Edição 288 | 06 Abril 2009

As águas e a sede do humano pela sua humanidade e divindade

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Márcia Junges

Um infinito de possibilidades, gérmen dos germens e combustível que alimenta a sede humana de sua busca pelo divino e humano e suas ambiguidades são características da água, menciona Evaristo Eduardo de Miranda

A massa oceânica das águas “representa o infinito das possibilidades, o gérmen dos germens e todas as promessas de desenvolvimento e salvação”, afirma o engenheiro agrícola Evaristo Eduardo de Miranda, na entrevista exclusiva concedida por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, “a sacralidade das águas nas religiões, paradoxalmente, aumenta a sede insaciável do humano em busca de sua humanidade e divindade. As águas confirmam o humano na sua condição de sedento caminhante”. Doutor em Ecologia e chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, em Campinas, São Paulo, Miranda pondera que “precisamos de ciência, consciência e muito bom senso para cuidar de nós e das águas”. Relacionando a pureza e limpeza com os ritos da vida espiritual, ele pontua que “Deus nos acolhe e ama como somos. Mais do que puros ou limpos, Deus nos quer inteiros. Com nossos lados claros e escuros, nossos êxitos e fracassos, nossa coragem e medo, nossas ambiguidades e certezas, nossos maus cheiros e perfumes, nossa fé e nossa dúvida. Ele não nos ama de forma calculista ou anti-séptica, mas integral e sem condicionantes: tristes e alegres, certos e errados, corajosos e preguiçosos, masculinos e femininos, ambivalentes e polivalentes”. Sobre o significado da Páscoa, ele diz que “a maioria esqueceu o quanto Jesus, em sua humanidade, aproximou-se e viveu tão perto, tão perto de nós”.

Miranda foi um dos conferencistas do evento Páscoa IHU 2009, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, de 2 de março a 26 de abril. Em 31 de março, ele apresentou o IHU Ideias intitulado A sacralidade das águas e do fogo, e a palestra As águas e o fogo na natureza e na vida espiritual. A programação completa do evento pode ser acessada no sítio do IHU, www.unisinos.br/ihu.

Graduado em Engenharia Agrícola pelo Institut Superieur d Agriculture Rhone Alpes Isara, França, Evaristo Miranda realizou mestrado e doutorado na área de Ecologia na Université de Montpellier II, na França. Atualmente, é chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, representante do Ministério da Agricultura na Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional brasileira e diretor do Instituto Ciência e Fé. É autor de, entre outros, Água, sopro e luz - Alquimia do batismo (2. ed. São Paulo: Loyola, 1995), A foice da lua no campo das estrelas - Ministrar exéquias (São Paulo: Loyola, 1998), A água na natureza e na vida dos homens (Aparecida: Ideias & Letras, 2004) e A Sacralidade das águas corporais (São Paulo: Loyola, 2004). Publicou, ainda, o Guia de curiosidades católicas (Petrópolis: Vozes, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a sacralidade das águas nas religiões?

Evaristo Eduardo de Miranda - Como todos símbolos cosmológicos, a água é cheia de ambiguidades. Ligada à ideia da vida, que nela encontrou seu berço e dela é constituída, a água também evoca a morte, o afogamento, a força aniquiladora dos maremotos, tsunamis e inundações, e o desastre dos naufrágios. Universal, ela alimenta a terra e mata a sede dos homens, das aves e dos cães. Sua massa oceânica, indiferenciada, representa o infinito das possibilidades, o gérmen dos germens e todas as promessas de desenvolvimento e salvação. Todos os povos em suas manifestações religiosas foram buscar na água o elemento de transição, entre o sólido e o gasoso, entre a rigidez e a plasticidade, entre o peso e a leveza, entre a inconsciência e a consciência.

IHU On-Line - Qual é a importância da sacralidade das águas na vida espiritual?

Evaristo Eduardo de Miranda - O homem é o único animal capaz de distinguir a água comum da água benta. É preciso estar sedento para aproximar a riqueza e a sacralidade das águas na vida espiritual. É preciso discernimento para não beber a areia de falsas doutrinas, em meio ao deserto deste mundo, pensando estar sorvendo água fresca. A sacralidade das águas nas religiões, paradoxalmente, aumenta a sede insaciável do humano em busca de sua humanidade e divindade. As águas confirmam o humano na sua condição de sedento caminhante. E o caminho dessas fontes de águas vivas, amplificadoras da sede mística ao invés de aplacá-la, tem um belo traçado no território da tradição judaica e da mística cristã. A junção das águas da tradição judaica com as da tradição cristã constitui um caudaloso Amazonas de símbolos, um mar de lendas, um oceano de imagens, episódios, ritos, doutrinas e uma infinidade de fontes espirituais.

IHU On-Line - A água tem uma simbologia de purificação? Por quê?

Evaristo Eduardo de Miranda - Não apenas. Das 664 citações ou empregos da palavra água na Bíblia, 591 ocorrem nas úmidas páginas do Antigo Testamento. No Novo Testamento são apenas 73 citações onde ocorrem episódios fortes, belos, poéticos, trágicos, cômicos, sinistros, românticos, miraculosos. A maioria delas anda muito distante de ritos de purificação. Na vida de Jesus de Nazaré, as águas estiveram sempre presentes. Serviram-no na descoberta progressiva de sua missão, como águas exteriores: nas nuvens, nas chuvas, no mar da Galileia, no rio Jordão, nas fontes e nas águas contidas em copos, tanques, baldes, cântaros, jarras, bilhas, piscinas, poços e fontes, no vinagre, no vinho e nas parábolas. Apenas em alguns episódios existe essa conotação de purificação. É fundamental descobrir, na vida espiritual, a sacralidade das águas interiores, das águas corporais. A saliva, a sede, as lágrimas, o suor, o sangue e o flanco jorrante de Jesus crucificado são a expressão mais elaborada de sua fidelidade através das águas interiores. Eu tratei desse tema no meu livro A sacralidade das águas corporais.

IHU On-Line - O significado da água no rito batismal cristão não é de purificação?

Evaristo Eduardo de Miranda - Infelizmente, estamos muito contaminados com essa teologia do “sabão em pó e da máquina de lavar” quando se fala de batismo. Igrejas disputam para saber qual batismo lava mais branco. E como lavadeiras, em função da trouxa de roupas ou de pecados, defendem uma grande quantidade de água, a imersão. O batismo não é para lavar, mas para libertar dos pecados. “O batismo, porta dos sacramentos, pelo qual os homens se libertam dos pecados, são de novo gerados como filhos de Deus e se incorporam à Igreja, configurados com Cristo por caráter indelével...” Assim afirma o Código Canônico (Cânon 849 - Do batismo). Para perdoar os pecados, na Igreja católica, há outro sacramento: o da reconciliação ou da confissão.

IHU On-Line - Mas a pureza e a limpeza não são importantes nos ritos e na vida espiritual?

Evaristo Eduardo de Miranda - Nem tanto. Em que medida Deus nos quer puros ou limpos? Muitas perspectivas religiosas ou pessoas sob o jugo de falsa moral buscam e vivem terríveis ideais de mortificação e pureza. Deus estaria lhes exigindo um comportamento de busca absoluta da “limpeza”. Tudo o que não for claro e radiante no espírito e no coração deve ser extirpado e jogado fora. Essas exigências, nada evangélicas, ao invés de salvar, levam a um caminho de extrema miséria, mutilações e infinitos sofrimentos, longe do amor de Deus. A água é símbolo de fecundidade. Ela acomoda-se, molda-se aos recipientes. Deus nos acolhe e ama como somos. Mais do que puros ou limpos, Deus nos quer inteiros. Com nossos lados claros e escuros, nossos êxitos e fracassos, nossa coragem e medo, nossas ambiguidades e certezas, nossos maus cheiros e perfumes, nossa fé e nossa dúvida. Ele não nos ama de forma calculista ou anti-séptica, mas integral e sem condicionantes: tristes e alegres, certos e errados, corajosos e preguiçosos, masculinos e femininos, ambivalentes e polivalentes.

IHU On-Line - Qual seria, em síntese, a simbologia da água na tradição cristã?

Evaristo Eduardo de Miranda - Na tradição judaica e cristã, a água é o elemento cósmico líquido e vitalizante, é o símbolo maior do batismo, está presente em muitos ritos religiosos (ritos pascais, eucaristia, exéquias), transmutada em água benta. A água envolve muitos conteúdos simbólicos, da acolhida (batismo) à despedida (enterro), do começo ao final, do batismo cristão e ao momento da benção do corpo nas exéquias, do inconsciente para o consciente, do visível para o invisível. Creio que ela representa, antes de tudo, a perene transmutação do homem, sob o influxo da graça (ou da seiva) de Deus.

IHU On-Line - Como o significado sagrado das águas pode inspirar os seres humanos a respeitarem mais a natureza e viverem em harmonia com o cosmos?

Evaristo Eduardo de Miranda - Todos seres vivos precisam de água. O Brasil descobre aos poucos uma grande verdade: não tem água para tudo, nem para todos. Dentre todos os necessitados, estão também os ecossistemas. Sem eles não haverá sequer “produção” adequada de água para os humanos, nem alimentos, nem lazer, nem pesca, nem turismo, nem geração de energia, nem navegação, nem irrigação. Produzir comida, alimentos, requer água. Muita água. A agricultura brasileira consome ou recicla cerca de 60% da água doce utilizada no país, enquanto a indústria 28%, e o abastecimento humano apenas 12%. É bom fechar a torneira quando escovamos os dentes, talvez como atitude simbólica. Significa quase nada, na prática. A gestão da água coloca desafios em outros patamares. As águas pedem atenção espiritual, memória histórica, compreensão cultural e participação social e democrática no destino das bacias hidrográficas, muito além de números, tabelas e tecnologias.

Viver em harmonia significa viver em tensão. A deusa Harmonia nasceu da relação entre a deusa do amor, da ternura, Afrodite, e o deus da guerra, do ódio, Ares. Desses opostos, nasceu uma filha, Harmonia. Não há retorno em vida ao paraíso. Precisamos de ciência, consciência e muito bom senso para cuidar de nós e das águas. Isso vale para índios, para a sociedade capitalista e ainda mais para os países socialistas ou comunistas que promoveram os mais gigantescos desastres ambientais da história da humanidade.

IHU On-Line - Qual é o sentido de celebrarmos a Páscoa na sociedade individualista e consumista em que vivemos?

Evaristo Eduardo de Miranda - Na Páscoa não foram os hebreus que passaram. É Deus quem passa a visitar seu povo. No Egito dos Faraós, estabelecido sobre conquistas sanguinárias, os homens foram chamados a um processo alquímico de transmutação, do visível ao invisível. E o primeiro ato de Moisés foi a praga pela qual transformou ou transmutou a água do Nilo, símbolo da vida, em sangue. No evangelho de João, foi num casamento, nas bodas de Caná, que Jesus começou seu ministério. E o fez transformando a água em vinho, e não em sangue. Por isso, no passado, muitos santos cristãos já apresentavam Jesus como a sétima jarra das bodas de Caná.

Encerrava-se a necessidade de transformar-se a água em sangue como na primeira praga do Egito. Agora nos é dado a conhecer um outro caminho. A vinificação é alegoricamente a espiritualização da vinha. É a subida pelos graus de energia e consciência, do visível para o invisível. A água se torna vinho como primícias do sangue que será vertido pela salvação do mundo. No final de sua missão, numa ceia, numa santa ceia, Jesus transformou o vinho em seu sangue. Sangue que brotará do seu flanco, junto com a água, do alto da cruz. Nesta Páscoa, tudo se repete e se rememora. Deus vem nos visitar e traz a radicalidade da Ressurreição.

IHU On-Line - O homem contemporâneo esqueceu o verdadeiro significado da Páscoa?

Evaristo Eduardo de Miranda - A Páscoa evoca algo perturbador para quem deseja sucesso e desempenho. Moisés,  Buda,  Maomé  e Confúcio  faleceram com idade respeitável, após uma vida de conquistas e realizações, cercados por seus discípulos e sucessores. Encerraram suas vidas “repletos de dias”, como os patriarcas de Israel, após anos de venturas. Tiveram até o fim uma existência cercada de esposa, filhos, parentes, amigos e até de um harém, como o profeta Maomé, falecendo nos braços de sua esposa bem amada. De certa forma, eles são modelos adequados para líderes de empresas, jovens talentosos, pessoas com ambição social e que, sobretudo, não querem morrer. Não foi assim com Jesus, o filho do carpinteiro de Nazaré. Jesus morreu jovem e celibatário, após uma atividade extremamente curta, de no máximo de três anos e possivelmente apenas de alguns meses. Ele morreu abandonado e negado por seus discípulos, ofendido e amaldiçoado por seus adversários e aparentemente abandonado por Deus. Ele foi condenado ao mais horroroso e odioso dos suplícios: a cruz. Assim apresenta-nos Jesus o evangelho de Marcos. No começo um simples homem, mais adiante “um homem eleito por Deus acima de toda criatura,” nos dizeres de Paulo apóstolo, depois os evangelhos o tratam de “filho do homem” e, afinal, “filho de Deus”. Bem mais tarde, no evangelho de João, Jesus se torna o Verbo encarnado. Eis um dos caracteres decisivos da especificidade cristã, nos dizeres do teólogo Hans Küng.  E toca um dos mistérios da fé cristã.

IHU On-Line - Como descobrir, encontrar e viver esse sentido original da Páscoa cristã?

Evaristo Eduardo de Miranda - No encontro da pessoa humana de Jesus. Quantos encontros inesperados transformam nosso dia, nossa semana e até nossa vida? Cada um de nós poderia fazer uma lista desses eventos que mudaram nossa trajetória, enriqueceram nossa existência e transformaram nossa visão do mundo, dos outros e de nós mesmos. Existe uma verdade ontológica nesse tema, muito presente nos evangelhos: nós não somos donos de nossos encontros. Essa constatação é cheia de consequências. Nos evangelhos, a maioria dos encontros com Jesus é inesperada. Isso não é o resultado de uma alta estratégia, elaborada nos céus, nem de uma pedagogia da conversão. A razão principal é a proximidade humana de Jesus. A inteligência da vida humana de Jesus e de seus encontros com seus próximos, de quem ele aproximou-se e de quem eles aproximaram-se, abre o caminho para uma reapropriação da existência singular de cada um de nós. É a nossa Páscoa. Devemos buscá-la nos evangelhos. O Verbo se fez carne e habitou entre nós. A maioria esqueceu o quanto Jesus, em sua humanidade, aproximou-se e viveu tão perto, tão perto de nós. Lá estava ele sentado na beira do poço, tão verdadeiro, amigo das videiras, do trigo, das ovelhas, das crianças, evocando os pardais, os lírios e as raposas; cansado, dormindo no barco, a cabeça repousando na almofada; com sede, com fome, ele era um hóspede da noite, na mesa de Lázaro, Marta e Maria, na casa de Zaqueu ou de Jairo. Caminhando na madrugada, quando isolava-se para orar, ele aproximava-se de seus discípulos com os pés molhados de orvalho e o rosto iluminado pelos primeiros raios do sol.

Leia mais...

Evaristo Eduardo de Miranda já concedeu outras entrevistas ao sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Elas estão disponíveis na nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu.

* A junção da fé com a razão e da ciência com a religião. Entrevista especial com Evaristo Eduardo de Miranda. Notícias do Dia, de 11-11-2006.

* “A invenção do Brasil. Entrevista especial com Evaristo Eduardo de Miranda”. Notícias do Dia, de 20-06-2007.

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