Edição 288 | 06 Abril 2009

Celebrar a Páscoa contemporânea

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Graziela Wolfart, Márcia Junges e Patricia Fachin

IHU On-Line ouve pessoas de diversas áreas sobre o tema

Estamos em pleno século XXI. Dia a dia, nos encontramos cada vez mais submersos no universo da tecnologia, do virtual, da autonomia. Ao mesmo tempo, ao nosso lado, pessoas ainda vivem como se tivesse parado no tempo, enfrentando adversidades de toda a ordem. Esse contraste paradoxal é apenas um elemento de nossa complexa constituição social e cultural atual. No meio de tanto deslumbramento com a técnica e com a ciência, qual o espaço para a reflexão e para a vivência da fé? Qual é a importância dos valores cristãos, principalmente da solidariedade e do amor ao próximo em uma sociedade marcada pelo individualismo e pela autonomia? Na correria de nossos dias, encontrar um tempo para refletir e tentar compreender nosso mundo é mais do que importante - é quase uma questão de sobrevivência.

Nesse sentido, o que significa celebrar a Páscoa hoje? De que maneira podemos relacionar o momento pascal com a crise financeira internacional, com a crise ambiental e com a crise múltipla de valores em que nos encontramos? De que nos serve a reflexão proposta pela CNBB na campanha da fraternidade deste ano: a paz é fruto da justiça? Há sentido em celebrar a Páscoa em uma sociedade cada vez mais marcada pela violência? Qual a contribuição da reflexão da Páscoa para a construção de possibilidades de vida digna do ser humano? A morte e a ressurreição de Jesus Cristo têm algum significado para nosso contexto sociocultural? São questões que motivaram o Instituto Humanitas Unisinos- IHU a organizar uma programação de eventos com atividades que buscaram preparar as pessoas para a Páscoa nesse espírito de insistir na importância da reflexão. Ao mesmo tempo, o IHU quer sentir como a Páscoa pode abrir perspectivas para o debate sobre possibilidades e impossibilidades da narrativa de Deus numa sociedade pós-metafísica, uma vez que o Instituto está organizando um simpósio internacional com este tema, a ser realizado em setembro deste ano.

E por ter a dimensão da complexidade da sociedade contemporânea e por acreditar que celebrar a Páscoa é algo mais do que nunca necessário em nossos dias que a IHU On-Line ouviu pessoas de diversas áreas sobre esse tema. Cada uma delas, do seu ponto de vista e a partir de sua visão de mundo, justifica a importância de lembrarmos a morte e a ressurreição de Cristo e o que isso significa para nossas vidas.

Para a teóloga Maria Cristina Gianni, da equipe de Atendimento Espiritual do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, festejar a Páscoa tem tudo a ver com o nosso contexto. “Celebramos na Páscoa a ressurreição de um crucificado: Jesus de Nazaré. A páscoa é uma celebração da esperança. Não existe realidade de injustiça e de sofrimento que não possa ser superada pela ressurreição”. Para Cristina, “nosso compromisso como cristãos é viver essa ressurreição para sermos instrumentos, possibilitando que esse renascimento também aconteça onde quer que estejamos: na universidade, no meio do povo, trabalhando pela ecologia. Isso tudo tem sentido, porque quem ressuscitou foi um crucificado”. Cristina destaca que temos hoje, no mundo, “uma natureza que está gritando também para ser libertada, que está sofrendo, por nossa causa, por nossas opções equivocadas. Mas temos como reverter isso. Jesus nos mostra que amando até o fim é possível mudar a realidade de nossa vida, de nossa sociedade”.

Já para o frei Alberto Beckhäuser, da Ordem dos Frades Menores (OFM), doutor em Teologia com especialização em Sagrada Liturgia, pelo Pontifício Ateneu de Santo Anselmo, em Roma, a dificuldade, e até mesmo “incapacidade da sociedade moderna celebrar a Páscoa”, está arraigada na necessidade de acreditar em Jesus Cristo. Ele explica: “Sem fé em Jesus, não podemos celebrar a Páscoa, pois a Igreja celebra a morte e a ressurreição de Cristo e a morte e ressurreição dos que creem e seguem a Cristo”. Na sociedade moderna e pós-moderna, caracterizada pela razão, eficiência, e “onde o único valor parece ser o gozo momentâneo, a Páscoa virou feriadão, virou faturamento na área financeira do consumo de chocolate, de pescado, ou exploração turística do vago sentimento do religioso, do sagrado”, lamenta o professor de Sagrada Liturgia, do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, Rio de Janeiro. Nesta mentalidade consumista e hedonista, garante, “é praticamente impossível celebrar a Páscoa, pois carece do seu verdadeiro sentido”. E questiona: “Quem é Jesus Cristo? Ele é um guru qualquer, um profeta, um super-homem?”. Segundo ele, “Jesus não causa mais impacto no homem moderno e pós-moderno escravizado pela razão, a ciência, a técnica e o consumismo. A cultura contemporânea exclui o absoluto, a transcendência, Deus. É uma cultura materialista e ateia que coloca sua confiança no próprio ser humano”.

“Páscoa é um evento essencialmente cristão, em uma referência a Jesus de Nazaré, um ser humano histórico que é o verbo de Deus encarnado, pelo qual Deus se fez gente, palmilhou nossos caminhos e viveu e morreu pela causa do Reino.” Esta é a definição que a teóloga e doutora em Teologia Cleusa Andreatta, do Programa Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos - IHU dá para essa época do ano. Nessa perspectiva, Cleusa percebe que a Páscoa remete para a dimensão de solidariedade a partir da figura de Jesus. “Nesse tempo de Páscoa, celebramos a ressurreição de alguém que passou a vida inteira fazendo o bem, como está dito nos Atos dos Apóstolos. Parece simples, mas, quando olhamos para a trajetória dele, vemos que é toda pautada pela solidariedade. É uma vida entregue de muitas formas em ações concretas pelas pessoas de seu tempo e, além disso, ensinando para todas as gerações posteriores um jeito de ser humano, um jeito de ser gente ao lado de outras pessoas”, reflete. E acrescenta: “Quando olhamos para a prática de Jesus, vemos aquele sujeito que olha os outros seres humanos e age em favor deles, gasta seu tempo, sua energia, e faz dessa ação em favor dos outros um projeto para a vida inteira. Nesse sentido, a Páscoa tem tudo a ver com o tema da solidariedade, mas uma solidariedade que não é apenas de fazer pequenas ações ou alguns gestos. É a solidariedade feita estilo de vida, internalizada como projeto pessoal. É o ato de dar a vida pelo outro por amor. Quem celebra a Páscoa se dispõe a andar nesse caminho, a assumir como estilo próprio algo da prática de Jesus”. E a teóloga encerra sua reflexão identificando como um problema a transformação cultural que vem acontecendo, por meio da qual “vamos perdendo toda a referencialidade desse dado central da vida, morte e ressurreição de Cristo e o que isso significa nesse contexto de Páscoa. Às vezes nos espiritualizamos demais e perdemos essa vinculação com o projeto do Reino como ele é entendido”.
 
Celebrar a Páscoa em nossos dias significa recuperar os laços da humanidade e da solidariedade que sempre precisamos construir entre nós. Isso se vincula permanentemente com a busca que a sociedade faz de compreender a vida e a verdade, pontua o historiador Solon Viola, professor da Unisinos. Em conversa por telefone com a IHU On-Line, ele sustenta que a solidariedade não é oposta à autonomia do sujeito: “Somos solidários na medida em que decidimos e agimos em direção ao outro, e em reconhecimento desse outro. Nessa dimensão nos humanizamos. Somos seres sociais que precisam radicalmente uns dos outros. Parece-me que, quando o individualismo se opõe à solidariedade, comete-se um equívoco brutal em relação aos seres humanos”. O filósofo Alfredo Culleton, também docente na Universidade, pondera que hoje é tarefa difícil celebrar a Páscoa fora do jogo do consumo, “dos presentinhos, ovinhos, festas, de comer peixe na Sexta-Feira Santa”. Para ele, celebrar a Páscoa em seu verdadeiro sentido é “tentar reviver a passagem, o processo da morte, pensando-a, pensando a dor, a partilha, o sofrimento”.

Ainda sobre a nossa condição humana e a irmandade que temos com nosso semelhante, vale a pena conferir nesta edição e entrevista que o jornalista mineiro Chico Lopes concedeu-nos. Nela, é analisado o clássico Os irmãos Karamazov, obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski, e que tem seu desfecho com um apelo à irmandade entre os homens. Nesse momento Aliócha, o filho religioso dos Karamázov, “encontrará irmãos num sentido mais amplo, já não da família, já não da carne e do sangue, mas da humanidade toda”. Dostoiévski, com seu pendor cristão, oferece-nos um final alvissareiro e a esperança em nosso semelhante.

Simbologia Pascal

O professor Solon Viola menciona que a simbologia pascal da distribuição do pão e do vinho podem ser transpostas à nossa sociedade do ponto de vista de uma real e equitativa distribuição de recursos, como moradia, escola e até mesmo a alegria. Essa partilha seria essencial para a dignidade de nossas vidas. Quanto à reflexão que a Páscoa nos convida a fazer, sobre a possibilidade de se falar em Deus numa sociedade pós-metafísica, altamente secularizada, o pesquisador remete-nos à coincidência dessa época com o início da primavera na Europa. “A primavera é o reencontro coma natureza, com a vida, com o desabrochar das plantas, do canto dos pássaros. Nessa medida, Páscoa significa o encontro com Deus, com o outro e com a natureza, algo que é fundamental para nós.”

Culleton recupera o valor da partilha como central em nossa vivência cristã, dizendo que esta é um imperativo no mundo absolutamente desigual e em guerra civil que vivemos. “A partilha, a aceitação do outro, o reconhecimento do limite são valores que nós, cristãos, cultivamos. E a Páscoa é uma oportunidade para reencontrá-los, refleti-los e vivenciá-los”, disse à IHU On-Line.

Outro aspecto que Culleton observou em sua conversa com a redação da IHU On-Line foi que, no Estado do Rio Grande do Sul, “tão civilizado, tão culto, tão cheio de universidades, programas de pós-graduação e senadores honestos, temos um sistema penitenciário que é um escândalo”. A partir dessa realidade, frisou, “precisamos pensar a morte, a agonia que é a presença do Cristo gritando em nosso cotidiano, e nós, inertes, não temos respostas”. E completou: “A Páscoa tem de nos levar a buscar em nosso meio quem é o crucificado, quem é o torturado, quem é o acusado injustamente. Temos escândalos que conseguimos desconhecer, ignorar, ocultar, justificar. Em ano de Campanha da Fraternidade, cujo tema é segurança pública, o sistema prisional é a coisa mais escandalosa que temos no Brasil inteiro”.

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