Edição 297 | 15 Junho 2009

“Cristianismo e Igreja adquiriram feições muito plurais, mas encolhem rapidamente em vários continentes”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Moisés Sbardelotto, Márcia Junges e Patrícia Fachin

Para o teólogo Érico João Hammes, tudo que se possa atribuir a Rahner no Concílio Vaticano II só foi possível porque “havia uma clima geral de repensamento da Igreja e do Cristianismo”

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o teólogo Érico João Hammes aponta vantagens e limites da participação de Karl Rahner no Concílio do Vaticano II. O que não se perdoa nele, assinala o pesquisador, “é seu modo honesto de lidar com o ser humano concreto e seu modo de situar a reflexão da fé como responsabilidade humana frente ao Mistério Divino”. E dispara: “Sua influência é, por isso, muitas vezes lamentada porque seria uma distorção da total transcendência e alteridade divina em favor de um Deus demasiadamente humano e condescendente”.

Por outro lado, Hammes destaca que o mérito do teólogo alemão “está no pensamento corajoso e dialogal com a Modernidade”. Além disso, a concepção de ser humano como ouvinte da palavra e da revelação como autocomunicação divina “foram decisivas para a maneira de leitura bíblica posterior”.

Hammes é graduado em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, e mestre e doutor em Teologia Sistemática, pela Pontificia Universita Gregoriana. Atualmente, é professor PUCRS, no curso de graduação e mestrado em Teologia. Integra a Comissão de Diálogo Bilateral Católico-Luterano da CNBB e é editor da Revista Teocomunicação.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual foi a principal contribuição de Karl Rahner para o diálogo entre modernidade e teologia? Como Rahner compreendeu a modernidade?

Érico João Hammes - A principal contribuição de Karl Rahner para o diálogo entre Modernidade e Teologia foi a formulação e aplicação do método transcendental. Consiste em perguntar a respeito das condições de possibilidade presentes no ser humano para ouvir e responder à presença e palavra de Deus. A Modernidade não parece ter merecido uma reflexão especial no seu pensamento, mas está presente como catalisador. Assim, por exemplo, como Karl Barth, quando discute a Teologia Trinitária, relativiza o conceito de pessoa, ante certa maneira individualista de considerá-la na Modernidade. Frequentemente, fala do “ser humano atual”, da “Igreja no mundo de hoje” e identifica a secularização da sociedade, o papel das ciências positivas, o pluralismo filosófico, religioso e cultural, o valor insubstituível da experiência e da espiritualidade como fatores decisivos na configuração desse “ser humano” e da Igreja. Mostra-se especialmente sensível à urgência de reelaboração teológica mediante uma adequada hermenêutica da fé em vista da maioridade humana atual.

IHU On-Line - Qual foi a influência e as principais contribuições de Rahner no Concílio Vaticano II?

Érico João Hammes - Rahner, no Concílio, esteve ao lado de muitos outros teólogos e tudo o que se lhe possa atribuir só foi possível porque havia um clima geral de repensamento da Igreja e do Cristianismo. Franz König, o Bispo austríaco a serviço de quem Rahner esteve no Concílio, testemunha a intensa atividade do Teólogo de Innsbruck em conferências para os demais, no estudo meticuloso dos documentos preparatórios e na sua crítica honesta à luz da realidade pastoral que vivia. Provavelmente seja, de fato, essa a sua maior influência. Apesar disso, é certo que sua concepção do ser humano como ouvinte da palavra e da revelação como autocomunicação divina, presentes na Dei Verbum, foi decisiva para a maneira de leitura bíblica posterior. O tema da sacramentalidade de Cristo e da Igreja e as questões relativas à estrutura interna podem ser encontradas em seus escritos e refletem o Vaticano II.

IHU On-Line - Rahner é considerado o “pai da Igreja do século XX”. Como o senhor analisa a importância que a teologia de Rahner conquistou no ambiente eclesial pré e pós-conciliar? O que estava em jogo e por que Rahner conseguiu oferecer as respostas apropriadas?

Érico João Hammes - Seria um equívoco imaginar que Rahner tivesse granjeado unidade em torno de seu nome como teólogo. Ao contrário, hoje cada vez mais aparecem, mesmo no Brasil, críticos ferrenhos de seu pensamento. O que não se perdoa nele é seu modo honesto de lidar com o ser humano concreto e seu modo de situar a reflexão da fé como responsabilidade humana frente ao Mistério Divino. Sua influência é, por isso, muitas vezes lamentada porque seria uma distorção da total transcendência e alteridade divina em favor de um Deus demasiadamente humano e condescendente.

De outro lado, e talvez com mais justiça, seu mérito está no pensamento corajoso e dialogal com a Modernidade. Muito cedo, abandona o modo escolástico de pensar (a Schultheologie, como gostava lembrar com fina ironia), sem abandonar a Tradição tomista. O neotomismo de Joseph Maréchal, entre outros, como se diria hoje, um Tomás revisitado com o pensamento de Kant e Heidegger  especialmente, e o recurso aos primeiros teólogos da Igreja e a uma simpática assimilação das pesquisas bíblicas lhe permitiram elaborar um conceito (Begriff) do cristianismo com o qual se pode seguir Jesus numa sociedade adulta.

Ao não temer as perguntas, levava a sério as respostas. Por isso, foi capaz de discutir sobre anjos e demônios, assim como sobre paz e guerra, revolução e libertação, infalibilidade papal (pró e contra Küng)  e diaconado permanente, devoção ao coração de Jesus e anticoncepcionais, pecado original e evolução, o “significado permanente da oração” e questões genéticas. Embora escrevesse muito, quase não tem obras inteiras; é uma verdadeira teologia a caminho e em caminho. Pensar com honestidade e sem medo, com Deus como amigo (Romano Guardini)  e os seres humanos como interlocutores, parece ter sido seu grande segredo. Foi assim que, já em 1951, pôde enfrentar o tema crucial das formulações dogmáticas cristológicas apontando-as como um fim, mas mais ainda um começo, uma espécie de envio para uma recuperação constante em vista das exigências atuais da fé, superando sua repetição rotineira.

Para além de Rahner, no entanto, é preciso lembrar de uma verdadeira teologia da dor humana e do sofrimento estrutural, que outros, viram melhor do que ele como J. B. Metz,  J. Moltmann,  G. Gutiérrez,  J. Sobrino,  a Teologia Feminista e todas as demais correntes que partem da negatividade da história e do seu reverso passando pela cruz do Mistério Divino. Seu mérito consistiu em, entre outros, devolver à Teologia seu lugar de ser palavra humana sobre a palavra divina. E embora, como ele mesmo reconhecia, não fosse até o fim, deixou as categorias fundamentais para que outros seguissem. A dívida que permanece é a da seriedade rigorosa com que é preciso ir adiante.

IHU On-Line - Qual a concepção de Deus em Rahner? Como o homem pode chegar ao Mistério?

Érico João Hammes - A concepção central de Deus em Rahner é a de Mistério Último que se comunica a nós em Jesus Cristo e nos une a si pela graça (Espírito Santo). Do ponto de vista da Teologia, essa maneira de entender a Deus exige uma retomada profunda da Teologia Trinitária. O ponto de partida é a revelação, no seu famoso axioma, segundo o qual “a Trindade econômica é a Trindade imanente e vice-versa”. Quer dizer: para falar de maneira menos inadequada a respeito do mistério divino, não se deve tomar qualquer reflexão humana sobre um Deus presumidamente alcançável pela razão, mas aquele que se revela na história da salvação (Trindade Econômica). Com isso, de maneira alguma se desprezam os recursos do pensamento. Pelo contrário, há que pensar com todo o rigor o que é o pressuposto, o Mistério revelado e a partir da revelação, cujo centro é a encarnação, plenitude do ser humano. Nas reflexões sobre Deus em si mesmo (Trindade imanente), adere decididamente à forma litúrgica e oriental de compreender a unidade a partir do Pai. O Deus é o Pai, que gera o Filho na autocomunicação, do amor ao qual procede o Espírito.

O ser humano é sujeito da oferta divina como “existencial sobrenatural”, à qual corresponde em Jesus Cristo. Teologicamente, o ser humano é de tal estrutura que se orienta para autotranscendência, cuja plenitude é o Filho encarnado. A familiaridade assim criada se concretiza no encontro com o Mistério unificador. Esse encontro é descrito como um “deixar-se cair para dentro do mistério que chamamos Deus”, esse “indefinível, inefável mistério divino”, pelo qual nós mesmos somos divinizados (Grundkurs, p. 413).

IHU On-Line - Rahner ainda oferece boas bases para uma compreensão e uma superação dos atuais desafios da Igreja e de uma sociedade considerada pós-moderna? Em que sentido?

Érico João Hammes - A primeira contribuição de Rahner para compreender a sociedade atual é seu método, mais precisamente, sua maneira de fazer Teologia. Ouvir, dialogar, pensar e dizer. Ouvir o que os interlocutores têm a dizer, levar a sério sua perspectiva e aceitar suas perguntas. Aproximar-se de seu pensamento a fim de aprender a pensar de novo as implicações da própria fé e trazê-las ao conceito. De um modo especial, valorizar a experiência do crer, o ser místico, o testemunho de uma ética da responsabilidade por todos os setores da sociedade e dos sujeitos pessoais, reconhecendo a provisoriedade das fórmulas em favor de sua incessante reelaboração ou releitura.

Quanto à Igreja, é o lugar do exercício do amor ao próximo e a Deus como serviço ao mundo e testemunho do irrevogável e irreversível autoempenho e autocomunicação divina ao mundo em Jesus Cristo, “portador absoluto da salvação”. Em sua condição de sacramento original, traz em si a capacidade para mudar suas próprias estruturas diante das transformações da sociedade, pode responder de maneira plural e local aos anseios e às expressões mais diversas geográfica, religiosa e culturalmente. Cada vez menos dona do mundo e das consciências, é chamada a ser um sinal de acolhida das dores e sofrimentos, das incertezas e buscas do mundo, revisando-se constantemente em suas estruturas e relações com as demais confissões cristãs, as outras religiões e cosmovisões.

IHU On-Line - Quais eram os desafios teológicos que Rahner buscou responder? Em quais fontes do pensamento Rahner foi buscar respostas a essas perguntas?

Érico João Hammes - Rahner veio da tradição escolástica, mas passou por duas guerras mundiais, sendo que seus estudos se deram no período entreguerras, na fase inicial do nazismo, em plena vigência do ateísmo filosófico e do regime comunista russo. As certezas e seguranças da teologia manualística viraram cinzas durante as guerras, mas deixaram um vazio de sentido e montanhas de ruínas. Ao mesmo tempo, o século XX iniciara com uma revisão da Teologia liberal protestante, das convicções filosóficas e de uma irrupção científica sem igual nos séculos anteriores. Assim, Rahner se debruça sobre esse ser humano, impregnado de morte, orgulhoso de seu pensamento e revestido de mundanidade, mas, ao mesmo tempo, inseguro e angustiado. Retoma o melhor de Santo Tomás e formula a tese do “espírito-no-mundo” para descrever o ser humano; em Kant e na tradição filosófica moderna, descobre ser necessário situar o ser humano de maneira adulta no mundo e diante do mistério divino; com Heidegger aprende a pensar a temporalidade, a morte e a orientação quase ontológica (existencial sobrenatural) do ser humano para a transcendência como autotranscendência. Na raiz dessa capacidade está o conhecimento profundo da Tradição teológica, desde a patrística, a exegese bíblica, as diferentes escolas teológicas e a interlocução com a boa teologia do século XX.

IHU On-Line - Como Rahner pode contribuir para o debate acerca do pluralismo religioso e do diálogo com as diferentes religiões? Qual a importância do conceito de “cristão anônimo” hoje?

Érico João Hammes - O conceito de cristão anônimo sofreu inúmeras críticas, mas deve ser relido em sua potencialidade. Em última instância diz que o desígnio salvífico divino está para além das suas formas concretas e históricas. O termo “cristão anônimo” designa, então, geralmente uma consciência de salvação. Ou seja: a mensagem cristã afirma a salvação da humanidade e essa salvação é de tal ordem que mesmo quando alguém não pertence ao cristianismo e vive em outra tradição, pode supor-se a presença salvífica do mistério divino agindo nele por meio do Espírito Santo. Com isso não se abdica da tarefa do cristianismo de anunciar e testemunhar o Evangelho, mas se lhe impõe, ao contrário, fazê-lo de maneira gratuita e diaconal.

De certo modo, é inevitável que as gramáticas religiosas sejam dispensadas no diálogo inter-religioso. No entanto, seria um erro imaginar que daí seguisse necessariamente uma assimetria. Para o cristianismo a unidade humano-divina, na visão rahneriana, é o grande conteúdo da salvação. É a visão de Duns Scotus  de uma encarnação por amor e não por causa do pecado. Ora, nesse sentido, o diálogo não é discriminador, mas discernidor. Visa discernir o que é fundamental para a convivência e realização humana. As próprias fórmulas religiosas regionais, sempre poderão ser aprofundadas à luz dessa exigência.

IHU On-Line - Qual é a importância de se recuperar o pensamento de Rahner na atual conjuntura da Igreja?

Érico João Hammes - Em primeiro lugar, é inevitável dar razão a certos de seus prognósticos: o Cristianismo e a Igreja adquiriram feições muito plurais, mas encolhem rapidamente em vários continentes. Uma boa Teologia da diáspora pode ajudar a viver nas pequenas comunidades que sobrevivem no “inverno” eclesial, reassumindo a força mística de disponibilidade ao Mistério Divino, repensando suas estruturas e assumindo com coragem a diversidade e pluralidade teológica e ministerial.

Em segundo lugar, levar a sério as perguntas e interpelações dirigidas à comunidade cristã, seja das ciências, da política, ou da filosofia.

Em terceiro lugar, deixar a Deus ser Deus, também na Igreja e não substituí-lo por nossas representações, por mais tradicionais que sejam. Por ser Mistério, é sempre maior e menor do que nossas categorias.

Por fim, ir para além de Rahner. Desde sua morte, em 1984, o mundo mudou muito e a Teologia andou por diversos caminhos. Seria anti-rahneriano fixar-se nele para dar conta da tarefa atual. A globalização se radicalizou, as ciências avançaram muito, o pluralismo se instalou em nossas casas, os movimentos religiosos se multiplicaram, muros caíram e outros foram edificados, crises econômicas se sucederam e teologias foram perseguidas, o Concílio sofre corrosões e teólogas e teólogos foram perseguidos e mortos de todas as formas.

Leia mais...

>> Érico Hammes é autor do Cadernos Teologia Pública número 05, de 01-5-2004, intitulado Conceito e Missão da Teologia em Karl Rahner.

>> Jon Sobrino e a Notificação do Vaticano. Depoimentos de Luís Carlos Susin e Érico Hammes. Notícias do Dia 15-03-2007.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição