Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Um novo sistema educativo a partir da literatura

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Patricia Fachin

Na percepção da pesquisadora Lia Cupertino Duarte Albino, Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a acreditar na inteligência da criança, na sua curiosidade intelectual e capacidade de compreensão

Ao se deparar com os livros infantis traduzidos e importados de Portugal, Lobato os comparou com pequenas moitas de amoras do mato: “espinhentas e impenetráveis”, recorda Lia Cupertino Duarte Albino, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Com a preocupação de disponibilizar aos estudantes, obras mais criativas e percebendo nas crianças um imenso potencial para projetar um novo país, o escritor dedicou-se a produzir livros infantis com boas doses de humor. “Lobato introduz em seus textos inovações como o uso da oralidade, a concepção da linguagem como um elemento lúdico, o que resulta na criação de inúmeros neologismos, a valorização da autonomia da criança e a relativização do maniqueísmo”, afirma.  Na ficção lobatiana, explica a pesquisadora, Lobato cria “um sistema educativo cujo ambiente não acentua a divisão entre o indivíduo e a sociedade, não retira o aluno do contato com sua família, para colocá-lo em uma sala de aula, em que tudo contraria as experiências por ele já vividas”. 

Lia é mestre e doutora em Letras, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente, é diretora da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e docente das Faculdades Integradas de Ourinhos. Sua tese de doutorado, intitulada Homo risibilis: ensaio sobre o processo de construção do humor nas obras infantis de Monteiro Lobato, analisou a produção do escritor brasileiro. Ela também é autora de Lobato humorista (São Paulo: Unesp, 2007).

IHU On-Line – Em que sentido Monteiro Lobato revolucionou a produção infanto-juvenil?

Lia Cupertino Duarte Albino - Até o início do século XX, os textos a que as crianças tinham acesso para leitura no Brasil eram traduções portuguesas de obras européias de circulação irregular e precária no país pelo fato de serem produtos importados. Traduzidos para o Português de Portugal e importados desse país, tais textos apresentavam uma linguagem muito distante daquela vivenciada pela criança brasileira. Lobato percebe o problema ao se deparar, nesse contexto, com a dificuldade de encontrar material de leitura para seus filhos. Isso o faz afirmar, certa vez, que os raros textos aqui existentes eram “pequenas moitas de amoras do mato – espinhentas e impenetráveis”.

Além da precariedade do material de leitura existente no Brasil nesse período, os poucos textos que aqui circulavam, tendo a criança como destinatário final, eram produções de caráter flagrantemente pedagógico e moralizador, travestidas de “literatura”.

Nesse cenário, Monteiro Lobato surge como escritor e editor. Como empresário do ramo editorial, revoluciona esse mercado quando passa a considerar o livro como uma “mercadoria”, um produto que, como qualquer outro, carece de estratégias de produção, divulgação e circulação, visando ao “destinatário” final. Daí a preocupação do editor com a acessibilidade da linguagem dos textos, com a organização tipográfica, com a inclusão de imagens e cores e com as estratégias de marketing. Como escritor, Lobato introduz em seus textos inovações como o uso da oralidade, a concepção da linguagem como um elemento lúdico, o que resulta na criação de inúmeros neologismos, a valorização da autonomia da criança e a relativização do maniqueísmo.

Desse modo, percebe-se seu caráter duplamente revolucionário na produção livresca brasileira, introduzindo inovações tanto na forma como no conteúdo do material produzido.

IHU On-Line - Como se dá a construção do humor nas obras infantis do
escritor?

Lia Cupertino Duarte Albino - Lingüisticamente, o humor se constrói a partir do diálogo estabelecido entre dois discursos: um aparente (aquilo que se diz) e outro latente (aquilo que se pretende dizer). Do confronto entre essas duas realidades aparentemente díspares, surge o humor que, manifestado pelo riso, representa um momento de epifania, de recusa da inércia, de rejeição da passividade.

Para perceber o diálogo entre esses dois discursos, é necessário que não se seja um leitor ingênuo, mas capaz de transcender o que está escrito. Monteiro Lobato credita essa capacidade à criança por meio da introdução do humor nos textos a elas destinados.

Para estudar como se processa essa construção do humor nas narrativas infantis lobatianas, dividi, em meu livro, as ocorrências do humor em onze categorias, quais sejam: falas do narrador, linguagem, exploração dos recursos semânticos, nonsense, paródia, comparações, ironia, cômico de situação, inversão/subversão da ordem, grotesco e personagens. É, pois, por meio da utilização desses recursos que o humor é construído por Lobato.

IHU On-Line – De que maneira o humor e a ambigüidade se tornam presentes nas críticas do autor à sociedade da época?

Lia Cupertino Duarte Albino - Tendo em vista o fato de o humor ser construído lingüisticamente a partir do diálogo entre dois discursos, a ambigüidade torna-se fator determinante nas produções humorísticas. É por meio dessa ambigüidade que o discurso latente se manifesta, tornando o humor um elemento socialmente perigoso. Ao confrontar dois discursos aparentemente discordantes, o humor torna-se revelador da essência, um elemento crítico e oposicionista, propondo a contestação e o ataque à censura. Nesse sentido, o uso do humor possibilita um campo profícuo para a crítica à sociedade.

IHU On-Line - Personagens lobatianos como Emília, Pedrinho e Narizinho são revolucionários para discutir e questionar os valores impostos na época, principalmente no que se refere à educação?

Lia Cupertino Duarte Albino - O início do século XX no Brasil caracteriza-se pela democratização do ensino e a valorização da escola como meio de ascensão social. Vivendo nesse contexto, Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a acreditar na inteligência da criança, na sua curiosidade intelectual e capacidade de compreensão, tendo como projeto definido prepará-la para que pudesse construir um Brasil melhor.

Desse modo, ensino e literatura se interpenetram de diversos modos nesse período, o que faz de Lobato um homem que, vivendo em uma sociedade marcada por um comprometimento incipiente com o conhecimento e o estudo da ciência e da tecnologia, quisesse dar sua contribuição para alterar esse statu quo.

No entanto, sua concepção de educação não se limitava ao saber acumulado, cientificamente organizado e estruturado de modo lógico pelo professor. Partidário dos pressupostos da Escola Nova, segundo os quais as instituições educacionais deviam deixar de ser meros locais de transmissão de conhecimentos e se tornar pequenas comunidades, valorizando o diálogo, a observação, a vivência e a experimentação, Lobato se vale de elementos formais de uma literatura capaz de transcender o simplesmente pedagógico e a intenção didática.

Com isso, o autor cria, em sua ficção, um sistema educativo cujo ambiente não acentua a divisão entre o indivíduo e a sociedade, não retira o aluno do contato com sua família, para colocá-lo em uma sala de aula, em que tudo contraria as experiências por ele já vividas. Opondo-se ao sistema de estruturação claustral, o espaço privilegiado por Lobato é o sítio e seus arredores, local em que, ao invés de uma hierarquia social na qual os ouvintes são igualados na impotência, as crianças, representadas por Pedrinho, Narizinho e Emília, têm direito à voz e ao questionamento do que é transmitido, postura que subverte os valores impostos pela educação da época.

IHU On-Line – Os personagens de Monteiro Lobato dialogam entre a cultura erudita e a popular. De que maneira a linguagem apresentada por ele, cria um equilíbrio entre o erudito e o popular?

Lia Cupertino Duarte Albino - Um dos recursos que possibilita esse equilíbrio é o humor que permite livremente a transposição das séries: variante culta e popular. Em muitos momentos, mais do que a troca de uma pela outra, o que se observa nas obras lobatianas é a junção das duas séries dentro de um mesmo contexto. Tal junção se torna exeqüível graças ao efeito cômico por ela criado.
Contrariando o padrão oficial, a utilização de expressões de cunho popular representa uma espécie de triunfo, uma libertação temporária da norma vigente, uma abolição provisória das relações hierárquicas e das regras, possibilitando um tipo particular de comunicação, inconcebível em contextos formais.

IHU On-Line – É possível traçar uma identidade brasileira a partir dos personagens de Lobato?

Lia Cupertino Duarte Albino - No livro Idéias de Jeca Tatu, Lobato diz que: “em nada se estampa melhor a alma de uma nação do que na obra de seus caricaturistas. Parece que o modo de pensar coletivo tem seu resumo nessa forma de riso”. Com base nessa citação, acredito ser possível dizer que essa identidade brasileira foi traçada pelo autor por meio da revelação da essência do povo brasileiro, revelação propiciada pela utilização inteligente do recurso humorístico como elemento de construção literária.

IHU On-Line – Como o Sítio do Picapau Amarelo dialoga com outras obras, principalmente as estrangeiras, fontes de inspiração para Lobato?

Lia Cupertino Duarte Albino - Penso que esse diálogo se estabelece de duas maneiras: do ponto de vista formal e em relação ao conteúdo das obras que têm o sítio como cenário.

Em relação à forma, é sabido que Lobato era leitor dos fabulistas clássicos Esopo e La Fontaine, de Lewis Carroll, de Carlo Collodi, de J. M. Barrie, de L. Frank Baum, de Wilhelm Busch, de Cervantes, de Mark Twain e muitos outros escritores, e não se pode negar as influências dessas leituras na produção literária lobatiana.

No que se refere ao conteúdo, observamos a inclusão, no universo ficcional do Sítio, de personagens provenientes dos contos de fada; de desenhos animados, como Popeye e o Gato Félix; do cinema, como Shirley Temple; de outras obras literárias, como Pinóquio, Dom Quixote, Peter Pan e Alice, que participam de muitas aventuras juntamente com as personagens do sítio, criando uma amálgama perfeitamente harmoniosa.

IHU On-Line – O que os personagens do escritor revelam sobre sua maneira de analisar o mundo e em especial, o Brasil?

Lia Cupertino Duarte Albino - O Sítio é um reino de liberdade e encantamento, governado por Dona Benta, uma rainha democrática que permite liberdade absoluta aos seus súditos. Prova dessa liberdade é a irreverência de Emília, porta-voz de Lobato. Com a mesma autonomia intelectual e independência de personalidade que caracterizavam o escritor, a boneca esperta, voluntariosa e atrevida, é a imagem do indivíduo empreendedor e apto a vencer em um mundo marcado pela competitividade. Pedrinho e Narizinho são as crianças do sítio e encarnam a concepção de infância do autor, marcada pela autonomia e pela liberdade. Visconde, personificação do saber científico, é personagem ambivalente cuja construção ora valoriza, ora satiriza o conhecimento acadêmico sistemático. E Tia Nastácia, representante do povo brasileiro, é a personagem que possibilita ao autor a valorização de nossa cultura, nosso folclore e nossa identidade enquanto nação.

IHU On-Line – A senhora disse que Monteiro Lobato tenta, através de sua obra, modificar a percepção de mundo e emancipar seus leitores. Como percebe esse fenômeno nas obras do escritor?

Lia Cupertino Duarte Albino - Vou me permitir responder a essa questão com um fragmento de Memórias de Emília. Filosofando sobre a vida, a boneca diz ao Visconde: “A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre. — E depois que morre? – perguntou o Visconde. — Depois que morre, vira hipótese”.

É justamente essa liberdade proporcionada ao leitor, a possibilidade de se ter possibilidades, de aventar hipóteses, o que torna a obra de Lobato tão rica. Isso só ocorre porque Lobato concebe a literatura para crianças como Literatura sem qualquer tipo de adjetivo. Ou seja, concebe o texto literário como uma imagem simbólica, capaz de assinalar as contradições, a multiplicidade de visões, os vazios de um discurso que não se fecha em si mesmo. Desse modo, o texto lobatiano possibilita, de modo prazeroso e não-dogmático, o exercício da reflexão, da contestação e da capacidade de penetrar nas tensões dialéticas, contribuindo assim para a emancipação de seus leitores.

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