Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Lobato, formador de uma infância pensante e culta

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Eliana Yunes

Para Maria Clara Bingemer, Lobato “presta um enorme serviço à infância”: suas obras instigam e desafi am o pensamento infantil, estimulam a imaginação e a fantasia criadora da criança

“Lobato é o formador de uma infância pensante e culta, que ama a leitura e faz do livro sua casa.” Com essas palavras, a professora Maria Clara Bingemer, doutora em Teologia e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), resume bem a sua própria experiência como leitora de Lobato na infância. Nas respostas à entrevista concedida à professora Eliana Yunes, doutora em Literatura e vice-decana de Desenvolvimento do mesmo Centro, Maria Clara mostra o encantamento que os personagens do Sítio do Picapau Amarelo lhe provocaram e como foram importantes para sua futura formação teológica. “Foi Lobato que me abriu o mundo da mitologia grega que depois fui estudar. Certamente foi um antecedente importante na minha futura decisão de fazer teologia”, considera. Além disso, apresenta uma visão atualizada sobre as acusações sofridas por Monteiro Lobato por parte da Igreja.

Maria Clara é graduada em Jornalismo, mestre em Teologia, pela PUC-Rio, e doutora em Teologia Sistemática, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. Entre suas obras, destacamos Simone Weil – A força e a fraqueza do amor (Rio de Janeiro: Rocco, 2007). A entrevista a seguir foi concedida por e-mail.

IHU On-Line – Entre as obras de Lobato que a senhora leu, o que se tornou efetivamente marcante?

Maria Clara Bingemer - Todo o mundo encantado que ele cria.  A personagem de Narizinho me marcou muito, em termos de identificação.  Eu não era como ela; sempre fui uma criança dócil, filha única e mimada.  Mas aquela menina que sabia tanto e falava como adulta me encantava. Talvez eu desejasse ser como ela e não tivesse coragem. Sim, acho que era isso. Mas meu ídolo era a Emília.  Eu a achava genial: inteligente, engraçada. Jamais a olhei como boneca, mas sim como gente e mais que gente. 

Uma das histórias de Emilia que mais amei foi a dos doze trabalhos de Hércules, quando ela se apaixona por ele e lhe dá um apelido carinhoso: Lelé.  Aquilo é delicioso, porque ela o ajuda nos seus trabalhos. Quando ele está perdendo a força, ela grita para ele levantar as pessoas do solo, desligando-as assim da fonte de energia e tornando-as mais indefesas. Depois, a acidez dos comentários dela, de suas críticas, ásperas e certeiras, indo direto ao ponto.  É uma criação genial. Além disso, foi Lobato que me abriu o mundo da mitologia grega que depois fui estudar. Certamente, foi um antecedente importante na minha futura decisão de fazer teologia. 
 
IHU On-Line – Sendo uma teóloga, que efeitos mais positivos você vê na experiência do Sítio do Picapau Amarelo?

Maria Clara Bingemer - Vejo o respeito pela fantasia e pela imaginação das crianças e dos adultos. Vejo o dialogo entre gerações acontecendo, e o amor pelo estudo e pela cultura também. Apesar de Lobato não ser propriamente uma pessoa religiosa, acho que é profundamente ético. Dona Benta tem diálogos com seus netos que são de alto teor ético, e, apesar de ser porta-voz de Lobato em termos de seu anti-clericalismo, inclusive com críticas à igreja como instituição, tem um profundo respeito pelo ser humano e seus ideais. O livro sobre Dom Quixote, por exemplo, é comovente: descreve o Fidalgo com toda a sua nobreza e sua fragilidade propondo-o aos leitores como paradigma de comportamento digno, ético e idealista. Na verdade, a transcendência em Lobato passa mais pela ética, pelos valores, pelo senso de realidade e a necessidade de atuar no mundo para fazê-lo mais justo e mais humano. A comunidade do Sítio do Picapau Amarelo é um pouco uma utopia que descreve uma cidade ideal, onde as pessoas se respeitam, partilham conhecimento e abrem caminho umas para as outras. 
 
IHU On-Line – Lobato pode ser tomado como um “desencaminhador da infância”?

Maria Clara Bingemer - De forma alguma.  Lobato presta um enorme serviço à infância, que é fazê-la pensar. Na era da televisão e da internet, da lei do menor esforço, quando as crianças recebem tudo mastigado, passam a vida diante de joguinhos eletrônicos violentos e emburrecedores, e apertam botões e dão clicks para conseguirem o que desejam, a prosa instigante de Lobato é um santo remédio para desafiar o pensamento, a imaginação, a fantasia criadora da criança. Por exemplo, o livro Viagem ao céu de certa maneira é pioneiro daquilo que os astronautas na virada da década de 1960 para 70 conseguiram: habitar o espaço, pisar na lua.  A tudo isso Lobato se antecipou e seus leitores puderam saborear essas excitantes experiências antes que a ciência as socializasse para o mundo inteiro.  Acho que Lobato é o formador de uma infância pensante e culta, que ama a leitura e  faz do livro sua casa.
 
IHU On-Line – Quais as motivações do padre Salles Brasil para atacar Lobato com o referendum da Igreja?

Maria Clara Bingemer - O padre Salles Brasil, como todo eclesiástico de sua época, ou seja, antes do Concílio Vaticano II, vê em Monteiro Lobato uma perniciosa influência, sobretudo para o público infantil, por achar serem suas idéias e sua literatura materialista, negando o princípio transcendente da realidade e inclusive pregando um comunismo prático para as crianças, com o pouco respeito à autoridade, às pessoas idosas, à propriedade privada etc. Tudo isso era considerado muito perigoso pela Igreja daquele tempo, pelo menos por um determinado segmento – grande e importante – da mesma Igreja. 

Na verdade, padre Salles Brasil é porta-voz de toda uma corrente que via em idéias como as de Lobato um grande perigo para as coisas que formam o chão da vida regida pelo sistema capitalista: a tradição, a família e a propriedade.  É bom lembrar que antes do Concílio Vaticano II existia na Igreja o famoso “index” com uma lista de livros que os católicos não deveriam ler.  Monteiro Lobato certamente estaria entre estes. 
 
IHU On-Line – Você conhece alguma revisão feita pela Igreja ou pela Companhia de Jesus (já que o Pe. Salles Brasil era um jesuíta) das acusações impostas a Lobato?

Maria Clara Bingemer - Não conheço. Porém, creio que seria difícil hoje algum jesuíta referendar as afirmações do padre Salles Brasil sobre Lobato. Justamente a Companhia de Jesus, em suas últimas congregações gerais, tem defendido bastante a pluralidade cultural e religiosa e a liberdade de pensamento, assim como o apostolado dos jesuítas nas universidades, espaços de liberdade e pluralismo.  

Leia mais...

Maria Clara Bingemer já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira o material na página eletrônica do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Entrevistas:

• Os jesuítas e a expansão da cultura moderna. Edição número 183, de 05-06-2006, intitulada Floresta de Araucária: uma teia ecológica complexa.

• “Igreja que deseja ser ouvida numa cultura pós-cristã precisa ter um testemunho forte, crível e consistente, que acompanhe o discurso”. Edição número 220, de 21-05-2007, intitulada O futuro da autonomia, uma sociedade de indivíduos?

• “O documento (de Aparecida) não tem o profetismo e o sopro libertador que caracterizou Medellin e Puebla”. Edição 224, de 20-07-2007, intitulada Os rumos da Igreja na América Latina a partir de Aparecida. Uma análise do Documento Final da V Conferência;

• Simone Weil: um pensamento que atinge a raiz das coisas. Edição número 243, de 12-11-2007, intitulada História em Quadrinhos;

• A literatura como um campo fértil de diálogo com a teologia. Edição número 251, de 17-03-2008, intitulada O belo e o verdadeiro. A tensa e mútua relação entre literatura e teologia.

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