimenes de Paula é graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Independente. Cursou graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Atualmente, é professor adjunto II do departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe - UFS, pesquisador da FAPITEC-SE, membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski), da Sociedade Brasileira de Filosofia da Religião, do Grupo de Pesquisa em Ciências da Religião da UFS, do Grupo de pesquisa sobre a obra de Kierkegaard da CNPq, e da Sociedade Feuerbach Internacional. Suas pesquisas versam sobre Filosofia da Religião, Ética, Kierkegaard e cristianismo. Publicou recentemente o livro Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard (São Paulo: Paulus, 2009). Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard, em 12 de novembro, apresentará a comunicação “A temática da secularização: Hannah Arendt, leitora de Kierkegaard”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são os pontos de contato entre o tema da secularização entre Arendt  e Kierkegaard?

Marcio Gimenes de Paula - A temática da secularização é bastante ampla e, a rigor, pode ser vista desde os primórdios do cristianismo. Ora ela parece se configurar com uma total ruptura dos conteúdos da fé e, em outros momentos, parece até ser um complemento da fé ou um aprofundamento dos seus conteúdos. Na obra de Hannah Arendt, pensadora política por excelência, penso que o ponto central se encontra exatamente na política. Em outras palavras, para a pensadora a secularização é vista como o momento onde os homens param de olhar para os céus e começam a preparar, a partir da sua condição dada, uma sociedade produzida por eles próprios. Nesse sentido, a política é, por si só, secularizante. Já para Kierkegaard, pensador do século XIX, descrente de sistemas e crítico da cristandade, a secularização é o ponto onde a humanidade vai inevitavelmente desembocar, pois depois da racionalização teológica, da massificação do homem e do tempo dos sistemas, tudo será explicado e resultará em produto da mão humana. Kierkegaard, seguindo a esteira agostiniana, é severo crítico do processo de secularização. Arendt parece ser sua observadora e admiradora, mas ambos enxergam o indivíduo perdido no meio de tudo isso. Talvez esse seja o ponto de contato entre ambos os pensadores.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da secularização em Kierkegaard para discutirmos o indivíduo em nossos dias?

Marcio Gimenes de Paula - Antes de mais nada, parece que nunca é demais lembrar que Kierkegaard sempre separou claramente indivíduo de individualismo. O indivíduo, na era dos sistemas filosóficos e de uma cristandade massificadora, como foi o tempo do autor dinamarquês, parece ter sido soterrado por uma avalanche promovida ora pelo Estado, ora pela Igreja e até pelas universidades. Restava, seguindo a pista socrática e cristã, recuperar este indivíduo único e indivisível, átomo e, se quisermos pensar aqui mais teologicamente, imago Dei. Hoje nossa situação não parece tão diferente. Temos um individualismo doentio e seguimos a ter os indivíduos sufocados pelas mais diversas instituições e pressões. Quando alguém vai até um culto qualquer e se sente feliz por estar na companhia de milhares de pessoas no ato de louvor, isso nada mais é do que um sintoma de que ninguém acredita no ato em si, mas espera a legitimação do mesmo na multidão.

IHU On-Line - Como percebe os conceitos de indivíduo e comunidade partindo da obra desse autor?

Marcio Gimenes de Paula - Kierkegaard é um filósofo que possui um profundo apreço por dois grandes personagens célebres da subjetividade. O primeiro é Sócrates.  O autor dinamarquês devota seus esforços a entender a filosofia socrática e sua afirmação pelo indivíduo. Mesmo quando o critica, Sócrates segue sendo a referência para um tempo que se perdeu em ilusões sistemáticas que parecem já tudo saber. Sócrates é o antídoto, o médico que aconselha o vômito em meio ao excesso de comilança. Por isso é que, não fortuitamente, ele será o modelo de toda a obra do autor até mesmo na crítica à Igreja oficial, já no final de sua produção.

Já Cristo é a figura do mistério. Ele é aquele que preferia falar com cada indivíduo ao invés de ser legitimado pela massa, pela multidão. Contudo, Kierkegaard compreende Cristo também como Deus, como aquele capaz de trazer a salvação para cada indivíduo.

IHU On-Line - Atualmente, o que é o indivíduo numa sociedade secularizada e pós-metafísica?

Marcio Gimenes de Paula - Confesso que não sei muito bem o que dizemos quando afirmamos viver numa sociedade secularizada. É bem verdade que, especialmente depois do século XIX, a política como produto dos homens constrói – para o bem ou para o mal – o mundo ao seu redor. Contudo, a secularização não deixa de ter nunca um pouco de religioso, e a prova disso é a situação em que vivemos no mundo todo e, em especial, no Brasil. Estão aí os muitos fundamentalismos, as casas legislativas cheias de sinais religiosos e os governos, como o caso do governo brasileiro, assinando acordos que parecem ameaçar seriamente a laicidade do Estado. Assim, penso que o indivíduo numa sociedade secularizada e pós-metafísica (o que também me parece confuso, mesmo com as explicações perspicazes do professor Gianni Vattimo ) ainda se encontra em suspenso, entre a descrença e o pavor, entre o medo e a desconfiança.

IHU On-Line - Como Arendt, enquanto filósofa política, lê Kierkegaard, um filósofo tido como individualista e que escrevia recluso em um “castelo”, sob pseudônimos?

Marcio Gimenes de Paula - Penso que Arendt tinha grande apreço por Kierkegaard e não o considerava um pensador individualista ou enclausurado. Segundo avalio, ela sabia muito bem que o uso que Kierkegaard fazia dos pseudônimos era estratégico e que, além disso, sua posição de defesa do indivíduo não pode ser vista meramente como reacionária, mas antes como uma defesa diante da massificação, inclusive daquela operada pelos movimentos esquerdistas. Arendt o coloca, em sua obra Entre o passado e o futuro, como um dos mestres da suspeita, juntamente com Nietzsche e Marx, isto é, ela contraria a tradicional divisão e o coloca no lugar de Freud. Não parece pouca coisa para quem atentar ao detalhe.

IHU On-Line - Nesse sentido, como você percebe a contraposição entre as filosofias de Kierkegaard e Marx?

Marcio Gimenes de Paula - Creio que Karl Löwith,  no seu clássico De Hegel a Nietzsche, aborda muito bem essa questão. Para ele, Kierkegaard é um típico pós-hegeliano e, como tal, se encontra numa esteira de pensadores que caminham entre a religião, a literatura e a política. Contudo, talvez Löwith tenha cometido um dado exagero ao colocar Kierkegaard no mesmo grau de contestação de Marx. O autor dinamarquês parece apontar claramente para um plano transcendente e sua política parece defender tal ponto o que, por si só, parece descaracterizar uma proposta política, embora tenha importantes contribuições para uma ética de fundo cristão e seja também importante para a alteridade. Marx parece romper com tal coisa, e sua proposta é claramente fundamentada no campo da imanência, na tentativa de alcançar a verdade pelos seus próprios esforços. Aqui penso que há uma diferença fundamental entre ambos.

IHU On-Line - Qual é a atualidade de Kierkegaard no contexto do pensamento filosófico contemporâneo?

Marcio Gimenes de Paula - A atualidade de Kierkegaard parece se provar, entre outras tantas coisas, por estarmos ainda hoje falando sobre ele, escrevendo sobre ele, organizando congressos, dando entrevistas. Numa era massificada, com instituições tão rígidas, penso que é fundamental a redescoberta do indivíduo e a ironia como instâncias significativas, lugares de onde a vida deveria partir. O indivíduo não é o ponto fundamental na filosofia de Kierkegaard, mas é talvez o ponto inicial. Por isso, sua influência é tão significativa em pensandores tão distintos como Paul Tillich,  Karl Barth,  Lacan,  Wittgenstein,  Heidegger, Jaspers,  Sartre,  Levinas, Hannah Arendt e tantos outros. Creio que muito mais do que ser kierkegaardiano, o desafio é pensar com e contra Kierkegaard quando necessário for. Compreendê-lo como uma perspectiva por onde se faz filosofia. Penso que isso dá muito mais alegria e sabor ao jogo.

Leia mais...

>> Marcio Gimenes de Paula já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Ela está disponível na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br)

Lutero, pai da modernidade, visto por Nietzsche. Entrevista publicada na edição 280 da Revista IHU On-Line, de 03-11-2008.

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