Edição 309 | 28 Setembro 2009

A compatibilidade entre fé e ciência

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Márcia Junges | Tradução: Lucas Schlupp e Walter Schlupp

Quando bem compreendidas, fé e ciência andam lado a lado, e não são contraditórias, acentua o cientista jesuíta William Stoeger. Novo ateísmo se baseia em concepção de um Deus muito pequeno, que precisa ser revista.

Desde garoto, o astrofísico jesuíta William Stoeger tinha interesse pela natureza e pelas ciências. Junto dessa inclinação, some-se o fato de vários parentes seus estarem envolvidos com ciência e serem católicos devotos. Estava semeado o canteiro no qual floresceria sua trajetória de cientista e padre. “Nunca vi conflito algum nisso”, reiterou na entrevista que concedeu, pessoalmente, à IHU On-Line, por ocasião de sua vinda à Unisinos, como conferencista do IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin e do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. No primeiro evento, proferiu a conferência Da evolução cósmica à evolução biológica. Emergência, relacionalidade e finalidade. No segundo, falou sobre Deus, algo a ver ainda hoje? Reflexões teológicas de um cosmólogo. Seguindo a linha discutida em suas duas conferências, Stoeger afirmou que “um dos principais lugares em que encontramos e até expandimos a nossa noção ou ideia de Deus é dentro das ciências naturais. Uma forma de ser padre é estar envolvido nestas coisas”. Em sua opinião, quando bem compreendidas, ciência e fé não entram em conflito. O surgimento dessas arestas, assinalou, se deve a “uma compreensão errada de uma ou de outra”. O novo ateísmo e seu fundamentalismo baseado na razão foi outro tópico da conversa com a IHU On-Line. Cientistas como Richard Dawkins, um dos expoentes dessa tendência, possuem uma concepção muito precária sobre o conceito de Deus, um “Deus muito pequeno”, alfineta Stoeger. “Se percebessem de que tipo de Deus bons teólogos estão falando, teriam que mudar sua crítica”. O cientista contou, também, mais detalhes sobre suas pesquisas em cosmologia, e disse ser esperançoso quanto ao futuro da humanidade, embora sejamos muito contraditórios enquanto seres humanos. Sabemos o que devemos fazer no que diz respeito à ética e à ecologia, mas tratamos as pessoas, natureza e outros organismos do universo como commodities, lamenta.

Stoeger é cientista do Grupo de Pesquisas do Observatório do Vaticano (VORG) e especialista em Cosmologia Teórica, Astrofísica de altas energias e estudos interdisciplinares relacionados com a ciência, a filosofia e a teologia. É doutor em Astrofísica pela Universidade de Cambridge desde 1979. Entre 1976 e 1979, foi pesquisador associado ao grupo de física gravitacional teórica da Universidade de Maryland, em College Park, Maryland. É membro da Sociedade Americana de Física, de Astronomia e da Sociedade Internacional de Relatividade Geral e Gravitação. Atualmente, leciona na Universidade do Arizona e na Universidade de São Francisco. É também membro do Conselho do Centro de Teologia e Ciências Naturais (CTNS). Entre outros, publicou As Leis da Natureza - Conhecimento humano e ação divina (São Paulo: Paulinas, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Onde você nasceu? Recebeu influências religiosas de sua família?

William Stoeger - Nasci no Sul da Califórnia, perto de Los Angeles, na cidade de Torrance. Cresci numa cidade vizinha chamada Redondo Beach, apenas a 10 km do aeroporto internacional de Los Angeles. Fui criado em uma família católica romana. Frequentei escolas católicas, tanto no fundamental quanto no colegial, e depois de terminá-lo, entrei na ordem jesuíta.

IHU On-Line - Como a sua história pessoal se reflete na sua vocação religiosa e científica?

William Stoeger - Sempre me interessei pela natureza e pelas ciências. Tive vários parentes, especialmente no lado da família da minha mãe, que eram muito envolvidos com ciência: em pesquisas agronômicas, geologia, engenharia e física espacial. Eram todos, além de cientistas, católicos devotos. Portanto eu nunca vi conflito algum nisso. Isso foi uma influência. Também na escola, especialmente no colegial, tive aulas com padres franciscanos que também tinham grande interesse em ciência.

IHU On-Line – E por que, especificamente, a tradição jesuíta interessou a você?

William Stoeger - Bem, eu acho que foi por causa das leituras que tive. Mesmo que eu tenha frequentado um colégio franciscano, conhecia alguns jesuítas. Há uma universidade jesuíta não muito longe de onde morei. Estudei um pouco lá durante o tempo de colegial.

IHU On-Line – Você leu Teilhard de Chardin?

William Stoeger - Não, eu não estudei Chardin, eu não o conhecia. Eu estudei matemática, aquilo que nos Estados Unidos chamamos de advanced placement mathematics. Quando estava no colégio estudei isso numa universidade jesuíta. Então eu decidi tentar estudar nela, e foi o que fiz.

IHU On-Line - Você disse que não vê conflito em ser cientista e padre. Então, como é ser padre e cientista ao mesmo tempo? Quais são os principais desafios? Existe alguma dificuldade?

William Stoeger - Bem, eu não penso que há dificuldades. Acredito que pode haver mal- entendidos. Particularmente, dentro das ordens religiosas, franciscanos ou dominicanos, ser padre é perfeitamente coerente com qualquer tipo de erudição ou atividade de pesquisa. E isso é certamente válido para a ordem jesuíta. Por exemplo, aqui na Unisinos, há jesuítas envolvidos principalmente na educação superior, e nos EUA é a mesma coisa. Eu acho que particularmente na tradição jesuíta existe essa ideia, uma ideia-chave, que é encontrar Deus em todas as coisas. Portanto, certamente, um dos principais lugares em que encontramos e até expandimos a nossa noção ou ideia de Deus é dentro das ciências naturais. Uma forma de ser padre é estar envolvido nestas coisas.

IHU On-Line - Este é o Ano Internacional da Astronomia. Quais foram as maiores descobertas desta ciência até o presente momento?

William Stoeger - Há muitíssimas! O Ano Internacional da Astronomia comemora as primeiras observações feitas com a utilização de um telescópio por Galileu  em 1609. E certamente ele foi uma das principais pessoas que começaram com toda essa ideia de que as estrelas e os planetas não são substancialmente diferentes da Terra. Havia essa ideia, antes disso, de que as estrelas e os planetas eram tidos como imutáveis e feitos de uma substância completamente diferente da Terra e da Lua, e, por isso, não estavam realmente sujeitos à investigação científica. Mas ele começou a mostrar que os planetas e estrelas também estavam sujeitos à investigação e consistiam em matéria. Então ele conseguiu começar a demonstrar, juntamente com outras pessoas como Johannes Kepler , que os planetas e a Terra giram em torno do Sol, ao invés de vice-versa. E, é claro, temos Isaac Newton,  que desenvolveu a teoria da gravidade. Mais recentemente, Einstein,  claro, o trabalho que ele fez em mecânica quântica e na sua teoria gravitacional, que completa aquela. Depois vem, naturalmente, Darwin.  Este também é o Ano de Darwin. E existem muitas outras descobertas também. Certamente, nos últimos vinte ou trinta anos, uma descoberta muito importante na astronomia e cosmologia foi a descoberta da radiação cósmica de fundo. A radiação de fundo é uma espécie de consequência do Big Bang. Então essa é uma descoberta fundamental.

IHU On-Line – Desde Galileu, quais aspectos melhoraram na relação entre ciência e religião?

William Stoeger - Eu acredito que houve muitas melhorias. Vejo que, de certa forma, Galileu estava à frente do seu tempo. Ele foi muito interessante, pois não achava que houvesse qualquer conflito entre ciência e religião. Já as pessoas que o criticavam achavam que sim. Elas viam alguns problemas entre a interpretação das Escrituras e o que as novas ciências estavam demonstrando. A ideia principal é de que, se compreendermos corretamente tanto a ciência quanto a fé, não há conflito. Na verdade, o surgimento de conflitos deve-se a uma compreensão errada de uma ou de outra. Por exemplo, se alguém entender errado o verdadeiro sentido dos primeiros capítulos de Gênesis, pode-se ver grandes conflitos, pode-se imaginar tremendos conflitos entre ciência e fé.

IHU On-Line - Caso interprete-se literalmente a Bíblia, não é mesmo?

William Stoeger - Literalmente, sim, se não percebermos que se trata de narrativas. Há profundas verdades naquelas narrativas, profundas verdades teológicas. Mas não há verdades científicas históricas nessas narrativas.

IHU On-Line - Ainda no tópico ciência e religião, o que o senhor pensa sobre o novo ateísmo  com que alguns cientistas, como Dawkins,  por exemplo, tentam combater o fundamentalismo da religião, utilizando outro fundamentalismo, baseado na razão?

William Stoeger - Esses tipos de argumentos infelizmente revelam uma falta de entendimento da parte de Dawkins ou outras pessoas. Geralmente apresentam uma versão de religião e uma versão do conceito de Deus que é muito precária. Se eles realmente lessem alguns dos principais teólogos, teriam percebido que entenderam errado o que a religião está realmente dizendo sobre Deus. O tipo de Deus que eles dizem que os crentes acreditam, é um Deus muito pequeno. Se percebessem de que tipo de Deus bons teólogos estão falando, teriam que mudar sua crítica. Eu acho que parte da crítica proveniente do ateísmo é perfeitamente justificável. Quero dizer, há vários tipos de Deus que eu também não acredito. Se alguém se diz ateu, uma pergunta que se deve fazer sempre é: em qual Deus você não acredita? Provavelmente muitos fiéis também não acreditam naquele tipo de Deus. Essa é a questão: O que é Deus? Ou: Quem é Deus? É muito importante que Deus seja um Deus muito grande, mas também um Deus ... com significado pessoal.

IHU On-Line - Professor, o que especificamente o senhor está pesquisando agora?

William Stoeger - Tenho duas grandes áreas em pesquisa. Eu pesquiso na área das ciências propriamente ditas, e faço algumas pesquisas interdisciplinares também. Minha pesquisa na área das ciências é basicamente em cosmologia, sobre o comportamento e a história do universo como um objeto específico de estudo. Portanto, essa é uma das pesquisas significantes que faço aqui, também com alguns cientistas do Brasil. No Rio, há dois cosmólogos brasileiros com quem trabalho no desenvolvimento de formas específicas de testar modelos do universo, usando observação astronômica. Isso envolve resolver, com esmero nos detalhes, as consequências observacionais de certos modelos de universo e dizer aos astrônomos quais observações fazer para testar esses modelos. E outro tipo de coisa em que tenho estado envolvido é verificar os limites das observações. Então estas são algumas das coisas em que tenho trabalhado. Entre elas, uma questão com a qual estou envolvido é o trabalho sobre energia escura. Energia escura é esse tipo de energia muito misteriosa que parece estar acelerando o universo.

A matéria escura também é um mistério, mas, na verdade, é matéria que se aglomera e forma halos em volta das galáxias; não a podemos ver, mas sabemos que está lá. A energia escura também é chamada de energia do vácuo. E isso é algo que provavelmente não tende a se aglomerar, que provavelmente está distribuída por igual pelo universo, e a evidência é de que ela faz com que a expansão do universo se acelere. Sem ela, a expansão do universo seria desacelerada, ficaria mais lenta. E nós pensamos que está acelerando. A única forma de explicar isso é com a energia escura. Escrevi um artigo que foi publicado há um ano, juntamente com um dos meus colegas brasileiros, sobre uma das formas para se determinar a quantidade de energia escura no universo.

IHU On-Line - Quem são estas pessoas que trabalham com o senhor aqui no Brasil?

William Stoeger - Ambos são da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, na Ilha do Fundão. Um deles é o Marcelo Evangelista  de Araújo e o outro é Marcelo Ribeiro.  Estes são os dois com quem trabalho.

IHU On-Line - Professor, minha próxima pergunta é bem especifica sobre ética. O senhor tem esperança em relação ao nosso futuro como humanidade, quanto ao comportamento que temos com a ética e o meio ambiente?

William Stoeger - Eu tenho esperança no futuro da humanidade. Mas nós, seres humanos, somos muito estranhos. Somos autocontraditórios no sentido de que, às vezes, temos ideais elevados, mas em várias oportunidades nos comportamos de forma contrária a estes ideais, e contrária aos nossos melhores interesses. Algumas vezes, temos uma noção geral do nosso futuro, mas frequentemente agimos contra isso. Na verdade, tenho esperança, mas essa esperança depende de agirmos mais racionalmente, com muito mais respeito e reverência para com a criação e outras pessoas. Isso porque, frequentemente, tratamos as outras pessoas, a natureza e os outros organismos do universo, simplesmente, como commodities.

IHU On-Line - Como objetos?

William Stoeger – Sim, como objetos, para nosso próprio uso. E vemos isso o tempo inteiro. Até mesmo na prática empregatícia, ao tratar os empregados. Não os tratamos como indivíduos, mas como mercadoria. Este é um aspecto que sempre haverá, mas, enquanto isso for uma prioridade, enquanto essa for a principal maneira que lidamos com as coisas, então não estaremos agindo eticamente.

IHU On-Line - O que o senhor gosta de fazer no seu tempo livre?

William Stoeger - Eu gosto de fazer caminhadas ao ar livre, que costumamos chamar de hike. Fazer uma hike significa fazer longas caminhadas nas montanhas, nos desertos, e assim por diante. Eu gosto de estar ao ar livre. No Arizona, temos muitas oportunidades para isso. Temos desertos, montanhas e o Grand Canyon. Eu não tenho tempo suficiente para fazer isso, mas é algo que eu faço de vez em quando. Às vezes eu assisto esportes na TV.

IHU On-Line - Você gosta de futebol?

William Stoeger - Eu gosto de futebol americano. Eu também gosto de futebol (soccer), que eu costumava jogar. Mas não gosto de assistir.

IHU On-Line - Você já esteve muitas vezes no Brasil?

William Stoeger - Sim, já estive! Essa é a quinta ou sexta vez que estou no Brasil. Mas é a primeira vez na região Sul. Outras vezes estive no Rio, em São Paulo, Goiânia e Brasília, onde fiquei alguns meses. É que um dos meus colegas, que agora está no Rio, Marcelo de Araújo, estava na Universidade de Brasília (UnB) por um tempo. Então acabei trabalhando alguns meses lá, com ele.

Leia mais...

William Stoeger já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. O material está disponível na nossa página eletrônica do IHU.

Entrevistas:

- Astrofísica, cosmologia e a busca de Deus no universo. Publicada nas Notícias do Dia 26-06-2006;

- “Sem a evolução cósmica não haveria evolução biológica”. Publicada na Revista IHU On-Line, edição 306, de 31-08-2009;

- “As ciências naturais não podem dizer o que Deus é ou não é”. Publicada na Revista IHU On-Line, edição 308, de 14-09-2009.

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