Edição 299 | 06 Julho 2009

O pensamento de Rahner no catolicismo

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Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin | Tradução Walter O. Schlupp

Segundo a teóloga Ann Riggs, Rahner reconhece que se pode encontrar santidade autêntica nas pessoas que não reconheceram Cristo

“A visão de modernidade de Rahner muito se aproxima daquilo que os acadêmicos hoje chamam de pós-modernidade”, aponta a teóloga Ann Riggs, em entrevista concedida por e-mail com exclusividade à IHU On-Line. Segundo ela, Rahner visualizava o cristão do futuro como um ser místico e também eclesial. “Ele constantemente se referia à situação vigente, na qual o cristianismo de um modo geral e a Igreja em particular tinham perdido sua posição como premissa geral na cultura mais ampla.” Para Ann, ser cristão hoje é desfrutar de um componente místico, “ter a convicção pessoal de que a pessoa de Cristo representa um caminho autentico para a felicidade nesta vida e para a possibilidade de salvação eterna”.

Ainda nesta entrevista, que dá continuidade ao debate da edição número 297, de 15-06-2009, intitulada Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, a teóloga afirma o desafio percebido por Rahner: “o surgimento de uma ‘Igreja mundial’, o deslocamento do ‘centro da gravidade’ do cristianismo da Europa para os hemisférios oriental e meridional”.

Ann Riggs é doutora, pela School of Religious Studies, Catholic University of America. Ela é coautora, com Jeffrey Gros e Eamon McManus, de Introduction to Ecumenism (Paulist Press,1998) e coeditora com Fernando Enns e Scott Holland de Peace-Theology and Culture in a Globalized World from the Perspective of the Historic Peace Churches (2003). Também é membro da Catholic Theological Society of America e editora do jornal Quaker Theology e professora da Duke University.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Passados 25 anos do falecimento de Rahner, qual a importância do seu pensamento na atual conjuntura da Igreja?

Ann Riggs - O pensamento de Rahner parece ter-se infiltrado em muitos aspectos do pensamento católico, tanto doutrinal quanto catequético. Por exemplo, quando leio material catequético sobre os sacramentos, boa parte parece repercutir os princípios de Rahner, segundo os quais o evento sacramental é um encontro pessoal com a palavra de Deus, embora esse encontro também nos aconteça de muitas outras maneiras na vida. Um efeito importante dos sacramentos é o de ajudar os fiéis a encontrarem Deus em outros aspectos da vida, “encontrarem Deus em todas as coisas”, como ele o formularia em sua espiritualidade jesuítica.

O pensamento de Rahner também ganhou influência no papel da Igreja na economia da salvação. A Igreja está fundada sobre o mistério de que todos vêm a conhecer a Deus em amor e liberdade, de que a graça nunca pode ser forçada, que todo encontro humano que ocorra em verdade, amor e liberdade sempre é um encontro com Deus, mesmo que não seja reconhecido como tal. Suas expressões “cristão anônimo” e “cristianismo anônimo” não são muito usadas; mas existe uma aceitação geral da ideia de que valores cristãos reais podem ser implementados sem referência explícita à salvação em Jesus Cristo. Gerações anteriores falavam de um “batismo do desejo” para as pessoas que estão fora da Igreja, isto é, que, se as pessoas conhecessem o valor do batismo, elas o buscariam. A abordagem de Rahner reconhece que se pode encontrar santidade autêntica nas pessoas que não reconheceram Cristo, porém sem desvalorizar o batismo como caminho normal e mais explícito para a salvação.

IHU On-Line - Para Rahner, quais eram os desafios prementes para o cristianismo do século XX?

Ann Riggs - Para ele, o cristão do futuro (na perspectiva da época em que ele viveu) seria místico e também eclesial. Ele constantemente se referia à situação vigente, na qual o cristianismo de um modo geral e a Igreja em particular tinham perdido sua posição como premissa geral na cultura mais ampla. Ele estava certo; hoje em dia o cristianismo é um sistema de fé entre outros. Ser cristão, hoje, significa ter convicção pessoal de que a pessoa de Cristo representa um caminho autêntico para a felicidade nesta vida e para a possibilidade de salvação eterna na próxima. Este é o componente “místico”: quando alguém realmente “encontrou” a Cristo, como o expressam cristãos evangélicos. A plenitude desse encontro ocorre em comunidade, no culto conjunto, no apoio contínuo para a vivência cristã, no cuidado recíproco e no serviço mútuo. Assim sendo, a expressão autêntica da mensagem cristã está vinculada àquelas instituições cuja tarefa explícita é proclamá-la. Esta é a parte “eclesial”. Atualmente, os sociólogos caracterizam a religião como artigo de consumo: ao procurar lugares e pessoas que dão a expressão adequada a seus anseios espirituais pessoais, as pessoas procedem como quando vão “fazer compras”. Até mesmo católicos hoje em dia “pulam de comunidade em comunidade” (“parish shop” or “parish hop”) na busca por uma comunidade que lhes dê apoio bem como uma liturgia e pregação que seja enriquecedora.

Outro desafio percebido por Rahner foi o surgimento de uma “Igreja mundial”, o deslocamento do “centro de gravidade” do cristianismo, por assim dizer, da Europa para os hemisférios oriental e meridional. Embora o papa atual seja europeu, especula-se cada vez mais sobre um primeiro papa africano. As transformações globais não se limitam ao mundo dos negócios! Como entidade internacional, a Igreja Católica está muito exposta a esses efeitos.

IHU On-Line - Qual foi a influência e quais as principais contribuições de Rahner para o Concílio Vaticano II e para o diálogo entre a modernidade e a teologia?

Ann Riggs - Na Karl Rahner Society,  apresentou-se uma palestra sobre algumas notas de Rahner em resposta a uma das primeiras propostas de formulação da Gaudium et Spes,  a Constituição Pastoral da Igreja e o Mundo Moderno. Embora muitas vezes se pense que Rahner estivesse demasiadamente tomado pelo moderno ideal do progresso, naquelas notas ele expressa preocupação sobre o que percebia como sendo um tom excessivamente otimista naquele documento; essa crítica tem sido feita inclusive sobre a versão final que acabou sendo promulgada. Infelizmente. não estou tão familiarizada com a influência pessoal de Rahner sobre outros documentos, mas ele teve considerável influência teológica no tocante a ideias centrais em outros documentos. Uma delas foi a questão da liberdade religiosa (um distanciamento da atitude comum entre teólogos romanos, segundo a qual “erro não tem direitos”); já mencionei a visão da Igreja baseada no mistério da vontade salvífica de Deus, em lugar da concepção jurídica da Igreja como instituição e autoridade proveniente diretamente do Jesus histórico.

Rahner reconheceu que o mundo moderno seria muito mais pluralista que o mundo da Europa ocidental, onde a Igreja mais se sentira em casa. De certa maneira, a visão de modernidade de Rahner muito se aproxima daquilo que os acadêmicos hoje chamam de pós-modernidade; a noção de “concupiscência gnosiológica” observa uma pluralidade irredutível de irreconciliáveis categorias de pensamento e modos de pensar no mundo. Isso aí é o material básico da pós-modernidade, ao passo que a modernidade acreditava numa racionalidade humana universal, que permitiria progresso humano cada vez maior.

IHU On-Line - A senhora acredita que as ideias teológicas de Rahner foram assimiladas pela teologia de um modo geral? Como ele é encarado na teologia de hoje? Quais teólogos continuam usando suas ideias como base para seus estudos atuais?

Ann Riggs - Penso que a ideia geral de Rahner sobre uma conexão intrínseca entre a teologia e a experiência passou a ser vista como algo óbvio. Sua maneira de falar sobre a experiência de Deus como localizado no horizonte transcendental da experiência parece não ter muita aceitação atualmente. Talvez a ênfase sobre a experiência humana tenha levado a um deslocamento no método teológico, ao menos nos EUA, onde métodos científicos usados em história e sociologia têm-se tornado importantes no fazer teológico. Rahner foi criticado por seu aluno, Johann Baptist Metz,  por não levar a sério o contexto político ao fazer teologia; esta tem sido uma crítica recorrente, de que a teologia de Rahner é demasiadamente desencarnada e deficiente de contextualização histórica. Em contrapartida, outros teólogos constataram que os princípios formais de Rahner permitem fazer justamente isto. O filósofo Andrew Tallon usa Levinas  para resgatar o conceito de “coração” em Rahner, de que a dinâmica do agente rahneriano envolve mais do que compreensão intelectual, no sentido de tentar alcançar o Mistério Absoluto. Miguel Diaz  usa Rahner em seu estudo sobre teólogos/as latinos/as nos EUA. Outros teólogos/as da libertação (políticos e feministas) recorreram a ideias de Rahner. Um livro recente, Rahner Beyond Rahner, mostra como o interesse pelo pensamento de Rahner aparece em lugares surpreendentes como a China comunista. O pensamento de Rahner está sendo usado por acadêmicos como Michael J. Himes  e David Coffey.

Outra área que tem encontrado ampla aceitação é a ideia de símbolo em Rahner, de que a expressão simbólica está radicada na realidade que ela expressa. Não existe algo como “apenas um símbolo”, embora por vezes ainda se ouça isto da parte de pregadores católicos a exagerarem diferenças entre as ideias católicas e protestantes sobre os sacramentos. Pelo menos entre teólogos não mais se considera inadequada a caracterização de sacramentos como expressões simbólicas do amor de Deus.

IHU On-Line - Como a senhora compararia as teologias de Rahner e de Ratzinger?

Ann Riggs - Desde os seus primórdios, particularmente desde seu afloramento como parte do establishment cultural no século IV, o cristianismo sempre teve uma postura ambivalente em relação à cultura do seu entorno. No final da Antiguidade, um observador do cristianismo escreveu que se podia encontrar cristãos por toda a parte, embora não reivindicassem nenhuma terra especifica como sua. Ao lidar com os grupos nativos e pagãos, inicialmente durante a evangelização da Europa e, depois, do Novo Mundo e do Extremo Oriente, eles demonstraram essa mesma ambivalência: por um lado, manter aquilo da cultura nativa que parecesse adaptável ao cristianismo; por outro, eliminar práticas religiosas “falsas” e garantir que o cristianismo fosse firmemente implantado. A mesma hesitação entre dois pólos observamos hoje em dia; teologicamente ela está visível nas teologias de Karl Rahner e Hans Urs von Balthasar.  Rahner enfatiza a humanidade universal que nos une todos como criaturas de Deus, e enxerga mais atuação do Espírito no funcionamento do mundo fora do cristianismo explícito. Já Balthasar enfatiza o risco de o cristianismo capitular diante do mundo moderno de um modo que ameace valores centrais, encarando, desta maneira, a modernidade como a Cordula, o “momento” do testemunho cristão, da disposição para o martírio. Ratzinger, na qualidade de Papa Bento XVI, por vezes parece ter mais afinidade com Rahner (como em sua primeira encíclica Deus caritas est), ao mesmo tempo em que, com maior frequência, apresenta uma suspeita mais balthasariana (na verdade, agostiniana) em relação ao caos e ao niilismo, que estão espreitando atrás da porta, por assim dizer. Rahner acreditava que todas as tentativas humanas de explicar o mistério cristão do Deus triúno e a salvação proporcionada à humanidade em Jesus Cristo seriam provisórias, em última análise, a ser eclipsadas pela realidade do Mistério Absoluto. Enquanto Rahner acreditava que essas explicações históricas sejam necessárias sempre e em todos os lugares, não acredito que concordaria que a implementação específica do cristianismo como ela se apresenta na linguagem e nas estruturas da Igreja Romana transcenderia em si mesma todas as (outras) culturas, como Ratzinger tem alegado.

IHU On-line - Em sua opinião, será que Rahner ainda oferece respostas e possibilidades para uma sociedade de cultura pós-moderna? Por quê?

Ann Riggs - Penso que o trabalho de Rahner pode ser uma fonte de respostas e possibilidades; Rahner em si não quereria ser lido simplesmente para dentro de um contexto histórico e cultural diferente. Ele levava muito a sério a concupiscência gnosiológica, isto é, a incomensurabilidade de diferentes sistemas de pensar. As obras de Rahner, em sua primeira fase, mais filosóficas (Geist in Welt e Hörer des Wortes), foram lidas no contexto da época, ditado pelo neoescolástica, a qual presume que primeiro você estudaria filosofia, o que lhe proporcionaria um conhecimento seguro e natural sobre Deus; depois você faria teologia, que explicaria as verdades da revelação em termos daquela filosofia. Hoje em dia, porém, muitos acadêmicos mais jovens estão lendo Rahner de forma bem diferente, no sentido de que a sua filosofia emanaria da sua teologia, e não o inverso; que seu “fundamento” metafísico é, na verdade, Mistério Absoluto; que seu método, em última análise, é cristológico, não filosófico. Outro aspecto do trabalho de Rahner que está recebendo maior atenção do que antes é seu “turn to the phantasms”,  interpretando-a como uma forma de fundamentar a compreensão do agente humano tal como está encarnado fisicamente e inserido culturalmente, o que vem a ser a característica central da ênfase pós-moderna sobre a particularidade histórica.

IHU On-Line - Como a senhora analisa a importância da ideia de “cristão anônimo” de Rahner para o diálogo inter-religioso e o ecumenismo?

Ann Riggs - Essa questão é incrivelmente complexa, muito mais complexa do que se poderia tratar aqui, em parte porque não estou envolvida formalmente nesses diálogos! Penso que primeiro precisamos analisar a expressão em si em termos de algumas verdades importantes (e pós-modernas!) que ela tenta apresentar. Em primeiro lugar, a expressão em si não é originalmente de Rahner. Recentemente ouvi uma apresentação sobre outros teólogos que primeiramente usaram variações dessa expressão e mais tarde a própria expressão em si, ao igualmente pelejarem com o fenômeno muito real de que parecia haver não-cristãos que encarnavam valores cristãos de formas que envergonhariam a nós, que nos chamamos de cristãos. Como Rahner destaca, este é um fato real no nosso mundo, não vindo ao caso se o chamamos de “cristianismo anônimo” ou qualquer outra coisa. Será que precisa ser explicitamente cristão para ser reconhecido como cristão? Ou pelo menos combinar com o cristianismo? De que outra maneira os cristãos poderiam reconhecer o que é bom e santo em não-cristãos, senão através da lente dos nossos próprios valores de bondade e santidade? Para alguns, a expressão tem uma conotação de humildade; certa vez um budista objetou a Rahner que, conforme a sua compreensão do termo, ele teria que pensar que [não-budistas] seriam “budistas anônimos” . Rahner concordou enfaticamente: “Exatamente isso é o que você deveria fazer!”. Provavelmente a expressão não tem utilidade em diálogos, na prática, mas destaca um princípio inerente a esses diálogos: estamos procurando áreas de coincidência, de convergência sobre nosso convívio no mundo.

Um amigo meu, rahneriano, recentemente me lembrou que a ideia do “cristianismo anônimo” não se restringe a não-cristãos; ela lembra a nós, cristãos, que também não somos salvos por nossas expressões verbais de fé, mas em função da nossa resposta à dádiva da fé em liberdade e amor.

IHU On-Line - Para Rahner, qual é a conexão entre a comunicação da fé, a experiência de Deus e a teologia? Como pode o ser humano "alcançar" o Mistério de Deus?

Ann Riggs - Para Rahner, os seres humanos de forma alguma podem “alcançar” o mistério de Deus. Em última análise, trata-se de recebê-lo como presente, o que para Rahner necessariamente é o princípio que rege tudo isso. Tudo é dádiva, tudo precisa ser vivido nessa liberdade e amor, sem os quais graça não seria graça. Isso significa que a pregação do evangelho, a articulação da doutrina pelo magistério, a conduta das pessoas encarregadas de transmitir a fé de diversas maneiras (pastores, pregadores, catequistas, educadores religiosos) precisa apresentar a verdade daquilo que proclamam. De que adianta pregar que Deus é amor, se na comunidade local não se consegue a atenção que acompanha o amor? De que adianta pregar que Deus cuida de cada pessoa humana a partir do primeiro momento da sua vida, se outros membros vulneráveis do Corpo precisam enfrentar intolerância e resistência? Nem sempre parece muito correto ou eficiente, mas o antigo adágio de que “a fé é agarrada, não ensinada” (“faith is caught, not taught”) é central para toda a evangelização empreendida pela Igreja - ou pelo menos deveria ser. Alguns dos “neo-cons” mais jovens, como os neo-conservadores são chamados nos EUA, parecem pensar que a afirmação de que “Deus é amor” dilui o evangelho, facilita-o demais. Às vezes o magistério parece compartilhar esse ponto de vista, o que realmente é uma pena, porque qualquer pessoa que realmente tenha tentado amar até mesmo uma única outra pessoa vai admitir, sem hesitar, que o amor é a mais difícil tarefa para seres humanos. Talvez esta seja a razão por que tantas vezes fracassamos nela. É por isso que a doutrina do ex opere operato é tão importante na vida da Igreja. Ela não transforma a Igreja um lugar de santidade mágica, nem os sacramentos numa fonte mágica de bondade; mas ela significa, sim, que enquanto continuarmos realizando nossos afazeres sacramentais – não apenas os sete rituais, mas todas as coisas que tentam transmitir a bondade de Deus e o poder do evangelho – podemos acreditar que o próprio Cristo está tentando estar vivo em nós e acreditar que de alguma maneira, Deus nos ama tanto, que até mesmo nossos mais frágeis esforços no sentido de transmitir esse amor poderiam conseguir exatamente isto.

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>> Recentemente a IHU On-Line realizou uma edição especial sobre Karl Rahner. Confira a revista número 297, de 15-06-2009, intitulada Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II.

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