Edição 282 | 17 Novembro 2008

Educação em Direitos Humanos através da fotografia: um meio lúdico de consciência e transformação social

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Bruna Quadros

Integrantes do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos se reúnem para discutir o assunto em mais uma edição dos Encontros de Ética

“A fotografia é um conjunto de olhares sobre o mundo, sendo um estímulo à conscientização do sujeito sobre a sua interferência pessoal na tentativa de transformação social do ambiente em que vive.” A afirmação é de Luciana Araújo de Paula, estudante do curso de Direito na Unisinos e bolsista do Núcleo de Direitos Humanos, recentemente criado na universidade. Em entrevista à revista IHU On-Line, sobre a educação em Direitos Humanos, ela comentou como foi realizar o projeto “Olha Só!”, que oportunizou jovens moradores de periferias a retratarem a sua própria realidade através das lentes de uma câmera fotográfica. Para ela, este equipamento se torna o passaporte para a visibilidade social dos nossos jovens da periferia e uma ferramenta que funciona como “um espelho e como uma janela”. O homem e seu universo são a fonte de inspiração dessa “fotografia documental da periferia”. Esta, segundo Luciana, busca representar a realidade a partir de imagens tiradas do cotidiano dessas pessoas por elas mesmas, do meio social onde estão imersos e, principalmente, para mostrar o lado humano da periferia, para romper com esses preconceitos criados e cultivados pela mídia.

A próxima exposição aberta do “Olha Só!” será realizada de 8 a 12 de dezembro, no saguão do Centro das Ciências Humanas da Unisinos. O evento tem o apoio do Núcleo de Direitos Humanos.

IHU On-Line - Como é o trabalho desenvolvido sobre Educação em Direitos Humanos? O que a motivou a integrar esta iniciativa e há quanto tempo ela existe na universidade?

Luciana Araújo de Paula - O trabalho é desenvolvido na tentativa de inter-relacionar a Educação em Direitos Humanos e a Arte Fotográfica de teor Documental/social, na busca da consciência e da transformação social das crianças moradoras das periferias que visitamos e que participam do projeto “Olha Só!”. Acreditamos que tanto a fotografia social quanto os direitos humanos possuem instrumentos de transformação social e possuem esse desejo de intervir na realidade. Se esse desejo é real, como tal deve ser levado a sério, principalmente quando na base deste desejo está uma ação cujos pressupostos éticos buscam modificar uma realidade social que se caracteriza pela exclusão, pela negação do diferente, pela não-tolerância e pela não-pluralidade. A nossa motivação vem de uma necessidade de ir contra toda essa passividade que alimenta nossa sociedade frente às desigualdades sociais. Esse projeto é a pequena contribuição que hoje podemos ajudar na busca de uma realidade mais humana, mais igual. O projeto “Olha Só!” foi incluído como atividade de extensão no recém-instituído Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos, desde o início de 2008.

IHU On-Line - Quais as periferias visitadas para realizar o projeto e quais os resultados obtidos no mesmo? Haverá uma mostra fotográfica? O que mais impressionou ao conhecer os locais visitados?

Luciana Araújo de Paula - Desde agosto de 2007, percorremos comunidades carentes não só de Porto Alegre, mas também da região metropolitana. Nossa primeira experiência, desenvolvendo o “Olha Só!” foi realizada em um centro de referência para Crianças e Adolescentes em situação de vulnerabilidade social na cidade de Canoas (RS). A maior parte das crianças desse centro vive na comunidade de Guajuviras, uma das periferias mais pobres e violentas da região metropolitana. A segunda experiência se realizou em Porto Alegre, na sede da ONG Avesol, para as crianças das comunidades de Farrapos, Areia e Dique. Os resultados dessas primeiras oficinas que duraram no total 5 meses foram muito bons e nos renderam um convite para expor as fotos das crianças na galeria Mario Quintana do Trensurb. No início de 2008, o projeto “Olha Só!” foi selecionado para desenvolver oficinas, em parceria com o Projeto “Descentralização da Cultura” pela Prefeitura de Porto Alegre na comunidade da Restinga. As oficinas começaram em abril e se estenderam até o mês de novembro, nos rendendo convites em diferentes lugares da cidade para expor as fotos dos alunos. O que mais nos impressiona nessas comunidades não é simplesmente a miserabilidade e a violência já lugares-comuns e, muitas vezes, preconceitos direcionados às periferias, mas, sim, a vontade de transformação que muitos dos habitantes têm e o que falta no nosso “mundo do asfalto”: o senso de solidariedade e de “comunidade” que presenciamos. A pobreza e a violência estão presentes na periferia. Isto é fato, mas a indiferença, que é o vício mais perigoso da nossa sociedade e que se volta diariamente contra ela própria, nós não encontramos lá. 

IHU On-Line - De que maneira a fotografia nos ajuda a compreender o que são, para que servem e a que parcela da sociedade atendem, de fato, os Direitos Humanos?

Luciana Araújo de Paula - Uma das questões fundamentais diz respeito à relação existente entre o referente externo e a mensagem produzida por esse meio (a fotografia). Trata-se da questão dos modos de representação do real: a fotografia, pelo menos aos olhos do senso comum, não pode mentir. Nela, a vontade de “ver para crer” é satisfeita. A foto é percebida como uma espécie de prova, ao mesmo tempo necessária e suficiente, que atesta e comunica de maneira dura ou não, aquilo que mostra. Nesse contexto da fotografia como testemunho fiel de uma realidade, quem poderia ser o sujeito em processo na periferia senão seus próprios moradores. Sabemos que são eles quem podem nos testemunhar fielmente através das fotos as violações recorrentes dos Direitos Humanos e o abandono do poder Estatal. E, aos olhos de uma criança, isso tem um peso diferente, pois, ao mesmo tempo em que suas imagens chocam, pois afinal são crianças testemunhando o descaso, elas também se sentem protagonistas da possibilidade de transformação daquela realidade retratada.  É um construir, um transformar, caminhando, retratando, documentando.

IHU On-Line - Qual o êxito de inter-relacionar Educação, Direitos Humanos e Fotografia, na tentativa de compreender os processos sociais de uma periferia?

Luciana Araújo de Paula - A fotografia contribui para que essas crianças dêem um primeiro passo em direção à transformação social, pois a câmera capta o que seus olhos escolheram para mostrar, estimulando a consciência crítica da realidade retratada, buscando a transformação da sua própria condição de vida sob o ângulo da dignidade da pessoa humana. Os alunos, baseados nos princípios básicos de direitos humanos, terão por objetivo comunicar, estabelecer nas imagens códigos para percepção do social, do que querem transformar de maneira universal. Através desta fundamentação, acreditamos que a arte fotográfica é um meio bastante lúdico para a educação em direitos humanos de crianças e adolescentes, futuros cidadãos ativos. Primeiramente, porque a imagem tem o poder de infundir e implementar a consciência de que a pessoa humana é o primeiro dos valores, decorrendo o  compromisso de respeito a dignidade dos seres humanos e aos valores fundamentais que são de toda a humanidade

IHU On-Line - Por que a fotografia é considerada um caminho para despertar uma reflexão de fundo acerca dos Direitos Humanos? Que outros elementos poderiam ser usados, além das imagens?

Luciana Araújo de Paula - A fotografia é um conjunto de olhares sobre o mundo, sendo um estímulo à conscientização do sujeito sobre a sua interferência pessoal na tentativa de transformação social do ambiente em que vive. O projeto “Olha Só!” focaliza sua pesquisa nas crianças com a faixa etária de 11 a 16 anos. Nessa idade, esses pré-adolescentes estão passando por um processo de construção da identidade, onde, normalmente, estão mais vulneráveis e necessitam do “olhar aprovador” tanto dos familiares quanto da sociedade; entretanto, no caso da periferia, esse olhar quase sempre é nulo ou carregado de preconceitos. A indiferença gera adolescentes “socialmente invisíveis” nas periferias, que revoltados acabam ou tornando-se adultos totalmente passivos em relação a sua situação, ou jovens violentos. Proporcionar uma câmara para essas crianças, equivale a dar-lhes a possibilidade de contar uma história, a história da sua comunidade, sua história pessoal. O adolescente passa a ganhar protagonismo sob o olhar de sua periferia e também da sociedade em geral. Partindo dessa constatação, a câmara fotográfica se torna o passaporte para a visibilidade social dos nossos jovens da periferia e uma ferramenta que funciona como “um espelho e como uma janela”. A fotografia que o aluno tem em mãos equivale a um espelho no qual se reflete sua própria imagem como morador de uma comunidade pobre; o aluno fotógrafo que enquadra uma realidade, que pensa e tira uma foto, nos diz coisas sobre si mesmo e sobre como ele vê o seu próprio meio. Da mesma maneira, ao fotografar as diferentes facetas da sua comunidade, o aluno abre uma janela sobre o seu mundo que nós, espectadores, na maioria das vezes não queremos enxergar.

IHU On-Line - Como você avalia a fotografia, enquanto agente de transformação social? O que muda para as pessoas, a partir do momento em que elas se deparam com retratos reais de uma sociedade?

Luciana Araújo de Paula - A fotografia precisa se adequar à mensagem que o aluno quer comunicar. Se o aluno quer fazer uma crítica sobre o saneamento básico da sua comunidade, ele precisa encontrar através da arte fotográfica a maneira mais pessoal e original de ilustrar o seu alerta. Hoje em dia, através dos meios de comunicação, todo mundo sabe o que acontece nas periferias das cidades e, muitas vezes, de maneira totalmente distorcida. A maioria das pessoas nunca entrou numa comunidade carente e tem “contato” com essa realidade somente através das mídias sensacionalistas – é aí que começam a surgir os preconceitos e a tentativa de “ocultar” os lados positivos da favela, os lados que buscam com “armas da paz” a transformação social e uma vida mais digna. O projeto propõe uma troca nesse sentido. O que o público vai ver nas fotos não é só uma comunidade – massa anônima carregada de discriminações e totalmente impessoal. O público vê “A comunidade da Restinga”, de Porto Alegre, e “A comunidade de Guajuviras”, de Canoas, retratadas por “jovens repórteres comunitários”. Eles mostram a periferia como ela é, ou seja, não existem na sua representação da realidade idéias preconcebidas de um “ambiente” a ser retratado, pois esses jovens não vêm retratar a comunidade de fora para dentro dela, e sim de dentro para mostrar para fora, eles são a própria representação viva da periferia. Portanto, o “Olha Só!” trabalha com o concreto, dentro dos parâmetros definidos como “realidade” para esses jovens. O “homem e seu universo” são a fonte de inspiração dessa “fotografia documental da periferia”, que busca representar a realidade a partir de imagens tiradas do cotidiano dessas pessoas por elas mesmas, do meio social onde estão imersos e, principalmente, para mostrar o lado humano da periferia,  para romper com esses preconceitos criados e cultivados pela mídia.

IHU On-Line - Qual a importância de trabalhar a questão dos Direitos Humanos na universidade?

Luciana Araújo de Paula - A questão dos Direitos Humanos deveria ser obrigatória em qualquer área, em qualquer curso da universidade, pelo fato de ser uma abertura para se pensar a humanização, a sensibilidade frente às desigualdades e aos problemas sociais tão latentes em nossa sociedade. Trabalhando com os Direitos Humanos, descobrimos uma cultura de valorização da pessoa humana, onde aprendemos e educamos uns com os outros e também que não somos os únicos responsáveis pelo processo de construção da cidadania democrática. A educação em Direitos Humanos deve humanizar, o que significa suscitar nos educandos a capacidade de reflexão crítica, bem como a aquisição do conhecimento para buscar a transformação social. Outro ponto importantíssimo é que a educação para os Direitos Humanos é sempre, necessariamente, preparo e estímulo para a prática.

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