Edição 309 | 28 Setembro 2009

Religiões orientais e a reflexão da renovação constante da existência

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Patricia Fachin

Frank Usarski analisa as peculiaridades e contestações existentes entre budismo, hinduísmo e a relação de ambos com os monoteísmos

Na opinião do professor Frank Usarski, em época de globalização, “a questão da origem das religiões e, com isso, a dicotomização entre ‘religiões ocidentais’ e ‘religiões orientais’ é cada vez menos relevante”. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line, por e-mail, o pesquisador aborda as diferenças e semelhanças entre os monoteísmos e as religiões orientais. Entre elas, cita o grau do potencial salvífico ao ser humano. Ele explica: “O contraste maior nesse sentido existe entre o protestantismo e sua ênfase na graça divina como elemento soteriológico central, por um lado; e o Budismo Teravada parte do pressuposto que o alcance de nirvana cabe a cada seguidor do caminho óctuplo  ensinado por Buda, cujo nirvana era resultado dos seus autônomos esforços espirituais”.

Usarski é docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Cursou o pós-doutorado em Ciências da Religião na Universidade de Hannover, na Alemanha. Atualmente leciona temas relacionados às Religiões Orientais e também é líder do grupo de pesquisa Centro de Estudos de Religiões Alternativas de Origem Oriental no Brasil – Ceral. De suas obras, citamos Constituintes da Ciência da Religião. Cinco ensaios em prol de uma disciplina autônoma (São Paulo: Paulinas, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a especificidade das religiões orientais? O que as diferenciam de outras religiões como as monoteístas, por exemplo? Existe também alguma semelhança?

Frank Usarski - Em primeiro lugar, temos que lembrar que todas as chamadas “grandes religiões”, inclusive a religião “ocidental” par excellence, o Cristianismo, surgiram no Oriente. Ao mesmo tempo, sabemos que, na época da globalização e devido a processos de difusão intensificada das religiões para qualquer parte do mundo, a questão da origem das religiões e, com isso, a dicotomização entre “religiões ocidentais” e “religiões orientais” é cada vez menos relevante. Mas isso não significa que de princípio sua pergunta não implica categorias heuristicamente funcionais, ou seja, na sua pergunta, repercute uma classificação que tem uma boa tradição nos estudos da religião, como a seguinte citação do ensaio A Psicologia Social das Religiões Mundiais de Max Weber demonstra. Conforme o famoso autor, no mundo religioso, “encontra-se a diferenciação entre o conceito de um Senhor da Criação supramundano, pessoal, irado, misericordioso, amante, exigente, punitivo. Ele contrasta com o ser supremo [...] impessoal.” Segundo Weber, o primeiro conceito encontra-se nas “religiões iraniana e do Oriente Médio”, dos quais derivaram as religiões ocidentais. O conceito oposto “dominou a religiosidade indiana e chinesa”. Nesse parágrafo, Weber associa as religiões atualmente chamadas “ocidentais” com a religiosidade monoteísta, enquanto delimita as religiões orientais e as tradições do Sudeste e do extremo leste da Ásia, evitando confusões potenciais da categoria “oriental” devido à localização da Palestina e da Península Arábica, duas regiões de alta importância para a história das religiões. Visto nessa perspectiva, podemos identificar três tendências principais que distinguem as “religiões ocidentais” das “orientais”. O primeiro aspecto já consta na citação de Max Weber: diferente das religiões monoteístas, Budismo, Taoísmo e – abstraindo de determinadas correntes hindus como o bhakti – Hinduísmo caracterizam-se por um conceito impessoal da “última realidade”, simbolizado por expressões como śūnyatā, tao ou brahman. O segundo aspecto refere-se ao conceito do tempo. As religiões monoteístas partem da hipótese de um tempo linear tanto no nível cosmológico quanto no nível individual. O mundo foi criado do nada, desenvolve-se e vai chegar a seu fim. Analogicamente, nossa existência atual, marcada pelo nascimento e pela morte, é a única vida no sentido mundano que nos é dada. Trata-se de ideias em tensão com o pensamento cíclico típico para o Hinduísmo e Budismo, mas que encontram-se também no Taoísmo na medida em que a renovação constante da existência “macro” é tema das reflexões. A terceira diferença consta no grau do potencial salvífico ao ser humano. O contraste maior nesse sentido existe entre o protestantismo e sua ênfase na graça divina como elemento soteriológico central, por um lado; e o Budismo Teravada parte do pressuposto que o alcance de nirvana cabe a cada seguidor do caminho óctuplo ensinado por Buda, cujo nirvana era resultado dos seus autônomos esforços espirituais. Além desses elementos opostos, há inúmeras semelhanças entre elas, alguns que relativizam consideravelmente a oposição entre as religiões ocidentais e orientais. Por exemplo, algumas correntes dentro do Budismo Mahayana, predominante no Extremo Oriente, destacam uma concepção de graça compatível com o pensamento cristão. Ao mesmo tempo encontram-se articulações de místicos cristãos que se aproximam da imagem impessoal da última realidade, portanto de uma tendência frequentemente encontrada em tradições orientais.

IHU On-Line – Como o senhor descreve o Budismo? Que aspectos o caracterizam e o diferenciam de outras religiões orientais?

Frank Usarski - A pergunta é extremamente complexa e uma resposta detalhada transbordaria os limites formais dessa entrevista. Sob essas condições, tenho que me contentar com um resumo insatisfatório para um leitor que possui pelo menos um conhecimento razoável sobre o budismo.  De acordo com várias fontes, Siddharta Gautama viveu entre 560 a.C. e 480 a.C. Nos séculos posteriores, o Budismo espalhou-se pela Ásia, assumindo traços próprios em reação a padrões culturais estabelecidos nas regiões anfitriãs. Apesar da sua atual diferenciação interna, todas as correntes partem de princípios básicos, entre eles os seguintes: Um elemento-chave é a identificação do Buda como mestre iluminado dedicado à divulgação de um conhecimento soteriológico completo que merece confiança profunda por parte dos seus seguidores. A alta relevância desses aspectos é indicada pela fórmula clássica “Eu tomo refúgio no buda; Eu tomo refúgio no dharma; Eu tomo refúgio na sangha”, mediante a qual o adepto salienta seu compromisso com a memória do fundador e a aplicação dos seus ensinamentos (dharma) em um contexto sociológico distinto (sangha, isto é, a comunidade budista). Todas as correntes budistas aceitam a visão de que toda a existência é transitória e, portanto, impermanente. Isso vale também para a constituição do ser humano que é – como qualquer outro fenômeno - formado por fatores existenciais temporários sujeitos de um processo contínuo do devir. Esse insight repercute nas chamadas quatro nobres verdades, as quais salientam que 1) a vida é marcada pelo sofrimento; 2) o sofrimento tem suas raízes em conceitos falsos e atitudes erradas; 3) o sofrimento pode ser vencido sob a condição de que suas raízes sejam superadas e 4) que o método de superar a situação existencialmente precária consta no caminho óctuplo ensinado pelo Buda para alcançar o nirvāna, objetivo soteriológico do Budismo qualificado pela extinção das raízes do sofrimento e, portanto, pela ausência do mesmo.

Distinção entre Budismo e Hinduísmo

Muitos dos aspectos acima mencionados aparecem também no âmbito do Hinduísmo o que, às vezes, dificulta a identificação de diferenças entre as duas religiões. Menciono aqui apenas três pontos de distinção. Primeiro, o Budismo nega explicitamente a ideia de um self no sentido de uma entidade imutável que caracteriza um indivíduo independentemente das formas nas quais ele renasce. A rejeição dessa ideia encontra-se, sobretudo, no conceito budista de “anatta”, termo técnico que se refere negativamente (prefixo “a”) ao conceito hindu do ātman (self). Segundo, no Budismo, há uma radicalização da ideia da transitoriedade, também bastante conhecida pelo Hinduísmo. Essa radicalização faz com que o Budismo - diferentemente do Hinduísmo, que localiza suas grandes divindades fora do samsāra (esfera da existência marcada pela mudança continua e do sofrimento), – não reconheça nenhum ser, inclusive seres “divinos”,  que não seriam submetidos à lei da transitoriedade. Terceiro, há diferenças no que diz respeito à retórica referente ao objetivo soteriológico de cada religião. Ambas associam esse objetivo com a liberdade do sofrimento, mas o Hinduísmo define o objetivo como moksha, um status da consciência associada com valores positivos como “eternidade” e “beatitude”. O Budismo optou por uma abordagem “apofática”, caracterizando o nirvāna em termos “negativos”. Ou seja, em vez de simplesmente “definir” o nirvāna, o último é circunscrito como algo diferente de tudo que nós conhecemos.

IHU On-Line - Como o budismo pode nos ajudar a lidar com nossos desejos infindáveis e a encontrar um estado de equilíbrio?

Frank Usarski - Pelo que entendi a partir dos meus estudos, o Budismo oferece um instrumentário rico em prol de um autodesenvolvimento nos níveis das sensações, do pensamento e das ações. Este autodesenvolvimento baseia-se em práticas meditativas ou devocionais – dependente sobre qual subcorrente budista falamos. Ao mesmo tempo, diversos elementos do caminho óctuplo implicam exigências éticas profundas que devem nortear a prática e o comportamento cotidiano de um budista. Tudo isso contribui para o “equilíbrio” – para repetir a ultima palavra da sua pergunta.

IHU On-Line – Em relação ao Hinduísmo, o senhor pode nos explicar porque ele tende a seguir uma linha de ortopraxia ao invés da ortodoxia?

Frank Usarski - O termo Hinduísmo deriva de uma nomenclatura alheia que se refere ao povo vivendo nas margens do rio Sindhu. A antiga autodenominação dessa religião é sanātana dharma. Sanātana significa “eterno”. Dharma é uma expressão polissêmica. A denotação mais citada é “ordem”. Trata-se de uma ordem inerente da vida cuja onipresença pode ser identificada em vários níveis da existência. Portanto, sanātana dharma articula-se no sentido cósmico, social e individual, e todas essas “camadas” são intimamente inter-relacionadas. O sistema de castas, por exemplo, é expressão da ordem cósmica no nível social. O mesmo vale para a organização da biografia ideal de um hindu em quatro estágios. Uma vez que o universo representa um sistema macro no qual cada parte “comunica-se” com todas as outras, qualquer desrespeito do dharma por parte de um ser humano é capaz de perturbar a ordem e prejudicá-la  - com consequências negativas para a própria vida humana. Por isso, não a fé correta, mas o comportamento correto é tão enfatizado pelo Hinduísmo.

IHU On-Line – Como percebe o Budismo em face do Hinduísmo e das três religiões monoteístas? Há espaço para troca de valores e negociações?

Frank Usarski - Mais uma pergunta cuja complexidade impede uma resposta satisfatória. Tentei elaborar exatamente essa problemática na minha tese de Livre Docência, o que já aponta para a complexidade da sua pergunta e da impossibilidade de responder a ela nesse contexto formalmente restrito. Portanto, tenho que me contentar novamente com algumas alusões que não satisfarão um leitor que já estudou o Budismo.

Quanto à relação entre o Budismo e o Hinduísmo, apenas o seguinte: embora o Buda tenha incorporado uma série de elementos constitutivos do Hinduísmo, ele se colocou criticamente em relação à tradição dos Vedas, à fixação de um saber revelado e à justificativa suprema do sistema de castas.  Também não aceitou a “certeza” dos brâmanes de possuir o monopólio dos “bens religiosos”. Diversos trechos do cânone páli relatam encontros entre o Buda e representantes da religião védica frequentemente problematizando a competência religiosa dos brâmanes e sua posição na antiga sociedade hindu.

Quanto à relação entre o Budismo e as três religiões monoteístas, o ponto mais nevrálgico é a negação do Budismo de qualquer entidade duradoura existencial, uma postura que implica naturalmente a rejeição da ideia de um ser supremo estável e eterno. Sobretudo por parte da chamada “escola de Kyoto”, há tentativas filosóficas de mediar entre a ontologia budista não-teísta e o pensamento teológico propriamente dito, mas, a final de contas, nesses e outros pontos, permanece a tensão, ou, às vezes, até mesmo, um abismo “ideológico” entre o Budismo e as tradições monoteístas. 

IHU On-Line – Como as crenças budistas contribuem para a construção do diálogo inter-religioso?

Frank Usarski - Isso depende de vários fatores, inclusive da questão sobre qual corrente budista falamos e em que contextos culturais budistas foram desafiados pela existência de outras religiões.  Do ponto de vista histórico, é possível identificar cerca de uma dúzia de posturas que o Budismo tomou quando foi confrontado com alternativas religiosas. Cito aqui apenas dois exemplos extremos. Um representa uma postura tendencialmente inclusivista, o outro uma postura explicitamente exclusivista. A primeira atitude é conhecida como upāya, termo técnico frequentemente traduzido como meios habilidosos. Essa figura retórica tem desempenhado um papel importante, sobretudo para o Budismo do Extreme Oriente e do Tibet no posicionamento do Grande Veículo. A lógica de upāya inclui a ideia de que a verdade religiosa, embora ela se manifeste mais explicitamente em forma do Budismo Mahāyāna, pode se articular em várias facetas. Nesse sentido, o Cristianismo, por exemplo, pode ser a expressão temporariamente adequada para indivíduos que, devido ao seu carma e progresso no caminho “eônico” em direção à liberação última, nascerem em uma família cristã. Com isso a figura retórica de upāya, uma vez que permite um olhar construtivo diante de fundadores e protagonistas de sistemas não-budistas, interpretados como co-participantes do trabalho salvífico universal do Buda. Em oposição a essa argumentação, encontram-se, no chamado cânone páli, ou seja, nos textos mais antigos do Budismo, diversos trechos que apresentam uma atitude exclusivista, ou seja, mostram a forte tendência de rejeitar abordagens e ofertas espirituais não-budistas. A moral das respectivas histórias é a de que não é possível atingir a salvação fora do sangha, isto é, da comunidade dos aderentes do Buda. As demarcações acontecem em diálogo com representantes de outras religiões indianas. Os últimos são identificados como inferiores e incapazes de entender a mensagem do Buda na sua profundidade. O questionamento de autoridades convencionais articula-se de maneira mais específica no Virecana-Sūtra. Nesse texto, o Buda se refere a líderes de outros movimentos, comparando-os a médicos incapazes de oferecer ajuda adequada a seus pacientes, uma vez que possuem apenas remédios direcionados ao tratamento de sintomas superficiais, sem que a eficácia desses procedimentos limitados seja garantida. Em comparação com essas abordagens fragmentárias, a medicina oferecida pelo Siddhartha Gautama é bem-sucedida e confiável sob quaisquer circunstâncias e, mais importante ainda, vai diretamente ao ponto, isto é, cura as raízes de todos os tipos de sofrimento.

IHU On-Line – Hans Küng, teólogo alemão, propõe uma ética mundial como caminho para a construção da paz planetária. O senhor concorda com essa proposta? As religiões podem ajudar nessa caminhada?

Frank Usarski - Por apelar na responsabilidade das religiões diante da crise mundial, a abordagem de Küng abre um caminho para um diálogo entre as religiões que põe entre parênteses as inegáveis diferenças ideológicas entre elas, cuja articulação impede que encontros inter-religiosos acabem em harmonia. Com isso, o modelo de Küng transcende as tensões entre as religiões que se desenvolvem tipicamente ao redor da reivindicação de cada uma de possuir a melhor, ou até mesmo, única válida oferta religiosa no sentido de filosofia e prática espiritual.  Em outras palavras, em vez de gastar tempo e energia com disputas religiosas propriamente ditas, Küng quer sensibilizar os porta-vozes das religiões para a precariedade da situação atual que está requerendo ações concertadas de todas as forças sociais que se sentem responsáveis e estão dispostas a contribuir na medida do possível - apesar de diferenças fundamentais entre as religiões.

Desse ponto de vista, a proposta de Küng representa uma contribuição importante para a convivência das religiões em um mundo cada vez mais globalizado.

IHU On-Line – É possível falar em sociedade pós-metafísica, pós-religiosa? O senhor percebe, nesse cenário pós-metafísico, diferenças na atuação das religiões orientais e ocidentais?

Frank Usarski - Sendo sociólogo que acompanha a discussão sobre o status atual e o futuro da religião no mundo contemporâneo, a fala sobre uma época "pós-metafísica" (que belo, mas impertinente termo filosófico!) está em tensão alta com as observações empíricas. Isso vale tanto para o papel forte da religião nas sociedades modernas ocidentais, no sentido de um elemento subjetivo, quanto para países orientais, inclusive aqueles nos quais o islã continua a ser um fator-chave político.

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