Edição 309 | 29 Janeiro 2009

Taoísmo. Alternância e combinação de duas polaridades indissociáveis

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Patricia Fachin

O Taoísmo aponta para um campo bastante heterogêneo de visões de mundo, saberes e práticas, profundamente imbricadas na longa história da civilização chinesa, diz José Bizerril

Existem várias tradições taoístas, algumas são até consideradas religião, com templos, sacerdotes e uma imensa profusão de deuses e espíritos. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o antropólogo José Bizerril apresenta características da linhagem trazida ao Brasil pelo mestre Liu Pai Lin. Dentro desta perspectiva, esclarece, “o Taoísmo poderia ser entendido como um modo de vida baseado nos ensinamentos de Laozi, um personagem do século VI a. C. e na compreensão do Livro das Mutações, não como um texto meramente oracular, mas como um verdadeiro tratado sobre os segredos do cosmo”.

A origem de todos os fenômenos do Taoísmo é baseada em “um principio misterioso e indescritível, o Tao”. Segundo o pesquisador, as tentativas de descrever e explicar o Tao estariam fadadas ao fracasso, “pois ele se encontra além das palavras”. Como o Taoísmo desenvolve uma compreensão contemplativa da natureza, é possível compreendê-lo através da experiência pessoal, da meditação.
Ao refletir sobre a possibilidade de uma sociedade pós-metafísica, Bizerril é categórico e lembra que o mundo não se modernizou da mesma forma e com a mesma intensidade. Falar de uma sociedade pós-religiosa só será possível “à medida que os processos de modernização ocidentalizante” chegarem a outras partes do globo. E conclui: “Mesmo nos países capitalistas mais ricos do planeta, as religiões continuam a ter alguma expressão. E, além disso, ainda temos de levar em consideração o fenômeno recente da expansão acelerada de formas fundamentalistas de religiosidade na maioria das grandes religiões mundiais, que, em alguma medida, contradiz o argumento do fim ou da superação das religiões”.

Bizerril é bacharel em História, mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília - UnB. Atualmente, é docente do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, coordenador do grupo de pesquisa interdisciplinar Diálogo. É autor de O Retorno à Raiz: uma linhagem taoísta no Brasil (São Paulo: Editorial Attar, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a origem do Taoísmo? Em que são baseados seus fundamentos e práticas?

José Bizerril - Falar em Taoísmo é apontar para um campo bastante heterogêneo de visões de mundo, saberes e práticas, profundamente imbricadas na longa história da civilização chinesa. Diante desta diversidade, me parece problemático falar do Taoísmo em geral, como se fosse um todo homogêneo. Considero proveitoso dar uma resposta mais contextualizada a esta pergunta, o que é um hábito intelectual do ofício de antropólogo. Como é o caso em outras grandes tradições espirituais, existem várias versões e linhagens do taoísmo. Existem versões da tradição taoísta mais próximas do que o leitor não-especialista consideraria como uma religião, com templos, sacerdotes, complexos rituais e uma imensa profusão de deuses e espíritos hierarquizados sob a forma de uma burocracia imperial celeste. Por outro lado, na versão específica do Taoísmo que tive a oportunidade de estudar no Brasil, a linhagem trazida ao país pelo mestre Liu Pai Lin  e continuada por seus discípulos e por seu filho, formada exclusivamente por um quadro de praticantes laicos, as referências principais para se definir o Taoísmo seriam o Tao Te Ching, de Laozi,  e o I Ching (o Livro das Mutações) e um conjunto de práticas baseadas nos princípios descritos nestes dois textos clássicos.  Dentro desta perspectiva, o Taoísmo poderia ser entendido como um modo de vida baseado nos ensinamentos de Laozi (provavelmente um personagem do séc. VI a.C.) e na compreensão do Livro das Mutações, não como um texto meramente oracular, mas como um verdadeiro tratado sobre os segredos do cosmo.

Para listar de forma sintética os fundamentos do Taoísmo, em primeiro lugar, a origem de todos os fenômenos seria um princípio misterioso e indescritível, o Tao. Pessoalmente, recomendo cautela quanto à ideia de traduzir Tao por Deus, como fizeram os padres jesuítas de Macau, quando traduziram o Cânon Taoísta para o português, e como fazem também alguns praticantes brasileiros. Segundo o primeiro poema do Tao Te Ching, a própria tentativa de descrever o Tao e, ainda mais, de explicá-lo, seria fadada ao fracasso, pois ele se encontra além das palavras. No entanto, ele pode ser compreendido por meio da experiência pessoal, principalmente de caráter meditativo. Existe uma forte relação entre o Taoísmo e a compreensão contemplativa da natureza. Tanto o Tao Te Ching quanto o I Ching descrevem a natureza (O Céu e a Terra) como caracterizada pelo movimento lento, circular e incessante. Um movimento perpétuo de alternância e combinação de duas polaridades indissociáveis, yin e yang.

Princípios taoístas

Um princípio fundamental do Taoísmo seria o retorno a um estado de espontaneidade original que permitiria viver em harmonia consigo próprio, com os outros e com os ritmos do cosmo, adaptar-se às diferentes configurações que o mundo assume, fluir com os movimentos da natureza. Este ajustar-se naturalmente às situações, da forma mais eficaz e com o mínimo de esforço, pode ser descrito pelo termo Wu-wei, frequentemente traduzido por Não-ação. Este estado também é descrito no Tao Te Ching como equivalente à condição de uma criança, flexível e cheia de vitalidade, movendo-se incansavelmente. Paradoxalmente, para se chegar a esta condição de espontaneidade, há uma grande quantidade de treinamentos cuja prática diária demanda uma boa dose de disciplina. E que, de todo modo, objetivam a obtenção simultânea da serenidade e da plenitude da vitalidade, que teriam como efeito a longevidade. Os taoístas valorizam o silêncio, o cultivo de um estado de tranquilidade mental e emocional e a habilidade de cultivar e preservar a força vital. Na linhagem que estudei, há uma série de treinamentos de qigong,  meditação sentada e em pé, e dentre as artes marciais internas chinesas, o Tai Chi Chuan, outras práticas que servem a esta finalidade. Mas não há uma dimensão cerimonial elaborada, equivalente às pujas hindus ou budistas, nem às liturgias cristãs. Para a maioria das práticas desta linhagem, basta a própria pessoa, uma roupa confortável e um lugar tranquilo, de preferência, mas não obrigatoriamente próximo de uma bela paisagem natural.

IHU On-Line - Quais são as especificidades que caracterizam o Taoísmo, sua filosofia? No contexto taoísta, o que significa o ensinamento do Tao?

José Bizerril - Por reconhecer a insuficiência das palavras e do intelecto para compreender o Tao, a explanação filosófica do taoísmo vem associada a uma prática meditativa.  Além da centralidade de compreender o Tao, consequentemente os segredos da natureza, o Taoísmo se caracteriza por pensar a complexidade dos diversos aspectos da vida por meio de um número pequeno de princípios, com aplicações diversas. Um princípio central seria a harmonia e alternância entre yin/yang, duas polaridades que compõem todos os fenômenos, mas que são definidas relacional e contextualmente. Sendo assim, ativo/receptivo, claro/escuro, expansão/recolhimento são momentos de um movimento incessante e não essências imutáveis. Estes princípios teriam aplicações na medicina tradicional chinesa, nas artes marciais internas, nas relações humanas, na descrição dos ciclos da natureza, na organização da paisagem geográfica, entre outros. Se um Tai Chi é a união de yin e yang em movimento, então várias situações podem ser pensadas nestes termos: uma sessão de massagem Tui-ná, um encontro amoroso, uma luta, a relação do ser humano com o ambiente natural etc. 

Um outro aspecto relevante da filosofia taoísta é o seu antiutilitarismo. O filósofo Zhuangzi,  talvez um dos autores taoístas mais importantes depois de Laozi, narra a história de uma árvore gigantesca que só pôde se desenvolver plenamente por não ter nenhuma utilidade: não produzia frutos comestíveis, sua madeira não era própria para carpintaria, suas folhas e raízes não tinham propriedades medicinais, nem odor agradável. Se tivesse sido útil, há muito teria sido cortada ou explorada e não teria chegado ao seu tamanho colossal.

Não sendo redutível ao conhecimento intelectual nem a uma finalidade utilitária, o aprendizado do Tao ocorre na relação prolongada com um mestre, um sábio que personifica para o aprendiz a realização do Tao sob a forma de uma experiência vivida, pois ele encarna esta compreensão em sua própria presença corporal. Alguns índices de realização a se esperar idealmente de um mestre taoísta seriam uma boa condição de saúde, a serenidade do espírito, a espontaneidade. Na transmissão de mestre Liu, sua alegria de viver, sua inteligência viva e sua idade avançada, desvinculada de sinais de decrepitude, expressavam ostensivamente para seus discípulos sua compreensão do Tao. Uma outra característica importante da transmissão taoísta é que o ensinamento de um mestre vivo se transforma constantemente. Com o passar dos anos, muda o conteúdo do ensinamento, bem como a forma de ensinar, ainda que se preservem os princípios fundamentais do taoísmo.

Em uma segunda instância, além do contato com o mestre, aprende-se sobre o Tao por meio da prática diária dos treinamentos taoístas, ensinados por alguém com suficiente experiência e compreensão para participar de sua transmissão. E, por fim, à medida que os treinamentos refinam um tipo de sensibilidade intuitiva no praticante, aprende-se sobre o Tao por meio da contemplação da natureza e do estudo dos clássicos taoístas.

IHU On-Line - O senhor pode nos explicar o fundamento das três joias: compaixão, moderação e humilhação? É possível pensar a construção da paz mundial através desses parâmetros?

José Bizerril - As três virtudes taoístas mencionadas por Laozi poderiam ser traduzidas por compaixão, moderação e humildade. O sacerdote taoísta Wu Chih Cherng, que presidiu a Sociedade Taoísta do Brasil, as traduziu como “afetividade, simplicidade e modéstia”. Elas podem ser consideradas como o fundamento para uma ética taoísta. A compaixão dos taoístas se refere ao cuidado e interesse pelo bem-estar dos outros. No entanto, diferente de tradições que valorizam o sacrifício da própria vida em benefício dos outros, na tradição taoísta, o cuidado altruísta com os outros vem acompanhado da recomendação de saber se preservar, isto é, de beneficiar aos outros sem para isto ter de se prejudicar.  A moderação diz respeito a um modo de vida simples, que se caracteriza pela preservação da força vital, por um ritmo de vida lento e sereno, que contrasta com os excessos de estimulação sensorial, de agitação mental e de desejo de gratificação que caracterizam os modos de vida mais plenamente inseridos no consumismo contemporâneo. Na versão da tradição taoísta que pesquisei, desfrutar os prazeres da vida e manter o corpo em boas condições pode conviver em harmonia com a busca espiritual. Por fim, a humildade na interpretação taoísta é o contrário da disputa, da competição que decorre do desejo de fama e reconhecimento. A tradição taoísta é avessa à competitividade.

Embora considere que as virtudes religiosas, quando são encarnadas de forma consistente, possam contribuir para uma conduta pacífica, por meio de uma transformação dos modos de agir, sou cético que se possa pensar a construção da paz mundial por meio de uma transformação apenas no campo moral, operada pelas religiões nas vidas dos indivíduos. Os conflitos mundiais se caracterizam por uma grande complexidade sistêmica que vai muito além da agressividade, ganância ou competitividade de sujeitos particulares. Para compreendê-los, é preciso levar em consideração o efeito desagregador do capitalismo mundial sobre as vidas no plano local, o acirramento das desigualdades e da insegurança social. Infelizmente, diante deste quadro, em várias partes do mundo, as religiões têm se tornado parte da linguagem que expressa a intolerância e a impossibilidade de diálogo com a diferença, mesmo que idealmente devesse ser o contrário.

IHU On-Line - O taoísmo defende a ideia de que não precisamos de nenhuma orientação centralizada. A não unificação de todas as formas naturais de ser pode ser um caminho para pensarmos o diálogo inter-religioso?

José Bizerril - Parece-me que as possibilidades de diálogo inter-religioso repousam mais na comensurabilidade, ou não, dos diferentes pontos de vista culturais e da tradução cultural de noções de mundo e modos de vida contrastantes.  E no caso de iniciativas concretas, dependem também de uma certa disposição benevolente, por parte dos sujeitos religiosos, para uma autêntica abertura a escutar outras posições teológicas, morais ou até mesmo estéticas. Como antropólogo, diria que quanto mais de perto contemplamos as religiões, mais elas são diferentes e estão em contradição umas com as outras. Os pontos de contato existem entre algumas religiões que compartilham, por assim dizer, de um mesmo estilo de experiência religiosa, mas não reconheço um acordo fundamental entre todas as religiões, a não ser em um nível muito abstrato, como, por exemplo, afirmar que as religiões potencialmente ensinam um caminho para nos tornarmos seres humanos melhores ou vivermos vidas mais felizes. Mas o que exatamente seria tornar-se um ser humano melhor ou mais feliz, bem como os meios para isto, estaria sujeito a debate.

A perspectiva taoísta se opõe à adoção de um excessivo formalismo na conduta, e desconfia da imposição normativa de padrões de conduta, pois entende que a experiência espiritual conduz naturalmente a uma conduta em harmonia com o Tao, e consequentemente caracterizada pelas três virtudes mencionadas na pergunta anterior. Uma ética taoísta estaria fundada mais em princípios do que em preceitos muito específicos. Esta posição está em contradição com a de outras religiões que possuem uma hierarquia sacerdotal centralizada, responsável por normatizar a conduta de seus adeptos, às vezes, de forma bastante detalhista e inclusive em questões que, do ponto de vista moderno, poderiam ser consideradas de caráter privado.

IHU On-Line - Que alternativas as crenças taoístas podem oferecer para uma possível solução da crise em que vivemos hoje, ou seja, a crise global ecológica, financeira, política e religiosa?

José Bizerril - Tenho dúvidas que possamos formular em poucas palavras uma solução para os problemas mundiais contemporâneos. Diria que, no nível micro, de sujeitos e pequenas comunidades, a prática do Taoísmo pode contribuir como um dos antídotos à relação predatória com a natureza e com outros seres humanos, moderando o excesso de investimento no eu em detrimento das necessidades dos outros e produzindo um modo de ser no mundo menos capturado pelos desejos consumistas do capitalismo contemporâneo. Mas isto se situa mais no plano de uma prática diária dos treinamentos taoístas e numa transformação ampla da pessoa do praticante, do que no plano das crenças propriamente ditas.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a inculturação do Taoísmo na cultura ocidental? Como a tradição taoísta se manifesta no país?

José Bizerril - Ao que tudo indica, a presença taoísta é bastante modesta nas nações ocidentais, fora das comunidades de migrantes chineses, se comparada a outras religiões asiáticas, como os movimentos budistas e hinduístas ou os novos monoteísmos japoneses. Além disto, existe uma profusão de saberes tradicionais chineses que se vinculam ao taoísmo, entre artes marciais, terapêuticas, técnicas de longevidade, feng shui,  entre outros, que não se encontram explicitamente articulados a uma expressão filosófica ou espiritual taoísta quando são apresentados ao público em geral. Apesar de ser uma das grandes tradições religiosas mundiais, o taoísmo seguramente figura entre as menos conhecidas. Não computo como expressão do taoísmo a apropriação new age de técnicas e saberes descontextualizados e distribuídos sob a forma de serviços e produtos.

Tradição taoísta no Brasil

Quando pensamos no Brasil, julgo necessário problematizar as ideias de “ocidente” e “oriente”. Parece-me que apenas parcialmente podemos descrever nosso país como uma nação moderna e ocidental. Em nossa paisagem cultural, coexistem elementos tradicionais, modernos e pós-modernos de diferentes origens geográficas e históricas, às vezes de forma conflitiva, inclusive em um mesmo sujeito. É pertinente perguntar como uma tradição exótica, como é o caso do taoísmo, é recebida no Brasil. Em primeiro lugar, constato que a adesão a esta tradição é pouco representativa no plano quantitativo. O número total de pessoas que se definem como taoístas nem ao menos aparece nos índices do último Censo. Seguramente é menor do que o total de budistas que era cerca de 214.873 no ano de 2000. E possivelmente deve estar incluído na categoria “outras religiões orientais”. No entanto, é possível que certo número de taoístas não defina seu modo de vida como religião, o que acontece também com os budistas. Em minha pesquisa, deparei-me com pessoas que se tornaram taoístas por serem descendentes de migrantes asiáticos e estarem em busca de suas raízes culturais. Encontrei também um bom número de praticantes que se aproximaram da tradição para enfrentar processos de adoecimento grave. Havia também estudantes de psicologia e de outras áreas de saúde, praticantes de artes marciais e artistas, cada grupo com suas próprias motivações para se aproximar do taoísmo. De modo geral, diria que são as técnicas corporais taoístas, pelas experiências que proporcionam, que atraem em um primeiro momento. Além disso, acredito que a ênfase da tradição taoísta na saúde e na longevidade dialoga bem com a busca contemporânea da juventude e do bem-estar corporal. Muitas vezes, constatei que o interesse pela dimensão espiritual e filosófica do taoísmo surgiu em um segundo momento.

IHU On-Line - O Taoísmo dialoga com outras religiões? Há espaço para isso?

José Bizerril - Pessoalmente, não acompanhei iniciativas deliberadas por parte dos taoístas, de participarem de fóruns de diálogo inter-religioso. No entanto, não identifico, nas linhagens taoístas que se encontram no Brasil, uma tendência ao sectarismo ou à intolerância religiosa. Encontrei entre os praticantes taoístas, além daquelas pessoas que tinham um vínculo mais exclusivo com sua tradição, também pessoas vinculadas ao catolicismo, ao espiritismo kardecista, ao budismo tibetano ou ao Zen, que pareciam operar um estilo sincrético de experiência religiosa. Havia também pessoas que praticavam as técnicas taoístas, mas não identificavam o taoísmo como uma religião. Isso tudo sem falar de uma clientela que poderia ser reconhecida como parte do público new age, isto é, um estilo de espiritualidade de caráter individualista, no qual é possível fazer combinações idiossincráticas entre religiões muito distantes, desde que isto faça sentido para um sujeito em particular.

IHU On-Line - O teólogo alemão Hans Käng propõe uma ética mundial como caminho para a construção da paz planetária. O senhor concorda com essa proposta? As religiões podem ajudar nessa caminhada?

José Bizerril - Diante da complexidade sistêmica dos processos globais, sou cético quanto às possibilidades de enfrentar problemas coletivos apenas com uma transformação individual, por meio da experiência espiritual pessoal. Como uma guerra não se confunde com a expressão da raiva ou da agressividade dos indivíduos, mas é perpetrada por Estados, com base em interesses geopolíticos, macroeconômicos etc., entendo que a transformação das sensibilidades pessoais é apenas um aspecto da questão. Certamente, na sua expressão mais profunda, as religiões fomentam a expressão de qualidades humanas referidas ao cuidado com os outros e com o mundo, mas, ao mesmo tempo, no momento atual, as religiões têm também composto o idioma da intolerância e da impossibilidade de diálogo.

IHU On-Line – É possível falar em sociedade pós-metafísica, pós-religiosa? Qual é o sentido das religiões nesse contexto? O senhor percebe, nesse cenário pós-metafísico, diferenças na atuação das religiões orientais e ocidentais?

José Bizerril - Bem, uma resposta antropológica a esta pergunta demandaria um questionamento inicial: a quem se refere esta descrição? Isto é, que sociedades, que grupos no interior de quais sociedades podem ser descritos como alinhados a um posicionamento pós-religioso? Mesmo sem entrar no problema da possibilidade de uma definição universal viável de religião, em que instâncias sociais a diversidade de fenômenos que poderíamos chamar de religiosos foi tornada secundária? A separação entre universo laico e religioso ou, se preferir, entre sagrado e profano é um efeito da modernidade europeia. O mundo inteiro não se modernizou da mesma forma e com a mesma intensidade. À medida que os processos de modernização ocidentalizante chegam a outras partes do globo, talvez seja possível falar nestes termos. Ainda assim, só se pode falar em cenários pós-religiosos no contexto das grandes cidades globalizadas, e com ressalvas. É flagrante a presença das religiosidades na vida contemporânea em um país como o Brasil. Seguimos sendo um país de esmagadora maioria religiosa, e isto fica patente quando examinamos os obstáculos encontrados para se implementar políticas públicas relativas a temas como direitos reprodutivos ou direitos de minorias sexuais, por contradizerem a moral religiosa dominante. Apesar da emergência de uma lógica desencantada de mercado estar em expansão em várias esferas da vida, nas sociedades globalizadas, conforme descrições macrossociológicas como as do sociólogo Zygmunt Bauman,  não reconheço uma substituição em curto prazo das perspectivas religiosas por um olhar laico e mercadológico. Diria que é mais provável que exista uma coexistência conflitiva entre várias lógicas culturais no mundo contemporâneo. Mesmo nos países capitalistas mais ricos do planeta, as religiões continuam a ter alguma expressão. E, além disso, ainda temos de levar em consideração o fenômeno recente da expansão acelerada de formas fundamentalistas de religiosidade na maioria das grandes religiões mundiais, que, em alguma medida, contradiz o argumento do fim ou da superação das religiões.

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