Edição 283 | 24 Novembro 2008

Uma análise histórica da sociologia brasileira

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Graziela Wolfart

Para Enno Liedke Filho, as Ciências Sociais ocuparam um papel de destaque na crítica ao regime autoritário durante a transição democrática

Na opinião do professor Enno Liedke Filho, na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, “a reintrodução da sociologia e da filosofia no Ensino Médio certamente representará uma oportunidade ímpar para consolidar um amplo entendimento do significado das contribuições dessas disciplinas, não só em relação aos alunos, mas de forma indireta, seus familiares e pessoas de suas relações”. Ao comparar a realidade social da Argentina e do Brasil, Liedke afirma que “as principais tendências sócio-históricas vivenciadas por essas sociedades ao longo do século XX tendem a parecer similares (como por exemplo, peronismo e varguismo, movimentos que são aproximados por muitos analistas), mas cumpre apontar que as diferenças são muito significativas, sendo determinantes da herança presente com que essas sociedades contam para a construção de seus futuros”. E conclui argumentando que “os destinos de ambas as nações estão, pois, marcados por trajetórias que colocam no presente diferentes desafios a serem superados para a efetiva consolidação de formas societárias democráticas e eqüitativas”.

Liedke Filho possui bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrado em Sociologia, pela Universidade de Brasília, e doutorado em Sociologia, pela Brown University, dos Estados Unidos. Atualmente, é professor colaborador convidado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em História da Sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Ciências Sociais no Brasil, sociologia do desenvolvimento, sociologia brasileira, sociologia da sociologia e sociologia no Brasil. Escreveu inúmeros artigos especializados e capítulos de livros.

IHU On-Line - Quais os principais pontos que o senhor destacaria na história da sociologia? Quais seriam os grandes nomes (clássicos e contemporâneos) para um roteiro de leitura passível de ajudar a compreender a realidade brasileira?

Enno Liedke Filho - A sociologia, enquanto ciência da sociedade, é herdeira dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa, sendo permanentemente desafiada, a partir das suas múltiplas posições teóricas, a formular diagnósticos dos problemas sociais e a equacionar possíveis soluções, destacando-se, entre essas, as políticas sociais. Em um rápido balanço, pode-se sugerir que as cinco respostas clássicas à questão para que servem as ciências (as teorias) sociais são: terapêutica social (Feuerbach);  revolução social (Marx e Engels);  reformismo social conservador (Comte),  reformismo social progressista (Durkheim); e neutralidade axiológica com responsabilidade política (Weber). Além do conhecimento da obra desses autores, merece também ser referida para uma sólida formação clássica dos aprendizes de sociólogos, o estudo de autores como Simmel,  Veblen  e Park. A esses se somam autores do período do entre-guerras mundiais como Luckács,  Gramsci,  Mannheim,  Elias,  Mead e do grupo inicial da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer  e Benjamim, entre outros).

Contemporaneamente, no que respeita à aplicabilidade da sociologia e das Ciências Sociais, é interessante deixar registrada aqui a diversidade de respostas para a questão – para que servem as Ciências Sociais. Essas respostas variam desde pesquisas de mercado (culturalismo, no estilo de Lazarsfeld ) até a crítica de Habermas à colonização do mundo da vida pela economia e política globalizadas. Uma formação sólida em sociologia necessita também estar ancorada no estudo das obras de autores contemporâneos como Parsons, Giddens, Bordieu, Foucault, Luhman e Bauman. Deve fundar-se, outrossim, na análise criteriosa dos passos que devem ser tomados para a utilização de teorias, conceitos e hipóteses propostos pelos autores aqui citados, no estudo de temas da realidade brasileira e latino-americana. Essa análise pode permitir escapar das armadilhas da ortodoxia, ou da aplicação mecânica, acrítica e descontextualizada desses elementos teóricos para o tratamento de temas emergentes em realidades diferentes daquelas em que os mesmos foram originariamente formulados.

IHU On-Line - O que podemos entender pela sociologia da sociologia? 

Enno Liedke Filho - A análise da sociologia enquanto disciplina acadêmico-científica específica é tarefa de uma sociologia especial - a sociologia da sociologia. Embora praticantes da sociologia possuam concepções relativas às atividades disciplinares de pesquisa, ensino e responsabilidade social, essas tendem a expressar muito mais o que poderia ser denominado uma “sociologia da sociologia espontânea dos sociólogos”. Em grandes linhas, pode-se sugerir que a passagem de concepções espontâneas a análises sociológicas da sociologia implica em um esforço sistemático de “vigilância epistemológica”, homólogo à concepção bachelariana de ruptura do pensamento científico em relação ao senso comum. No nosso entender, a sociologia da sociologia deve ter como tarefa a análise das relações entre as condições institucionais-profissionais e as tendências paradigmático-temáticas da sociologia, em suas conexões com o desenvolvimento científico em geral, com o contexto societário e com a cidadania.

Como uma referência para mapear preliminarmente as tarefas dessa sociologia específica, pode-se recordar aqui que, para Parsons, o estado da disciplina sociológica, considerada como um complexo cultural em si mesmo e como parte de um complexo cultural mais amplo, é caracterizado: (1) pela extensão em que os cânones de adequação e de objetividade científicas vieram a ser estabelecidos como o código vigente da profissão para o tratamento de um objeto (subject matter); (2) pela diferenciação da sociologia como ciência e suas relações com as disciplinas científicas vizinhas; (3) pela diferenciação entre a sociologia teórica e a sociologia aplicada; e (4) pela diferenciação da sociologia e suas relações frente aos aspectos não-científicos da cultura em geral, como a filosofia, a religião, a literatura e as artes, assim como da concepção geral de mundo (general “weltanschauung”). Já as tarefas propostas por Parsons para uma sociologia da sociologia seriam: (1) verificar o papel do sociólogo com cientista, considerando tanto o estado da pesquisa, como o estado do ensino e do treinamento de outros que virão a levar adiante estas atividades; (2) apreender o papel de cidadão do cientista; (3) verificar o estado da sociologia aplicada; e (4) equacionar o estado da contribuição da sociologia para a definição societária “da situação”, seja em termos da contribuição para a “educação em geral”, seja por enfocar os interesses “intelectuais” gerais vigentes na sociedade em dado momento.

IHU On-Line - Como podemos definir a sociologia do desenvolvimento?

Enno Liedke Filho - A sociologia do desenvolvimento deve ser compreendida como uma área especializada de estudos, dentro da qual múltiplas correntes teóricas, por exemplo de inspiração evolucionista (de Comte, Spencer e Durkheim até versões recentes da Teoria da Modernização), estrutural-funcionalista (Parsons), ou marxistas (Teoria da Etapas: feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo e Teoria da Dependência), têm disputado a dominância. Recentemente, durante um certo período, a área como um todo esteve sob forte crítica a partir de posições teóricas pós-estruturalistas e pós-modernas. Todavia, com a emergência da problemática do desenvolvimento sustentável, o interesse pela mesma vem crescendo, inclusive com a releitura de autores clássicos da área, como Parsons, Germani e Florestan Fernandes.

Outrossim, pode-se recordar aqui a obra Nossa Diversidade Criadora (Unesco, 1997), a qual propõe que a questão central do processo de desenvolvimento é determinar que políticas promovem, sob a égide de uma Ética Universal, um verdadeiro desenvolvimento humano sustentável e equitativo, ao mesmo tempo em que estimulam o florescimento de diferentes culturas. A Ética Universal   a qual deveria nortear a convivência universal   tem como fundamento os Direitos Humanos, quais sejam: “a proteção da integridade física e emocional do indivíduo contra ameaças da sociedade, a garantia de condições mínimas para uma vida decente, o tratamento justo e o acesso eqüitativo aos mecanismos de correção de injustiças”. A esses direitos enunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, somaram-se recentemente os chamados novos direitos humanos, quais sejam, o direito a um meio ambiente saudável e propício ao bem-estar do homem e da mulher e as responsabilidades individuais e coletivas quanto a esses. Associam-se também os princípios: (a) de que a democracia é a forma política mais propícia à proteção das minorias raciais, étnicas e culturais e expressão do compromisso com a solução pacífica dos conflitos e das controvérsias através de negociações equitativas; (b) de que uma efetiva “Cultura da Paz” deve ser cultivada nos espaços intra e inter-nações; (c) de que, quanto à questão de gênero, são necessárias mudanças para a concreção de uma plena igualdade jurídica e do acesso à educação e à saúde (a fim de acelerar a superação do hiato entre os sexos), assim como mudanças em matéria de igualdade de oportunidades – acesso ao crédito, posições de gerência e eleição de autoridades governamentais; e (d) de que a equidade em cada geração e entre gerações implica que as gerações atuais cuidem do meio ambiente e dos recursos culturais e naturais e os utilizem em proveito das gerações presentes e futuras.

IHU On-Line - Como o senhor descreve as características da sociedade no Brasil e na Argentina? Que análise sociológica o senhor faria da América Latina, de modo geral?

Enno Liedke Filho - Como uma análise criteriosa das múltiplas realidades nacionais latino-americanas não pode ser realizada aqui, dados os limites de texto propostos, opto por comparar os casos da Argentina e do Brasil. Em grandes linhas, as principais tendências sócio-históricas vivenciadas por essas sociedades ao longo do século XX tendem a parecer similares (como por exemplo, peronismo e varguismo, movimentos que são aproximados por muitos analistas), mas cumpre apontar que as diferenças são muito significativas, sendo determinantes da herança presente com que essas sociedades contam para a construção de seus futuros. Na Argentina destacam-se: (1) a entrada, já desde fins do século XIX, da classe média na política com o avanço crescente do Partido Radical de Alem e de Yrigoyen; (2) a presença de correntes anarquistas e socialistas no interior do emergente movimento trabalhista; (3) a experiência da entrada e participação das massas na política com o peronismo a partir dos anos de 1940; e (4) a tragédia do ciclo autoritário, particularmente do denominado Proceso (1976 1983), marcado por exílios, mortes e desaparecimentos políticos. A sucessão de governos incapazes, após a redemocratização, de fazer frente à estagnação econômica, a qual é em parte decorrente da política de desindustrialização dos governos autoritários, em muito tem contribuído para o descrédito das instituições e a fragilização do próprio tecido social nacional.

No Brasil, ainda que um certo jacobinismo tenha se manifestado quando da Proclamação da República e do vai-e-vem para a sua consolidação, somente na década de 1920 movimentos como o tenentismo e o movimento pela Escola Nova significaram, parcialmente, a entrada de setores das classes médias na arena política. Outrossim, já desde as primeiras décadas do século XX, movimentos anarquistas e socialistas fizeram-se presente entre as massas operárias, sendo esses posteriormente suplantados pela criação e consolidação do Partido Comunista em 1922. Nos anos 1950, após a Revolução de 1930 e o Estado Novo, ocorreu a entrada incipiente das massas populares no cenário político sob a liderança do desenvolvimentismo, especialmente de cunho trabalhista-varguista. Cabe menção também a organizações ou movimentos de esquerda com presença marcante no período, como a União Nacional dos Estudantes e as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião.  Já no decorrer da transição democrática (1974-1976/1985), que culminou com o fim do Período Autoritário (1964 1985) ocorreu o surgimento dos novos movimentos sociais, distinguindo-se entre esses, as comunidades eclesiais de base, o novo movimento sindical e os novos movimentos sociais urbanos. O longo período desde o fim do chamado Milagre Econômico (1967-1975) do período autoritário até a implantação do Plano Real (1994) foi um período de estagnação econômica profunda. As políticas econômicas implantadas nos governos do presidente Cardoso (como as privatizações, por exemplo), redirecionaram a estrutura econômica herdada do ciclo autoritário e abriram margem para que os governos do Presidente Lula  aprofundassem essas opções econômico-financeiras estabelecidas, associando-as a políticas sociais, como o Programa Bolsa Família. Os destinos de ambas as nações estão, pois, marcados por trajetórias que colocam no presente diferentes desafios a serem superados para a efetiva consolidação de formas societárias democráticas e eqüitativas.

IHU On-Line - Em relação à democracia e à política, que temas são fundamentais enfocar hoje para uma real contribuição da sociologia para a análise da sociedade brasileira e gaúcha?

Enno Liedke Filho - A sociologia, para contribuir para a análise e compreensão da sociedade brasileira e gaúcha, necessita recuperar, de um lado, uma sólida relação com a demografia e com a economia política para trabalhar multidisciplinarmente com temas como: natalidade e mortalidade (inclusive mortes violentas); gravidez na adolescência; escolaridade, qualificação e participação no mercado de trabalho; distribuição de renda e políticas sociais contributivas e não contributivas (por exemplo, Previdência Social e Programa Bolsa Família, respectivamente). Por outro lado, quanto a temas e problemas políticos, além da avaliação de políticas públicas, como as de saúde e de educação, caberia à sociologia enfrentar, junto com a Ciência Política, temáticas como: (1) o patrimonialismo   denunciado por pensadores clássicos como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Raymundo Faoro   , o qual não só ainda está entranhado nas instituições políticas e na máquina administrativa, como tem revelado uma impressionante criatividade e versatilidade na criação de mecanismos de dilapidação dos fundos públicos; (2) a necessidade de fortalecer e expandir o combate à corrupção e a crimes contra os fundos públicos, com o julgamento e penalização exemplar daquele que vierem a ser considerados culpados; (3) a impressionante inorganicidade (revelada pelo não-enraizamento na sociedade civil e pela mobilização meramente eleitoral) e fragilidade dos partidos políticos no Brasil, os quais, menos do que instituições organizadas ideológico-programaticamente, tendem a ser muito mais meras frentes político-eleitorais que agregam grupos de interesses, ou mesmo personalidades fortes regionais ou estaduais. Mesmo o Partido dos Trabalhadores, reconhecido por muitos estudiosos como um partido político tout court, caracteriza-se pela presença de personalidades fortes  o carisma do presidente Lula pairando, inclusive, acima do próprio partido, e pela coexistência, nem sempre pacífica, entre as várias correntes internas que o formam.

IHU On-Line - O que marcou a trajetória da história das Ciências Sociais no Brasil nos últimos 50 anos?

Enno Liedke Filho - No Brasil, a sociologia veio a ser incorporada em meados da década de 1920, nas Escolas Normais, como uma disciplina auxiliar para a formação dos professores, visando instrumentá-los para conhecer as comunidades onde atuariam, podendo assim adaptar seus planos pedagógicos às necessidades locais. A institucionalização acadêmica da sociologia no Brasil ocorreu em meados dos anos 1930, com a criação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (1933) e com a criação da Seção de Sociologia e Ciência Política da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (1934). Os principais temas enfocados pela sociologia no Brasil em meados da década de 1950 eram: população, imigração e colonização; relações étnicas, contatos e assimilação (o negro; o índio e o branco colonizador); educação; história social; direito e ciência política; estudos de comunidades; análises regionais e sociologia rural e urbana. Nos anos 1950, um fato marcante foi a constituição do grupo de pesquisa sob a liderança de Florestan Fernandes, que ficou conhecido como a Escola de Sociologia da USP, a qual desenvolveu pesquisas sobre as relações raciais no Brasil, acerca da empresa industrial em São Paulo e do desenvolvimento brasileiro. A preocupação com as possibilidades de um desenvolvimento democrático, racional, urbano-industrial da sociedade brasileira ocupou um papel central entre as orientações intelectuais e políticas do projeto da Escola neste período.

Os anos 1960 assistiram à elaboração da Teoria da Dependência por autores como Cardoso e Falleto, Gunder Frank,  Florestan Fernandes, Ianni, Marini,  Quijano e Theotonio dos Santos.  Entre as múltiplas obras elaboradas nessa perspectiva cabe destaque ao livro Desenvolvimento e Dependência na América Latina de Cardoso e Faletto (1973), dado sua influência não só no contexto latino-americano de então, mas internacionalmente nas Ciências Sociais. Já os anos 1970 e 80 foram caracterizados pelas teorizações sobre o novo autoritarismo e as possibilidades de redemocratização no Brasil e no Cone Sul. Em grandes linhas, pode-se sugerir que se verificou na sociologia brasileira uma rápida evolução temática, ocorrida nos seguintes termos: de grandes interpretações macro-estruturais do modelo econômico-político-cultural do regime anterior, passou esta para a análise dos agentes e características da transição democrática, seguida dos temas da democratização necessária, dos movimentos sociais e da estratégia de reativação da sociedade civil.

Posteriormente, as questões dos movimentos sociais, das identidades e das representações sociais ocuparam lugar de destaque entre as temáticas enfocadas pela sociologia. Foram desenvolvidos estudos sobre movimentos sociais urbanos e rurais, movimentos sindicais, movimentos feministas, movimentos gays, movimentos negros e os movimentos ecológicos. Hoje em dia, as pesquisas em sociologia abrangem um amplo espectro de temas, tais como desenvolvimento, urbanização; mundo rural; mundo do trabalho; ciência, tecnologia e conhecimento; saúde; educação; movimentos sociais; relações sociais raciais, de gênero e de gerações; sexualidade; violência e direitos humanos; e religiosidade. Já as principais abordagens que se destacam pela influência marcante que vêm exercendo sobre a sociologia no Brasil são as de Bourdieu, Foucault, Giddens, Elias e Habermas, cujas obras, assim como as releituras de Weber, são debatidas e utilizadas como referências em ensaios e pesquisas. As temáticas da globalização, da pós-modernidade e do multiculturalismo têm merecido destaque nos trabalhos dos sociólogos e cientistas sociais brasileiros, ocorrendo muitas vezes a releitura de temáticas já consagradas sob a ótica das suas possíveis conexões com as temáticas emergentes como, por exemplo, religiões em contexto de globalização, ou educação e multiculturalismo.

IHU On-Line - Quais as tarefas de uma sociologia da religião no Brasil hoje?

Enno Liedke Filho - A sociologia da religião é também uma sociologia específica para cujo fazer torna-se necessária uma formação especializada, a qual, além de forte formação teórica, fundada na leitura dos autores clássicos e contemporâneos da área (Durkheim, Weber, Berger,  entre outros), requer também o conhecimento dos autores brasileiros (Camargo, Pierucci,  Prandi,  Mariano e Brandão,  por exemplo), e um sólido treinamento em métodos e técnicas de pesquisa da área. Cabe à sociologia da religião no Brasil enfrentar a problemática teórica das hipóteses alternativas da ocorrência de processos de secularização/dessacralização versus de ressacralização do mundo em um contexto de globalização. Sob a égide dos princípios do Pluralismo e Liberdade Religiosa e da Observância das Normas Constitucionais Nacionais, cabe a sociologia da religião no Brasil hoje estudar temas como: (a) as especificidades do catolicismo brasileiro, especialmente das múltiplas formas do catolicismo popular, espontâneo, como as romarias e festas vinculadas a nomes como Padre Cícero  e Padre Reus;  (b) o significado e o destino histórico da Teologia da Libertação;  (c) os movimentos carismáticos dentro da Igreja Católica hoje; (d) as religiões, cultos e tradições religiosas de origem africana; (e) as formas de religiosidade indígena e os elementos originários dessas tradições que vieram a ser incorporados em cultos sincréticos; (f) a presença e relevância no campo religioso das formas tradicionais do protestantismo; (g) as razões do rápido crescimento das múltiplas formas de neo-pentecostalismo e neo-protestantismo; (h) o judaísmo no Brasil e suas correntes; (i) o Islamismo no Brasil e suas correntes; (j) a expansão contemporaneamente do interesse e adesão a doutrinas religiosas e filosóficas oriundas da Ásia (hinduísmo, budismo, taoísmo); e (k) as novas formas de religiosidade e de misticismo associadas à Nova Era.

IHU On-Line - Que avaliação o senhor faz do ensino da sociologia nas universidades brasileiras?

Enno Liedke Filho - No Brasil, a sociologia veio a ser institucionalizada no ensino superior em meados da década de 1930, estando, então, em grande parte direcionada à preparação de professores de sociologia para a escola secundária, em cujo currículo essa disciplina fora incluída com a Reforma Educacional de 1930. A Reforma Educacional de 1942 retirou o ensino da sociologia da escola secundária, bloqueando a expansão do ensino da mesma também no ensino superior. Ainda que novos cursos tenham sido criados, especialmente em fins da década de 1950, somente após a Reforma Educacional de 1961, uma institucionalização crescente de cursos de graduação se verificou. A essa veio somar-se, após a Reforma Universitária de 1969, a expansão e consolidação da pós-graduação. Levantamentos da Federação Nacional dos Sociólogos indicam que ao longo dos setenta anos transcorridos desde a implantação do primeiro curso de Ciências Sociais no Brasil foram formados cerca de 40.000 licenciados e bacharéis.

Atualmente, a estrutura acadêmica da área é constituída por cerca de 135 habilitações (bacharelados e licenciaturas), com aproximadamente 13.000 alunos. A estrutura da pós-graduação em sociologia encontra-se também bastante desenvolvida, sendo constituída por dois mestrados profissionalizantes, 40 mestrados stricto sensu e 31 doutorados. Segundo dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, 284 grupos declaram desenvolver pesquisas em sociologia, sendo que desses, 80 grupos registraram-se como grupos especificamente de sociologia. Ressalte-se também o significativo papel que vem sendo desempenhado na organização dos profissionais e pesquisadores e no intercâmbio e colaboração entre esses, pelas associações profissionais e científicas (SBS, FNSB e ANPOCS). Recentemente, várias instituições de ensino superior têm procurado enfrentar o desafio da implantação e desenvolvimento, com excelência, de cursos de graduação em Ciências Sociais à distância, utilizando os recursos da informática.

IHU On-Line - O senhor considera que o povo brasileiro, de modo geral, tem uma noção básica das Ciências Sociais?

Enno Liedke Filho - De uma forma espontânea, sim. O fato de o sociólogo Fernando Henrique Cardoso ter sido presidente da República, independente da avaliação que se faça das políticas desenvolvidas em seu governo, deu certa visibilidade à sociologia. Durante a transição democrática (1974-1976/1986), as Ciências Sociais ocuparam um papel de destaque na crítica ao regime autoritário, como por exemplo, (a) na crítica à desigualdade da distribuição de renda agravada durante o chamado Milagre Brasileiro, destacando-se, pelo seu rigor científico associado a uma linguagem acessível ao cidadão comum, a obra São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza (CAMARGO, 1976); (b) na crítica ao autoritarismo e na formulação de uma estratégia de lutas democráticas mediante a reativação da sociedade civil (CARDOSO, 1976) a qual veio a ser incorporada no Programa do Movimento Democrático Brasileiro/MDB para as eleições de 1974. Hoje em dia, a reintrodução da sociologia e da filosofia no Ensino Médio certamente representará uma oportunidade ímpar para consolidar um amplo entendimento do significado das contribuições dessas disciplinas, não só em relação aos alunos, mas, de forma indireta, a seus familiares e pessoas de suas relações. O desafio será construir propostas curriculares-pedagógicas capazes de sensibilizar os alunos para a relevância dessas disciplinas, de suas orientações teórico-metodológicas e dos problemas e temas a que se dedicam a estudar. Cabe equacionar modos de apresentar de uma forma criativa, não escolástica, suas teorias, conceitos, métodos e os resultados de suas pesquisas, sob a égide da concepção da Ética Universal.

Sugestões de Leituras:

Cardoso, F. H. Autoritarismo e democratização. Petrópolis: Ed. Paz e Terra, 1976.
Cardoso, F. H. e Faletto, E. Desenvolvimento e dependência na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1973.
Camargo, C. P. F. et alli São Paulo, 1975. Crescimento e pobreza. São Paulo: Edições Loyola, 1976.
Fernandes, F. A Sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis, Vozes, 1977.
Ianni, O. Sociologia da Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1989.
Liedke Filho, E. D. A Sociologia no Brasil: história, teorias e desafios. Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 14, jul/dez 2005, p. 376-437.
Micelli, S. (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice, IDESP, 1989. Vol.1.
_________. O que ler na ciência social brasileira (1970–1995). São Paulo: Editora Sumaré, ANPOCS; Brasília, CAPES; V. 2. Sociologia, 1999.
_________. O que ler na ciência social brasileira 1970–2002. São Paulo: Editora Sumaré, ANPOCS, CAPES; 2002.
Pécaut, D. Intelectuais e a política no Brasil – entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
UNESCO, (Cuéllar, J. P. de, org.). Nossa diversidade criadora. Relatório da comissão mundial de cultura e desenvolvimento. São Paulo: Papirus, 1997

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