Edição 283 | 24 Novembro 2008

A trajetória dos clássicos das Ciências Sociais

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Graziela Wolfart

O fi lósofo Luiz Roberto Benedetti traça um perfi l da sociologia brasileira e de autores que nos ajudam a compreender a realidade de nosso país

Para o filósofo Luiz Roberto Benedetti, autores como Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Octavio Ianni possuem grande mérito e produziram material que auxilia a compreender o Brasil sob inúmeras facetas. Os autores Bauman, Sennett, Negri, Zizek, Castells e Boaventura de Sousa Santos são sugeridos como roteiro de leitura dos grandes nomes da sociologia a partir da realidade brasileira.

Benedetti possui graduação em Filosofia, pelo Instituto Camiliano Pio XII, graduação em Filosofia, pela Universidade de São Paulo, graduação em Teologia, pela Conferência Nacional dos Religiosos, mestrado em Sociologia, pela Universidade de São Paulo, e doutorado em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor na Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. É autor de, entre outros, Os santos nômades e o Deus Estabelecido (São Paulo: Paulinas, 1983) e Templo, praça, coração - A articulação do campo religioso católico (São Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2000). A entrevista que segue foi concedida por telefone.

IHU On-Line - Quais os principais desafios e impasses no campo da sociologia da religião hoje?

Luiz Roberto Benedetti – Em primeiro lugar, acredito que a sociologia da religião passa hoje por um momento bastante favorável. É uma época de mudança social acelerada. E foi, fazendo uma analogia, na passagem do século, com todas as perturbações que isso implica, que dois dos “pais da sociologia”, Durkheim  e Weber,  se preocuparam especificamente com a questão religiosa. Eles evidenciavam o fato de que, quanto menos relevante fosse a presença da religião na mudança histórica, tanto mais presente (e premente) se fazia sua compreensão nas novas categorias que interpretavam o mundo e a ação do homem na história. Por outro lado, há problemas novos, que apresentam desafios, sim. Mas são desafios que, paradoxalmente, já estavam presentes, por exemplo, em Marx. Quando Marx queria falar da mercadoria, ele dizia que, para entendê-la, poderíamos encontrar um paralelo ou uma analogia com o mundo da religião. Ou seja, na religião, o que é produzido pelo homem, o que ele cria, passa a dominá-lo. O homem, como criador, passa a ser dominado pela criatura dele, que é Deus ou a religião. A equiparação da religião à mercadoria pode mostrar, hoje, uma absorção da religião pela mercadoria. Não apenas que o mundo das religiões se comporte como um mercado, de acordo com regras da economia clássica, como analisa Berger.  É mais do que isso. Há uma certa absorção da religião na mercadoria e da mercadoria na religião. Ou seja, o mundo passa a ter uma linguagem única. A religião passa a falar a linguagem da mercadoria. Esse é um momento novo que a sociologia vai enfrentar. Ela já o detectou, mas talvez não tenha ainda chegado ao alcance do que significa esse fenômeno. Mais do que evidenciar um desaparecimento, essa pode ser uma chance para a religião recuperar o seu caráter específico. Ou seja, se tudo se transforma, se tudo obedece a uma linguagem única, que é a linguagem do mercado, a religião pode adquirir sua especificidade enquanto linguagem de sentido, de denúncia, e até profética, num duplo sentido; num sentido sociológico, ou seja, aquela voz que contesta o sacerdócio, que teria a verdadeira e única palavra (que, no caso, seria o mercado); e também no sentido teológico, ou seja, é preciso ultrapassar o mundo da linguagem única, de caráter utilitário e hedonista, já “previsto” por Weber em sua obra capital, A ética protestante e o espírito do capitalismo.  Não acredito que a religião padeça diante dos fenômenos novos. Ela pode ter perdido o vigor que tinha antes, mais especificamente a sociologia da religião que “invadiu” a academia, principalmente na década de 1970. Mas hoje, há problemas novos que podem desencadear teorias novas. Por outro lado, a religião é hoje valorizada enquanto tal. Ou seja, não se explica mais a sociedade sem religião, considerando a religião como parte da cultura. Mas esse deslocamento de uma ênfase puramente nos mecanismos econômicos para uma ênfase quase exclusivamente nos mecanismos culturais também não se constitui como saída. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Uma consideração mais relevante da cultura leva, necessariamente, a uma contribuição mais relevante da força específica da religião na construção das relações sociais. Não se pode esquecer que ela sustenta teocracias e, ao mesmo tempo, prescreve a vida íntima em detalhes, como é o caso do Islamismo.

IHU On-Line - Como podemos ver as religiões enquanto instrumentos de transdisciplinaridade e interdisciplinaridade?

Luiz Roberto Benedetti – Michel de Certeau,  no livro A fraqueza de crer usou a expressão “miséria da Teologia”. Ele a explica dizendo que, ao falar da religião, não falamos de algo que tem uma densidade própria, uma carga própria, um universo epistemológico próprio, específico, mas falamos de sociologia, de psicologia, de antropologia e de política para entender o mundo e, nele, a religião. Será que podemos entender isso como uma perda da especificidade, da carga simbólica, significativa, da densidade própria do fenômeno religioso? Não penso que  seja uma perda de identidade. Acredito que a religião possa se tornar uma linguagem alternativa em um mundo que dilui as linguagens na sua especificidade. Por isso eu diria que, ao invés de miséria da teologia, a teologia se transforma em uma linguagem que é capaz de dialogar com as outras disciplinas, tendo algo próprio a dizer. Claro, isso supõe que não se ossifique, como o dialeto saudoso de uma época passada. Quando Alfredo Bosi  analisa o discurso religioso como elemento de crítica social, ele o faz utilizando o conteúdo crítico desse mesmo discurso. Evidente em sua obra Dialética da cultura.

IHU On-Line - Quais os rumos que o senhor vislumbra na sociologia hoje? O que podemos esperar para os próximos anos?

Luiz Roberto Benedetti – Tenho me perguntado ultimamente se não tem existido aqui no Brasil, e na academia como todo, modismos intelectuais. Na sociologia, depois da escola francesa, tivemos a presença um tanto efêmera dos italianos e depois o predomínio dos mestres ingleses. Não sabemos quem serão os próximos. Mas vejo que, para além dos modismos, há um fato novo. Talvez esteja se abrindo como um campo da sociologia exatamente o que Octavio Ianni  fez no livro Sociologia da sociologia: o pensamento sociológico brasileiro (3. ed. São Paulo: Ática, 1989). Precisamos entender como a sociologia também está sujeita às suas próprias leis, porque ela obedece às mesmas leis da sociedade que faz sociologia. É preciso entender como as condições histórico-sociais, nas quais se exerce o ofício de pensar, explicam as categorias epistemológicas utilizadas. Então, esse campo novo pode ser a tentativa da sociologia de se auto-explicar como linguagem, que também está situada dentro de um universo sobre o qual a sociologia se debruça. Todo o pensamento sociológico é histórico, assim como toda a história pressupõe um pensamento sociológico para ser explicada. Ou seja, a sociologia é histórica e a história é sociológica. Esse campo abre uma perspectiva nova, porque a velocidade das mudanças sociais é muito grande. A aceleração do tempo e do espaço provoca uma aceleração na interpretação dos fatos. Alguém pode me perguntar se isso não provoca um fenômeno contrário, ou seja, a vontade das pessoas de se fixarem no que é perene e eterno, caindo num fetichismo dogmatista. Penso que temos que nos prender ao que é lei permanente da sociedade, mesmo que esta mude rápida e intensamente, sabendo que há certos parâmetros que permanecem. Há um pensador que, do meu ponto de vista, permaneceu fiel ao princípio da estabilidade, da permanência e, simultaneamente, ao princípio da mudança: Habermas.

Como último representante vivo dos grandes mestres de Frankfurt, ele encara todos os fenômenos atuais com categorias fornecidas pela riqueza do pensamento alemão, que passa por Weber, por Marx, e por toda essa tradição que a Escola de Frankfurt se notabilizou por encarnar. Ela sempre encarou os fatos da cultura – Adorno  estudou a coluna de astrologia de um jornal para compreender a sociedade americana - não se dobrando a modismos ou encarando-os como marginais, mas tentando entender, com categorias consagradas, fenômenos históricos que, aparentemente, parecem desmentir as interpretações clássicas.  

IHU On-Line - O senhor poderia traçar brevemente a trajetória sociológica de clássicos como Alain Touraine,  Octavio Ianni, Bourdieu, Weber, José de Souza Martins  e Florestan Fernandes ?

Luiz Roberto Benedetti – São vários autores e eu não teria como falar sobre a evolução de cada um aqui. Mas de alguns posso falar. Martins está muito presente na minha história pessoal, pois ele esteve na minha banca de mestrado e doutorado na USP. Começo por ele por causa dessa proximidade. Leio Martins como um marxista bastante fiel ao pensamento de Marx que escapou do marxismo como armadilha. Ele fala, em conversas pessoais que, ouvindo Gustavo Gutiérrez  e tendo contato com a Teologia da Libertação, descobriu que são esses estudiosos que encararam Marx sem nenhum preconceito com relação ao marxismo e, ao mesmo tempo, permaneceram fiéis às suas crenças, os mais capazes de entender o que realmente Marx dizia. Não reduziram o marxismo a um dogma, a uma “verdade pronta” sobre a História. “Entenderam” o que Marx queria: dar pistas para a construção da humanidade do homem, que se constrói na história. Em Martins, sobressai uma sensibilidade muito grande à “situação” e, também graças a isso, um modo de escrever surpreendentemente poético. Impressiona a sua sensibilidade de sociólogo ao viver popular, às crenças populares, aos costumes, hábitos, à cultura popular, sem perder uma linguagem cientificamente sóbria e engajada. Em relação a Florestan Fernandes e outros como Sérgio Buarque de Holanda,  Fernando Henrique Cardoso,  Caio Prado Junior  e Celso Furtado,  na economia, e Octavio Ianni, o que eu atribuo como grande mérito deles, independentemente de suas teorias, é que produziram um material recorrente para entender o Brasil, pois não foram homens de uma disciplina só, de um pensamento único, de uma interpretação única. Eles souberam, graças à formação que a universidade antiga dava, fornecer um quadro, uma pista, que permanece como referência para entender o Brasil como um todo. Em relação a Alain Touraine, atribuo valor inestimável a seu esforço intelectual para pensar e recuperar a concepção de sujeito na modernidade e seu esforço para descobrir o que é capaz de resgatar o seu caráter primordial hoje. Por isso mesmo, permanece como referência para entender os movimentos sociais e não embarcar facilmente na onda de defesa das diferenças, sobrepondo-a a da cidadania, para ele, única forma de garantir politicamente o diferente. Bourdieu enriqueceu muito a sociologia com a noção de campo. Ele trouxe para a sociologia essa capacidade de olhar o mundo dos símbolos como um campo de conflito que espelha o conflito social. Soube somar seu olhar de antropólogo, atento à cultura, ao de sociólogo crítico. Não sem um certo reducionismo. 

IHU On-Line - O senhor pode nos sugerir um roteiro de leitura dos grandes nomes da sociologia a partir da realidade brasileira?

Luiz Roberto Benedetti – Para entender as transformações sociais ou para estabelecer um roteiro, não dá para citar nada especificamente e, ao mesmo tempo, podemos citar tudo o que está surgindo, pelo menos dos anos 1980 e 1990 para cá. Com a grande difusão massiva dos cursos de pós-graduação, temos quase que uma “enxurrada” de estudos sobre realidades da formação social brasileira. O que é o Brasil de hoje é respondido por uma infinidade de estudos situados, tópicos, que pegam aspectos específicos desta imensa realidade. Devemos ler esses estudos, mas sempre recorrendo aos mestres que souberam interpretar o Brasil como um todo. Sem voltar aos clássicos, que são esses que citei há pouco, perdemos a raiz. O que faz falta nesses estudos é uma “independência sociológica” brasileira. Precisamos de categorias sociológicas que escapem da sociologia européia, e isso não por preconceito. Mas será que não há uma especificidade brasileira ou latino-americana que deveria supor categorias epistemológicas, de uma sociologia nova, para entender fenômenos globais e locais ao mesmo tempo? Mais do que dar livros para ler, eu diria: vamos pensar um pouco nisso, em uma realidade social dinâmica, que é, ao mesmo tempo, cada vez mais local e universal. Esse paradoxo aparente necessita de um estudo muito sério. Entretanto, para não ficar em generalidades, citaria – em campos interpretativos diferentes e até opostos – Bauman,  Sennett,  Negri,  Zizek,  Castells  e, indispensável, Boaventura de Sousa Santos.   

IHU On-Line - Como podemos relacionar a teologia pública com as ciências religiosas na sociedade contemporânea, bastante marcada pela secularização?

Luiz Roberto Benedetti – A teologia tem sido cada vez mais valorizada por conta de ser uma linguagem que pode fazer a diferença num mundo em que os critérios éticos permanentes estão entregues ao espírito do tempo. Sinto-me inclinado a dizer: estava sendo valorizada. Justamente no momento em que mais se precisa dela, os teólogos desaparecem de cena. Como sociólogo, devo-me honestamente perguntar: onde estão os teólogos? A teologia deve apontar para o que é permanente na humanidade do homem. Não uma teologia que fale fora da história. Não se trata de buscar nos fatos da vida econômica e social categorias para criar uma nova teologia ou para a teologia entrar em contato com elas. Mas, sim, uma teologia que pensa essas realidades naquilo que elas têm de ontológico, de permanente, não para afirmar sua verdade na permanência, mas para mostrar como, mesmo que a história mude, mesmo que do dinamismo da história advenham categorias novas, há sempre um universo de mistério (plenitude); não significa o desconhecido, o imposto, mas a própria realidade humana que não é pronta, definida, mas que, em sua contínua construção, revela e oculta, paradoxalmente, essa plenitude. Quem pode apontar para isso é a teologia. No campo da ação, seu papel é nos alertar para os limites de uma ética fundada em princípios científicos, exatamente porque a ciência põe como um de seus fundamentos sua autonomia com relação a qualquer pressuposto “de fora”. 

IHU On-Line - No próximo ano, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoverá o Simpósio Internacional Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. Tendo em vista essa discussão, qual a contribuição da sociologia das concepções de Deus para o debate atual?

Luiz Roberto Benedetti – A grande contribuição que a sociologia das concepções de Deus pode dar, sendo propositalmente redundante, é que as concepções de Deus são sociológicas, mesmo que estabelecidas de uma maneira fundamentalista pelos grupos religiosos. O fundamentalismo é a fixação a-histórica dessa construção social que se chama deus. Por que esse Deus social não muda nunca? De um lado, ele é o “Grande Texto”, objetivo, literal, definido, pronto, sempre idêntico. De outro, aparentemente ao contrário, se molda cada vez mais ao espírito do tempo. Nós não cremos em Deus, mas em deuses de acordo com as necessidades, com as deficiências a superar, com as necessidades de sobrevivência ou com as necessidades impostas de ter o supérfluo. Essas religiões que pregam a teologia da prosperidade têm a concepção de um Deus adequado ao espírito do tempo, que é o espírito do consumo, do efêmero, do que traz a satisfação imediata. O que eu acho bonito nas concepções de Deus é que são concepções, são construções sociais. Para nós, cristãos, essas construções históricas de Deus, essas concepções que variam dentro de um grupo religioso, constituem uma experiência cotidiana da qual nem sempre temos consciência. Entre o Deus do padre e o Deus do fiel que o escuta há uma distância imensa; entre o altar e o banco da igreja há muita distância em termos culturais e antropológicos. Num processo de secularização intensa, que, no continente americano se traduz como pluralismo, vejo que há uma riqueza. Produz-se literatura crítica, séria e panfletária. E isso obriga a pensar e a ser livre. Mas também nos faz descobrir o Deus bíblico. E, talvez, como o fez a tradução alemã da Bíblia por Lutero,  a descobrir a sua verdadeira face de Deus, que as instituições religiosas, por sua própria dinâmica, revelam e encobrem. Para a sociologia, talvez retorne a categoria profetismo com todo o vigor. Ver as concepções de Deus como construções sociais dirige o olhar para as instituições-guardiãs. Abre-se um campo de crítica social, a meu ver, muito fecundo, capaz de desmentir cruzadas tanto ateísticas, quanto proselitistas. Deus é concepção humana, portanto limitada, na qual se esconde a revelação de um mistério. A sociologia nos faz ver os mecanismos e interesses sociais de seu ocultamento.

IHU On-Line - Quais as principais contribuições da Igreja para a constituição da sociedade brasileira atual? Qual a importância das igrejas/religiões em uma comunidade, num grupo social, pensando no seu papel político?

Luiz Roberto Benedetti – A primeira coisa em relação a isso é reconhecer que não vivemos mais em uma sociedade cristã, católica, mesmo entendendo o catolicismo como uma realidade não monolítica. Do ponto de vista sociológico e antropológico, a Igreja Católica é politeísta, pois os santos e as várias denominações de Nossa Senhora são representações sociais associadas à divindade e a alguma forma de transcendência. A idéia de uma sociedade cristã marcou a sociedade brasileira com raízes, fundamentos e alicerces profundos, quase irremovíveis na ação da Igreja. Só a título de exemplo: ela é incapaz de pensar o pentecostalismo sem associá-lo (pejorativamente) à seita. Ela é a totalidade, o outro, a marginalidade. Mas as marcas dessa formação sedimentar religiosa permanecem. Tentar construir uma sociedade nova, uma nova realidade política, uma nova realidade de relações sociais mais justas, mais humanas, mais igualitárias, mais solidárias, prescindindo da religião, ou mesmo destruindo-a, é prescindir daquilo que é o elemento coagulante dessa sociedade. Não há que se negar, em nenhum momento, duas coisas: primeiro, o valor, a resistência, a coragem e a generosidade daqueles que morreram combatendo as injustiças sociais e a repressão aos direitos humanos mais elementares na época pós-golpe militar. Mas houve equívocos. Nós (e aqui eu me identifico de coração inclusive com aqueles que perderam a vida) demos as razões para que nos combatessem. Nós demos razão e carta ao inimigo para que nos destruísse, porque justificamos o que nos diziam. A Igreja foi o partido (no sentido gramsciano do termo) de oposição ao regime militar, graças à sua força moral, à sua penetração no tecido social brasileiro e à coragem (pelo menos de alguns setores da instituição). O risco que ficou é de tentar fazer uma revolução cristã através de uma política cristã. Isso é um perigo que ronda até hoje. A Teologia da Libertação “esqueceu”, não forjou uma espiritualidade própria, uma espiritualidade que fosse religiosa para ter alcance político. Não é politizando a linguagem religiosa que vamos criar uma política politicamente eficaz. É mantendo a identidade espiritual e religiosa que vamos ter uma força política própria, capaz, significativa e dinâmica. Só que petrificamos um pouco, porque queremos uma política cristã e isso não é mais possível. O risco está tanto à direita – “católico vota em católico” – quanto à esquerda – "o PT é o partido de Deus”. Ainda que não seja tão explícita, essa postura constitui a estrutura de pensamento e ação de muitos cristãos. O que existe é um modo cristão de fazer política. E esse modo está num espírito novo, que privilegia não a eficácia que o partido tem que buscar, mas, sim, a generosidade, a grande luta política que fez da Igreja o partido de oposição à ditadura, mas também o pequeno gesto, as obras de misericórdia, que têm tanta força moral, sobretudo neste mundo de mercados financeiros desregulados e desta corrida desenfreada à autodestruição.

IHU On-Line - Como o senhor vê e analisa atualmente os movimentos populares e sociais no Brasil?

Luiz Roberto Benedetti – Eles sofreram um arrefecimento muito grande. O Brasil sofre ainda um processo de desmobilização social. Não só pelo movimento geral da sociedade globalizada e individualista, mas também pelo fato de o PT ter alcançado o poder. Além do natural arrefecimento que a conquista trouxe, veio o desencanto; mais, o desalento com as denúncias de escândalos envolvendo o partido. Administrar é bem mais complexo que fazer oposição. Quando hoje presenciamos a insensibilidade diante dos problemas sociais do país, em detrimento dessa busca da satisfação pessoal, ao culto da própria imagem acima de qualquer outra consistência histórica, ontológica e humana maior, temos ainda movimentos populares tentando se organizar a duras penas. Mas o que constatamos são os velhos atores e os velhos movimentos sociais. A grande dificuldade é gerar novas formas de movimento social, ou então de encarar as velhas formas com instrumentos políticos novos. Hoje não se luta mais pela igualdade como cidadãos. Hoje lutamos pelo direito de ser homossexual, pelo direito que me cabe como mulher, como cigano, como negro, como indígena, como de cultura queer, e esqueço um fenômeno central enquanto movimento social; esqueço que a luta pela diferença pode deixar de lado a luta contra a desigualdade. O grande problema ainda é a desigualdade. É preciso, sim, lutar pela diferença, mas ela nunca se afirma num mundo desigual.

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