Edição 302 | 03 Agosto 2009

O diálogo inter-religioso e a consciência humana universal

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Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin | Tradução Benno Dischinger

Para o teólogo Claude Geffré, o diálogo inter-religioso não conduzirá ao relativismo, se as religiões forem fiéis à suas identidades

As três grandes religiões monoteístas são portadoras de uma mensagem muito importante para o futuro da humanidade, defende o teólogo francês Claude Geffré. Em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line, Geffré afirma que o diálogo inter-religioso deveria ser facilitado “já que as três religiões monoteístas confessam um Deus criador, Senhor do universo, e prometem a todo o ser humano uma salvação eterna após a morte”.  

Receptivo à ideia do teólogo alemão Hans Küng, Geffré aponta a proposta de uma ética global “no sentido de que o diálogo inter-religioso deve tomar em conta este interlocutor que é o humanismo secular, ou ainda o consenso da consciência humana universal”. E enfatiza: “é desejável que o futuro do diálogo inter-religioso esteja sob o signo de uma interpelação recíproca das morais religiosas e das éticas seculares”. Para que o verdadeiro diálogo aconteça, sem que as religiões percam sua identidade particular, Geffré aconselha: “Elas devem, em primeiro lugar, visar melhor ao conhecimento das grandes religiões do Oriente e compreender que elas não são unicamente religiões da imanência.” E continua: “Há religiões sem Deus que, no entanto, têm o sentido da transcendência. E é justamente porque elas têm um agudo sentido da transcendência que elas querem ultrapassar a determinação de um deus pessoal”.

Claude Geffré reside em Paris e é autor de alguns dos mais importantes textos sobre os efeitos do pluralismo religioso, além de ser membro do Comitê Científico da revista internacional de Teologia Concilium. Por mais de 20 anos, foi professor de Teologia Dogmática em Le Saulchoir e ainda lecionou Hermenêutica Teológica e Teologia das Religiões, no Institut Catholique de Paris. Em 1996, foi eleito diretor da École Biblique de Jerusalém. Com Régis Debray publicou o livro Avec ou sans Dieu? Le philosophe et el théologien (Paris: Bayard, 2006). Publicou tambem De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse (Paris: Cerf, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor concebe a inculturação do Judaísmo, do Cristianismo e do Islã no mundo, num momento de globalização e de fronteiras sempre mais abertas?

Claude Geffré - A inculturação de cada um dos três monoteísmos levanta problemas específicos. Mas, na época da globalização do mundo e de um pluralismo religioso e cultural cada vez maior, é preciso insistir na responsabilidade histórica comum dos três monoteísmos ante a comunidade mundial. A despeito de sua própria singularidade, os três monoteísmos são portadores de uma mensagem muito importante para o futuro da humanidade, a saber, o ensinamento da Tora, isto é, a impossibilidade de dissociar o amor de Deus e o amor do próximo.

IHU On-Line - Em alguns de seus textos o senhor diz que “o Cristo é universal, mas o cristianismo não o é”. O que significa isso na época do pluralismo religioso?

Claude Geffré - Eu jamais disse que o Cristianismo não é universal. Eu digo simplesmente que não é preciso atribuir-lhe, como religião histórica, uma universalidade que não pertence senão ao Cristo que, como evento transistórico, concilia nele o absolutamente universal e o absolutamente concreto. Isso quer dizer que não convém absolutizar o Cristianismo como se ele totalizasse todos os valores religiosos das outras religiões. Além disso, podem-se encontrar nas outras tradições religiosas certos germes de verdade, de bondade e de santidade que têm um elo secreto com o mistério do Cristo que domina toda a história humana desde seu começo.

IHU On-Line - Segundo sua opinião, quais são as principais questões teológicas que dificultam o diálogo entre o Cristianismo e o Judaísmo, o Cristianismo e o Islã? E quais são as principais questões históricas que geram dificuldades para este diálogo?

Claude Geffré - É impossível dissociar as questões teológicas das questões históricas. Em princípio, o diálogo deveria ser facilitado, já que as três religiões monoteístas confessam um Deus criador, Senhor do universo e prometem a todo ser humano uma salvação eterna após a morte. Nós adoramos o mesmo Deus, como dizia João Paulo II,  mas a história testemunha lutas fratricidas entre os filhos de Abraão.  Judeus, cristãos e muçulmanos reivindicam uma palavra de Deus diferente, com base em textos fundamentais diferentes: a Bíblia hebraica, o Novo Testamento, o Corão. O diálogo entre judeus e cristãos é difícil porque os judeus sempre esperam a vinda do Messias, enquanto os cristãos identificam Jesus Cristo como o Messias esperado. Mas o século XX inaugura uma nova era na relação entre o Judaísmo e o Cristianismo. Por ocasião do trágico evento da Shoah  (holocausto), a Igreja fez um ato de arrependimento pelas diversas formas de um antijudaísmo que tem podido favorecer no decurso dos séculos um antissemitismo do qual Auschwitz foi a expressão mais extrema. E o concílio Vaticano II  tomou suas distâncias diante de uma falsa teologia cristã do Judaísmo, a da substituição, segundo a qual a Igreja substitui Israel. As promessas de Deus ao povo judaico são feitas sem arrependimento e é preciso falar de um cumprimento do Judaísmo pelo Cristianismo que respeite a irredutibilidade do povo eleito. Há um face a face da Igreja e de Israel e uma emulação recíproca entre ambos até o advento do Reino de Deus.

IHU On-Line - O que significam, para o diálogo islamo-cristão, as proposições dos muçulmanos que apresentam Jesus como profeta, místico e santo? Isso contribui para uma aproximação e um diálogo ou gera dificuldades?

Claude Geffré - O próprio Corão testemunha um respeito muito grande pelo profeta Jesus. Embora recuse absolutamente confessá-lo como Filho de Deus, ele é, como diz a tradição, o “selo da santidade” , na medida em que seu nascimento virginal em Maria manifesta que ele procede diretamente do Espírito de Deus. Nesse sentido, ele é maior que o profeta Maomé, embora ele não seja o último dos profetas. É o privilégio de Maomé ser o “selo da profecia” , aquele que cumpre as profecias de Abraão, Moisés e Jesus. O diálogo entre o Cristianismo e o Islã se torna muito difícil no plano teológico, na medida em que o islã recusa os dogmas fundamentais do Cristianismo, o mistério trinitário e o mistério da encarnação. Mas pode-se esperar muito de certos trabalhos históricos sobre as fontes do Corão relativas ao Cristianismo que o profeta Maomé pôde conhecer. Por que tal desconhecimento da filiação divina de Jesus, que é sempre entendida num sentido carnal, e então tal caricatura da Trindade onde é Deus o Pai que gera um filho no seio de Maria? Mas, ao mesmo tempo, é verdade que a profecia islâmica tem um papel de alertador contra uma compreensão insuficiente da Trindade, que implicaria ofensa à unicidade absoluta de Deus.

IHU On-Line - Que mudanças o senhor aponta para que as religiões monoteístas pratiquem verdadeiramente o diálogo inter-religioso, sem perder sua identidade?

Claude Geffré - Elas devem, em primeiro lugar, visar melhor ao conhecimento das grandes religiões do Oriente e compreender que elas não são unicamente religiões da imanência. Há religiões sem Deus que, no entanto, têm o sentido da transcendência. E é justamente porque elas têm um agudo sentido da transcendência que querem ultrapassar a determinação de um Deus pessoal. Elas nos ajudam a procurar um Deus sempre maior e a superar a representação antropomorfa de um diálogo entre a consciência humana e Deus. Em segundo lugar, as religiões monoteístas são tentadas a idolatrar sua própria verdade porque são fundadas na própria Palavra de Deus. Elas correm, então, o risco de se tornar intolerantes e mesmo fanáticas. O Judaísmo é sempre tentado a cair no exclusivismo. E, historicamente, o Cristianismo e o Islã tiveram uma pretensão hegemônica ante as outras religiões. Na era do pluralismo religioso, o diálogo entre as religiões não conduz ao relativismo se cada religião for fiel à sua própria identidade. Sem respeito por sua própria identidade, não haverá verdadeiro diálogo, mas consensos polidos. É precisamente na confrontação com o outro que eu reinterpreto minha própria identidade. Descubro, então, que minha própria verdade não é necessariamente exclusiva, nem mesmo inclusiva de outras verdades religiosas: ela é singular. Como crente, posso receber uma verdade revelada como uma verdade absoluta. Mas, minha concepção humana desta verdade é sempre parcial e relativa, segundo as respectivas épocas da história.

IHU On-Line - Quais são os princípios que devem regular o diálogo inter-religioso numa sociedade pós-metafísica? Ainda há espaço para as religiões nas sociedades ultramodernas? Se sim, qual o papel das religiões nesta nova era?

Claude Geffré - Eu não sei muito bem o que é preciso entender por “sociedade pós-metafísica”. Mas constato que o projeto de uma sociedade secularizada imanente a ela mesma coincide com uma lógica totalitária. O Estado moderno, descartando as legitimações religiosas, tinha a ambição de assegurar uma existência social pacificada. Ora, não somente o Estado não elimina as fraturas sociais, mas ele gera muitas vezes a morosidade ou ainda o que alguns designam como “a era do vazio”. É, pois, muito importante distinguir o Estado como sociedade política e a nação como comunidade moral que faz apelo a uma história fundada em valores comuns, em símbolos religiosos, ou não. Há, pois, lugar nas sociedades modernas para uma alteridade, uma transcendência que favorece o elo social e estimula a marcha em frente do grupo social. Tornou-se corrente dizer que a chegada da modernidade e da pós-modernidade coincide com o fim da religião, sobretudo no Ocidente. Um pensador francês como Marcel Gauchet  pôde escrever que o Cristianismo é “a religião de uma saída da religião”. Mas, ele não confunde o fim da função social da religião cristã com o fim do Cristianismo como religião vivida, como utopia mobilizadora, como testemunho profético em favor de outro mundo possível. É porque o Cristianismo é a religião da saída da religião, compreendida como alienação da autonomia humana e como utilidade social, que o Cristianismo pode encarnar uma das figuras possíveis do futuro da religião.

IHU On-Line - Que tipo de ética o senhor reconhece nos grandes monoteísmos contemporâneos? Podem as religiões contribuir para a proposta de Hans Küng de uma ética mundial? Em caso afirmativo, que espécie de ética é possível e desejável?

Claude Geffré - Os três monoteísmos continuam sendo os testemunhos de um tesouro moral capital para a comunidade mundial, a saber, o conteúdo do Decálogo. Além disso, a Declaração Universal dos Direitos do Homem se refere a este ethos da religião de Israel. Mas, é verdade que a afirmação dos direitos do homem é uma conquista da consciência humana na reivindicação de sua autonomia diante de toda heteronomia religiosa. E é por isso que ela entra em conflito, não somente com a autoridade da Igreja, mas com a do próprio Deus. Hoje em dia, é a própria Igreja que quer defender e promover os direitos do homem, em particular a liberdade de consciência e a liberdade religiosa. Hans Küng  tem razão em propor uma ética global no sentido de que o diálogo inter-religioso deve tomar em conta este interlocutor que é o humanismo secular, ou ainda o consenso da consciência humana universal. É, pois, desejável que o futuro do diálogo inter-religioso esteja sob o signo de uma interpelação recíproca das morais religiosas e das éticas seculares. Concretamente, isso quer dizer que todas as religiões devem reinterpretar seus textos fundadores e suas tradições em função das aspirações fundamentais da consciência humana em matéria de direitos e de liberdades. Elas correm o risco de perecer se seus ensinamentos e suas práticas estiverem em conflito com o consenso da consciência humana universal. Inversamente, o humanismo secular deve ficar à escuta do tesouro ético do qual dão testemunho as tradições religiosas. Alguns acreditam voluntariamente que a nova religião dos direitos do homem vai progressivamente tomar o lugar das religiões. Isso seria um erro fatal para o futuro da humanidade. O cruel século XX nos demonstrou a trágica fragilidade da consciência humana deixada a si mesma e que pode legitimar os piores crimes contra a dignidade da pessoa humana. Nós sabemos melhor o que é intolerável, porque desumano. E, para o futuro, a vocação das grandes religiões do mundo é a de nos ajudar a decifra o que é o humano autêntico.

Leia mais...

>> Claude Geffré concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Acesse no sítio do IHU.
Entrevista:

• Religião com ou sem Deus? Um diálogo de Régis Debray com um teólogo, publicada em 28-1-2007. 

• A secreta cumplicidade entre o humanismo de Jesus e o humanismo secular, publicada na IHU On-Line número 248, de 17-12-2007. 

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