Edição 284 | 01 Dezembro 2008

O ser humano não necessita de melhora, mas de perdão”

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Graziela Wolfart

Para o teólogo alemão Ulrich Körtner, os textos bíblicos devem ser submetidos a uma crítica histórica. Professor titular da Universidade de Viena (Áustria), Körtner faz uma análise do Jesus histórico, baseado em diversos autores, principalmente em Rudolf Bultmann. Para o teólogo alemão, “as diversificadas interpretações bíblicas da figura de Jesus devem ser confrontadas criticamente entre si. Também não basta a referência ao puro fato de que Jesus de Nazaré existiu, mas também deve ser levantada a questão sobre como e o que é proposto em torno de seu anúncio e seu caminho de vida”.

Ulrich Körtner, professor titular da Universidade de Viena (Áustria), é um dos mais renomados teólogos protestantes alemães da atualidade na área da teologia sistemática, especialmente hermenêutica e ética, com vasta bibliografia. No último mês de setembro, ele fez sua primeira visita ao Brasil, quando proferiu uma série de palestras nas Faculdades EST (Escola Superior de Teologia), sobre o tema Dogmática como exegese conseqüente? Da relevância da exegese para a teologia sistemática na esteira de Rudolf Bultmann. Na ocasião, também proferiu um curso intensivo sobre hermenêutica teológica no Programa de Pós-Graduação das Faculdades EST. Seu livro sobre o mesmo assunto está sendo traduzido e será publicado pela Editora Sinodal em 2009. Körtner, além disso, editou o livro A polêmica da biomedicina, escrito com Reiner Anselm e publicado em português pela Editora Loyola, em 2007. Em 2002, foi premiado como “cientista do ano de 2001” pelo clube dos jornalistas de educação e ciência.

Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, Körtner faz uma análise do Jesus histórico, baseado em diversos autores, principalmente em Rudolf Bultmann. Para o teólogo alemão, “as diversificadas interpretações bíblicas da figura de Jesus devem ser confrontadas criticamente entre si. Também não basta a referência ao puro fato de que Jesus de Nazaré existiu, mas também deve ser levantada a questão sobre como e o que é proposto em torno de seu anúncio e seu caminho de vida”. Sobre a importância de Bultmann, Körtner reconhece o quão fortemente ele influenciou a discussão filosófica de seu tempo. E lamenta que “hoje, infelizmente, não se pode dizer isso da teologia”.

IHU On-Line - Se o Jesus “histórico” não é atingível, porque encoberto pelas expansões da fé das primeiras comunidades cristãs, então também não necessitamos de suas descrições histórico-científicas para crer. Com o Jesus da história assim relativizado, Bultmann coloca todo o peso existencial no Cristo da fé. Que contribuições e limitações esta divisão trouxe para a teologia sistemática?

Ulrich Körtner - Bultmann  reagiu à primeira fase da pesquisa sobre a vida de Jesus, que se encerrou com a História da pesquisa sobre a vida de Jesus (1906, 2. ed. 1913), de Albert Schweitzer.  O que Schweitzer constatou para a literatura sobre a vida de Jesus desde o Iluminismo (Aufklärung) também vale para a literatura atual sobre Jesus: ela nos revela mais sobre os interesses dos autores modernos que sobre o próprio Jesus. Já Gotthold Ephraim Lessing  formulara a concepção de que verdades históricas casuais não oferecem base suficiente para verdades universais da razão. A certeza da fé não pode tornar-se dependente dos dados oscilantes da pesquisa histórica. Bultmann argumenta de forma claramente teológica, apoiando-se fortemente em Paulo.  Este escreve que não precisamos conhecer o Cristo segundo a carne (em grego: katá sárka), para crer no Filho de Deus, em sua ação salvífica e em sua ressurreição (2 Cor 5,16). Dito de outra maneira: o significado salvífico de Jesus, de sua vida e de sua morte, não se revela através da pesquisa histórica. Além disso, Bultmann levou a sério o conhecimento de que Jesus era judeu. Como tal, ele integra os pressupostos do cristianismo, não fazendo parte deste próprio. O cristianismo surge no momento em que o proclamador se torna o proclamado. Não obstante, Bultmann não deixou de se interessar pela mensagem do Jesus histórico, como demonstra seu famoso livro sobre Jesus, publicado em 1926.

IHU On-Line - Podemos afirmar que uma cristologia querigmática pode substituir o “Jesus histórico”?

Ulrich Körtner - Martin Kähler já tinha feito sagaz crítica dos problemas inerentes à pesquisa sobre Jesus e defendeu a tese de que o verdadeiro Jesus histórico não era outro senão o Cristo bíblico dos Evangelhos. Por vezes se interpretou Bultmann nesta linha da tradição. Entretanto, mais do que Bultmann, quem deu continuidade à orientação de Kähler foi seu discípulo Paul Tillich  (1886-1965). Em Bultmann, a proclamação, o querigma, concentra-se totalmente no apelo à fé e no apelo à decisão de uma existência na fé. Esta compreensão pontual da fé é mais fortemente influenciada por Kierkegaard  do que por Kähler. Em contraste, pode-se argumentar com Paul Ricoeur  que não é função da hermenêutica – podemos completar: nem da proclamação cristã – despertar uma decisão imediata do leitor ou do ouvinte, mas deixar que se desenvolva o mundo do ser (Seinswelt), o qual ocupa o centro de interesses dos textos bíblicos e, com isto, também das narrações neotestamentárias sobre Jesus. Mas não há [como encontrar] nenhum Jesus histórico por trás dos textos bíblicos, e sim a figura histórica de Jesus nos é apresentada no veículo que são esses textos, concebidos na perspectiva da fé pós-pascal. Mesmo assim, os textos bíblicos precisam ser submetidos a uma crítica histórica. As diferentes interpretações bíblicas da figura de Jesus devem ser confrontadas criticamente entre si. Também não basta a referência ao puro “fato de que” Jesus de Nazaré existiu, mas também é preciso perguntar pelo “como” e pelo objeto da sua proclamação e da sua trajetória biográfica.

IHU On-Line - Bultmann utilizou conceitos da filosofia existencialista e apelou para a profunda experiência da vida humana. Esta teologia não deveria reconquistar a dimensão da cooperação, para tomar decisões essenciais e éticas?

Ulrich Körtner – Bultmann, de fato, assimilou fortemente a filosofia do primeiro Heidegger. Na verdade, Heidegger também foi influenciado por Bultmann. Por sua vez, Bultmann reformulou, por conta própria, a fenomenologia heideggeriana da existência humana e não tornou sua teologia unilateralmente dependente da filosofia de Heidegger. Este, com razão, não concordou com que se designasse sua filosofia como existencialista, como Sartre o fez. Ele antes levantou de maneira nova a pergunta pelo ser, fazendo do ser-pessoa-humana [das menschliche Sein], que ele chama de “Dasein” [existência], o ponto de partida da sua reflexão. Bultmann viu na filosofia de Heidegger uma possibilidade de reformular as questões ontológicas na teologia, ao mesmo tempo em que superava a metafísica tradicional, da qual a dogmática tradicional é cativa. Bultmann sempre se posicionou criticamente ante a mesma. A única forma legítima de dogmática foi para ele aquela que, com Eberhard Jüngel,  se pode designar como exegese conseqüente . É notável o quanto Bultmann também influenciou a discussão filosófica de seu tempo.

IHU On-Line - Que contribuições o “programa de desmitologização” de Bultmann trouxe para a reflexão teológica?

Ulrich Körtner - O programa da desmitologização é simplesmente o reverso daquilo que Bultmann chamou de interpretação existencial do Novo Testamento. Tomando-o ao pé da letra, para nossa cosmovisão esclarecida, as afirmações mitológicas da Bíblia estão ultrapassadas. Mas, em vez de eliminá-las, Bultmann quer interpretá-las existencialmente, isto é, antropologicamente. A fé deve ser diferenciada do mito, porque, como o falar sobre Deus, ela escapa de toda objetivação cosmovisiva. Como exegeta de formação histórico-crítica, Bultmann se colocava insistentemente a questão sobre o que os textos do Novo Testamento têm a dizer ao homem moderno de nossa era.

IHU On-Line - A teologia de Bultmann continua sendo relevante para o diálogo com a modernidade? Por quê?

Ulrich Körtner - Nos anos 1950 e 60, o programa de desmitologização de Bultmann provocou uma disputa polêmica no seio da Igreja. Círculos conservadores faziam ao teólogo de Marburgo a objeção de abolir a confissão de fé cristã, e até quiseram abrir um processo disciplinar contra ele como docente. Para outros críticos, a modernização bultmanniana da teologia não ia longe o suficiente. A compreensão de Bultmann sobre o mito sofreu críticas de diversos tipos. Mas, embora nas últimas décadas o conceito do mito tenha experimentado uma nova valorização, a teologia de Bultmann nunca deixou de ser atual. Precisamente no confronto com novas formas de religiosidade sincretista e mítica, a crítica de Bultmann sobre o mito deve ser levada novamente em consideração, da mesma forma como seu trato crítico do conceito de religião.

IHU On-Line - Bultmann põe grande ênfase na subjetividade do indivíduo. Que elementos nos ajudam a compreender esta proposta?

Ulrich Körtner - A fé é sempre uma questão sumamente pessoal. Na fé, ninguém pode substituir-me, como tampouco na morte. Ninguém pode crer pelo outro. Mas a fé cristã é também um fenômeno comunitário, porque nela não se trata de uma relação direta com Deus, mas de uma relação historicamente mediada. A fé é despertada pelo querigma, que me atinge a partir de fora. Não posso dizê-lo pessoalmente para mim, e sim preciso deixar que mo comuniquem. Neste sentido, a comunidade de fé, em outras palavras a Igreja, também na concepção de Bultmann, é parte constitutiva do querigma. A concentração de Bultmann na subjetividade da fé não deve ser mal-entendida em sentido individualista. Por outro lado, ela não se esgota num aceitar como verdadeiras certas frases objetivas que a Igreja me prescreve como norma doutrinal, mas consiste em entender de nova forma a si mesmo e a própria existência. Deus, como a realidade que tudo determina, só se revela para nós se aprendermos a entender-nos de maneira nova e específica. Por isso, Bultmann escrevia em 1925: “Caso se queira falar de Deus, ao que tudo indica é preciso falar de si mesmo”. Mas para Bultmann também vale o inverso: se quisermos falar de nós mesmos e entender-nos adequadamente, precisamos falar de Deus; e isso, no sentido do Evangelho neotestamentário.

IHU On-Line - Considerando que Gadamer trouxe contribuições ao pensamento de Bultmann, podemos falar de uma complementação da hermenêutica filosófica e teológica?

Ulrich Körtner - Seria melhor falar de um diálogo crítico. A hermenêutica filosófica não supera a teológica, como, inversamente, a hermenêutica teológica tampouco supera a filosófica. O filósofo italiano Gianni Vattimo  afirma que a hermenêutica moderna, desde Nietzsche e Heidegger, outra coisa não é senão a mensagem cristã desenvolvida e levada à sua maturidade de forma sistemática e coerente. Acontece, porém, que a teologia pergunta pela salvação. Ela é uma interpretação soteriológica ou salvífica da realidade, que interpreta sua carência salvífica a partir da perspectiva da realidade da redenção biblicamente testemunhada. Na medida em que também a hermenêutica moderna se posiciona criticamente ante teorias metafísicas de fundamentação última e seus predicados absolutizados, há um parentesco entre a hermenêutica filosófica e a teologia hermenêutica bultmanniana. Porém, o que separa a hermenêutica moderna da teologia hermenêutica é a doutrina cristã do pecado, que também se externa como pecado em nossa compreensão. Esta doutrina é irrenunciável para a hermenêutica teológica, porque somente por meio dela o ceticismo hermenêutico chega a uma verdadeira compreensão de si próprio.

IHU On-Line - Que hermenêuticas teológicas e éticas uma teologia ecumênica deve considerar? 

Ulrich Körtner - A multiplicidade de formas da cristandade é o tema da teologia ecumênica. Em sentido estrito, até se deve falar, no plural, de cristandades diversificadas. Para o diálogo das Igrejas e Confissões, é indispensável uma teoria hermenêutica que não só crie as bases de uma compreensão comum, mas também fomente a compreensão para o eventual entendimento diverso da fé cristã e de sua mensagem. Isto vale tanto para as questões dogmáticas como também para a ética. Diferenças éticas não provêm de concepções diferenciadas da Igreja, do magistério eclesiástico e da tradição eclesial. Prioridade, hoje, é compreender as diferenças fundamentais e suas causas. Neste contexto, falo de uma hermenêutica diferencial que vai atrás da questão de quais diferenças são expressão de uma legítima multiplicidade criada pelo próprio Deus triúno, e quais são conseqüência da culpa e do pecado humano. Que diferenças têm o caráter separador de igrejas, e quais não? A hermenêutica, como teoria da compreensão, não pode, evidentemente, ser concebida como teoria de política eclesiástica, como instrumento para uma questionável política da unidade. Como teoria da compreensão, a hermenêutica deve preservar sua função crítica no diálogo ecumênico. Uma hermenêutica ecumênica não é, no meu entendimento, uma hermenêutica para a unidade, mas uma hermenêutica da diversidade, que tem seu fundamento em Deus como plenitude da vida.

IHU On-Line - Quais são os principais desafios éticos no campo da biomedicina?

Ulrich Körtner - Menciono topicamente os problemas éticos da medicina reprodutiva e da genética, e, concretamente, os problemas éticos de testes genéticos e da medicina preditiva, bem como da Public Health Genomics [Genômica da Saúde Pública], além das questões éticas referentes ao fim da vida: renúncia à terapia, declarações de vontade de pacientes e eutanásia. Nos países ricos do Norte, a crescente expectativa de vida também é um tema premente. A participação populacional de pessoas idosas com mais de 80 anos cresce e, com isso, também o número de pessoas que sofrem de demência e outros que necessitam cuidados. De um modo geral, em nível nacional e global, colocam-se prementes questões sobre justiça e tratamento da saúde, isto é, sobre a justa distribuição dos recursos. Do ponto de vista internacional, ainda há uma grande desigualdade entre a onerosa medicina de ponta nos países ricos do “Primeiro Mundo” e os serviços médicos, em parte ainda precários, nos países do “Terceiro Mundo”. Menciono apenas o exemplo da Aids. Precisamos desenvolver um novo conceito de justiça, para resolver os problemas da assim chamada alocação, isto é, da distribuição dos recursos na área da saúde.

Nossa concepção do ser humano

Fundamental é, no entanto, em todos os problemas de ética médica, a questão sobre nossa concepção do ser humano, sobre nossos conceitos de doença e saúde, de incapacidade, de sofrimento e morte. Em conexão com isso, coloca-se a pergunta pelos objetivos da medicina, mas também a questão sobre nossa visão do corpo humano. Será que o objetivo da medicina consiste unicamente na cura de doenças ou também na melhoria biotecnológica da natureza humana? Saúde e boa forma se tornaram simplesmente uma religião substitutiva em nossa sociedade moderna. E o corpo humano também se torna objeto da auto-encenação. Pensemos apenas no papel da cirurgia cosmética ou da correção dentária, justamente também no Brasil. A moderna mania de perfeição no trato com o corpo humano e a saúde deve ser submetida à crítica da ideologia [que está por trás]. Na visão cristã, a pessoa humana não necessita de melhora, mas de perdão. Ela não deve tornar-se melhor ou mais perfeita, e sim nova. Porém, esta é uma promessa escatológica. A fé cristã nos ajuda a lidar de maneira mais serena com nossa finitude e nossas imperfeições. Existe um direito à imperfeição, cujo respeito e defesa é um parâmetro que indica quão humana é uma sociedade.

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