Edição 288 | 06 Abril 2009

A respiração tornada melodia. O canto pascal

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges e Graziela Wolfart

Obras de Bach e Beethoven celebram a vida como uma benção, e preparam ouvintes para vivenciar o sentido da ressurreição. Reconstrução e renascimento são possibilidades através da arte, e audições comentadas aproximam-nos desse significado

Nas obras Ich hatte viel Bekümmernis, de Bach, e Missa Solemnis, de Beethoven, “soa a convicção que a vida é uma benção e, por isso, são maravilhosos alimentos espirituais que nos preparam para viver o sentido profundo da ressurreição”, disse a Prof.ª Dr.ª Yara Caznok, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, dando maiores detalhes sobre as audições comentadas que conduziu dentro da programação da Páscoa IHU 2009, em 2 e 3 de abril. Segundo ela, “permitir-se experimentar e viver interiormente as duas escutas tomando-as como mundos sensíveis distintos, sem tentar eleger a mais ‘apropriada’ segundo padrões preconcebidos, seria o melhor caminho para nos aproximarmos do conteúdo espiritual encerrado em cada uma delas”. Em sua opinião, cantar é rezar duas e até mais vezes, “mas essa ação multiplicadora se dá na simultaneidade, na sobreposição e não apenas na repetição”.

Caznok é graduada em Letras Franco-Portuguesas, pela Fundação Faculdade Estadual de Filosofia Ciências Letras Cornélio Procópio (FAFI), e em Música pela Faculdade Paulista de Arte (FPA). Especialista em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), cursou mestrado em Psicologia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorado em Psicologia Social pela USP com a tese Música: entre o audível e o visível (São Paulo: EDUNESP, 2004). É autora, entre outros, de Ouvir Wagner - Ecos nietzschianos (São Paulo: Editora Musa, 2000) e O desafio musical (São Paulo: Irmãos Vitale, 2004). Atualmente, leciona na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no Departamento de Música.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - De que forma podemos rezar e meditar sobre a Páscoa através das composições de Bach  e Beethoven?

Yara Caznok - Primeiramente, é preciso reconhecer que estamos diante de duas obras cujo intenso apelo sensível, por meio da beleza, nos coloca imediatamente no mundo da meditação e da reflexão espiritual. A genialidade com a qual Bach e Beethoven construíram as melodias, as harmonias, a instrumentação, a estrutura formal e a relação texto/música é tão impactante que provoca no ouvinte a sensação da completude e a proximidade da ideia da perfeição. Obras de arte dessa envergadura nos colocam diante da questão: quanto há de divino na ação humana? A Cantata BWV 21,  mesmo não tendo sido escrita para o período pascal, apresenta o trajeto de uma alma que sofre por se sentir abandonada até encontrar Jesus, que a acolhe e a consola. Com a Missa Solemnis , temos toda uma comunidade que se afirma plena em sua liberdade por meio de orações ora voluntariosas, ora contritas, ora violentas, ora íntimas. Em ambas, soa a convicção que a vida é uma benção e, por isso, são maravilhosos alimentos espirituais que nos preparam para viver o sentido profundo da ressurreição.

IHU On-Line - Nesse sentido, quais são as particularidades que aponta sobre Ich hatte viel Bekümmernis , de Bach, e Missa Solemnis em ré maior, de Beethoven, que estimulam a nossa espiritualidade?

Yara Caznok - Essas duas obras são muito diferentes em suas propostas estéticas e espirituais, não só porque pertencem a períodos históricos distintos, mas também porque as formas de expressar a fé de Bach e de Beethoven são bastante diferentes. Com Bach, somos convidados a um exercício pietista de recolhimento e de meditação sobre nossa condição de incompletude que só se transforma com a presença de Deus. Beethoven pertence a uma época pós-revolução francesa, na qual o homem de ação, construtor de um mundo solidário e justo, reza de uma outra maneira, cultivando sua fé em uma comunidade que celebra a liberdade e os valores humanos. Permitir-se experimentar e viver interiormente as duas escutas tomando-as como mundos sensíveis distintos, sem tentar eleger a mais “apropriada” segundo padrões preconcebidos, seria o melhor caminho para nos aproximarmos do conteúdo espiritual encerrado em cada uma delas.

IHU On-Line - Poderia apontar as circunstâncias e o contexto em que foram compostas essas obras?

Yara Caznok - As informações históricas sobre a Cantata BWV 21 não são seguras, pois a partitura desapareceu. Pelas partes dos instrumentos e vozes que foram preservadas, sabe-se que ela foi executada em Weimar,  no terceiro domingo após a festa da Trindade em 1714. A indicação Per ogni tempo encontrada nessas partes revela que ela não teria tido uma destinação específica dentro do ano litúrgico e seu texto, inspirado em versículos dos Salmos 94, 42, 116 e no Apocalipse (coros 2, 6, 9 e 11, respectivamente), teria sido escrito por Salomo Franck, clérigo e poeta em Weimar. Há também a hipótese de que Bach tenha escrito essa Cantata em 1713 por ocasião de sua candidatura ao posto de organista da Liebfrauenkirche de Halle. De qualquer forma, esta é a única Cantata do período de Weimar  (1708-1717) que tem a estrutura bipartida – parte I, sermão, parte II e que, guardadas as proporções, por sua intensa dramaticidade é comparada às duas Paixões e à Missa em si menor.

O repertório sacro escrito por Beethoven conta com apenas 2 missas e um oratório (Cristo no Monte da Oliveiras). A composição da Missa Solemnis foi iniciada em 1819, quando ele já estava totalmente surdo, para celebrar a nomeação do Arquiduque Rodolfo da Áustria como arcebispo de Olmütz, na Morávia. Sua intenção, portanto, era escrever uma obra litúrgica para ser apresentada na catedral de Colônia, em uma festa de grande magnitude. A Missa, no entanto, só foi terminada em 1823, e, durante esses anos, Beethoven trabalhou em outras peças, em especial, na 9ª Sinfonia (1824), obra com a qual compartilha o espírito humanista e a extrema intensidade expressiva. Estão presentes também na Missa os mundos sonoros de Bach, Haendel  e Palestrina,  as texturas polifônicas e o pensamento modal do canto gregoriano, reinterpretados por Beethoven nessa sua última fase criativa. Marcante e incisivo, esse espírito híbrido, inspirado e libertário que habita a Missa Solemnis faz dela uma das obras mais importantes do repertório sacro do século XIX. 

IHU On-Line - Como definiria o audível e o visível nas audições desses compositores?

Yara Caznok - Em Bach, a visualidade sonora se dá por meio de procedimentos retóricos do “falar por imagens” (eikonologuía). Sentimentos, ações, movimentos físicos e espirituais, entre outros, são apresentados por motivos e eventos musicais cuja significação é sugerida e confirmada pelo texto.  Direções de escalas, intervalos e saltos, cromatismo, acordes, células rítmicas pontuadas, procedimentos imitativos, retrogradados e/ou espelhados, entre outros, simbolizam conteúdos “extramusicais” que se apresentam aos ouvidos como imagens: quedas físicas e ou morais e estados de prostração são experimentados como descendentes e preces que se dirigem aos céus ou vitórias, como ascendentes, para citar apenas uma entre infinitas possibilidades. A função dessa visualidade na obra de Bach tem uma importante função: converter o ouvinte, tomando-o por todos os sentidos e intensificando seu encontro com o sagrado. Em Beethoven, essa tradição já divide as forças com uma outra qualidade de fruição imagética: são forças monumentais que se erguem, blocos sonoros que nos trazem texturas densas ou diáfanas, sonoridades que nos remetem a vácuos e circularidades, entre outros, e que não têm, necessariamente, correspondentes figurativos pré-definidos, ou identidades visuais estáveis. A condução da interioridade do ouvinte ao sublime é também objetivo de Beethoven e isto, sem dúvida, se dá por meio de uma arquitetura musical majestosa e imponente.   

IHU On-Line - Cantar é mesmo rezar duas vezes? Por quê?

Yara Caznok - Sim, e eu diria que são duas ou até mais vezes, mas essa ação multiplicadora se dá na simultaneidade, na sobreposição e não apenas na repetição. Com sobreposição, quero dizer que há um aumento da intensidade na vivência, um aprofundamento no ato de voltar-se completamente para a oração. Quando comparado ao canto, uma oração proferida tem um distanciamento: a compreensão das palavras se faz mais presente e sua interiorização depende de um investimento temporal. O cantar não parte inicialmente do entendimento do texto, mas do estabelecimento imediato de uma intimidade, tal como em qualquer relação amorosa de entrega e de doação de nossa interioridade. Lembremo-nos das canções de ninar, nas quais, antes do conteúdo semântico, há a busca pelo estabelecimento de um clima de confiança, de verdadeiro encantamento afetivo. A internalização do texto vem posteriormente, como consequência e confirmação da experiência primeira. Cantar também demanda uma maior concentração física, mental e espiritual a fim de que a voz – respiração tornada melodia – efetue a troca mais íntima que podemos ter com o mundo externo, a inspiração e a expiração. Por isso, o canto se tornou o instrumento da união por excelência, pois permite a experiência do encontro com a coletividade e, ao mesmo tempo, da individuação. Aliada a todas essas potencialidades, está a capacidade dos compositores em criar melodias que nos capturam e nos transformam pela beleza, pela força que uma obra de arte tem de nos comover, nos emocionar e nos converter.  

Leia mais...

Yara Caznok já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Ela está disponível na nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu.

Entrevista:

• “Mozart, um compositor e suas contradições”. Edição número 174, intitulada Wolfgang Amadeus Mozart. Jogo e milagre da vida, de 03-04-2006.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição