Edição 282 | 17 Novembro 2008

“Poemas únicos, de uma sonoridade extraordinária, para quem sabe ouvir”

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André Dick

As inovações de Hopkins trouxeram uma grande contribuição para que o ritmo poético fosse visto de maneira diferente, diz o poeta e tradutor Dirceu Villa

“Hopkins acabou fazendo muitas coisas ao mesmo tempo: despertou um uso aliterativo que havia se apagado sob a acusação de rudeza; ajudou a desmontar os usos convencionais da métrica inglesa antes das marretadas modernas; serviu, com Whitman, para dar exemplo de prosódias alternativas que não haviam sido tentadas; e confeccionou poemas únicos, de uma sonoridade extraordinária, para quem soubesse ouvir”, considera o poeta e tradutor Dirceu Villa, recuperando boa parte da tradição a que pertence Hopkins: a dos poetas modernos que conseguiram inovar. Villa realiza um apanhado, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, sobre as ligações de Hopkins com outros poetas, entre os quais John Herbert, William Carlos Williams, Pound e Mallarmé. Avalia, ainda, as diferenças quanto à religiosidade entre Hopkins e Rimbaud, além da sua posição mística, numa comparação com Mallarmé.

O poeta Dirceu Villa escreveu, entre outros, os livros Descort (São Paulo: Hedra, 2003) e Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008). Editou e publicou a revista de arte Gargântua e, atualmente, escreve sobre literatura, tradução e arte para a revista virtual Germina Literatura. Traduziu e anotou o livro de poemas Lustra, de Ezra Pound (2003, inédito), além de ter escrito prefácios para Contos indianos (São Paulo: Hedra, 2006), de Stéphane Mallarmé, A trágica história do doutor Fausto (São Paulo: Hedra, 2006), de Cristopher Marlowe, O spleen de Paris (São Paulo: Hedra, 2007) e Escritos sobre arte (São Paulo: Hedra, 2008), ambos de Charles Baudelaire. Lecionou poesia na extensão universitária da Universidade de São Paulo (USP) e na Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Cultura. Atualmente, desenvolve tese de doutorado em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês, sobre as idéias italianas do século XV na poesia inglesa do século XVI.

IHU On-Line - Como vê a importância de Hopkins na poesia moderna, mesmo não sendo stricto sensu um modernista, em relação aos poetas simbolistas, por exemplo, cultores, como ele, de uma poesia musical?

Dirceu Villa - Hopkins tem uma importância muito definida em dois aspectos que são fundamentais a toda poesia escrita e falada: o som e as imagens. No som, porque recuperou, ainda que de um modo bem pouco compreendido em sua época, algumas matrizes da poesia inglesa, que eram anglo-saxãs e tiveram seu uso reduzido drasticamente mais ou menos a partir de Thomas Wyatt tentar soar dolce como os italianos que imitava, no século XVI.

Havia um entendimento, que recua até Dante, no mínimo, e seu tratado De Vulgari Eloquentia, de se escolher a dulcior loquela. Um século depois da completa consumação de todas as experiências posteriores a essa exigência na Itália (e com isso eu quero dizer o século XVI), a Inglaterra recebeu uma onda de material italiano que propunha aos elegantes que suavizassem a rudeza de seu idioma, para torná-lo mais flexível às delicadezas do pensamento. Essa é a cultura que obviamente deságua em Shakespeare.

Isso afastava os novos poetas da matriz anglo-saxã e de Chaucer, que só começou a ser recuperado quando Dryden, em prefácios às traduções de Virgílio e Ovídio, sugere que ele não é tão ruim assim. E vemos que mesmo Hopkins, no século XIX, causava um grande incômodo puxando essa ancestralidade mal resolvida. Não apenas por isso, claro, ele foi um poeta muito específico, que queria coisas muito específicas da poesia, mas parte de sua dificuldade era lingüisticamente estabelecida.

Curiosamente, como destaca Augusto de Campos no livro Verso reverso controverso, e a partir da leitura de Gustav René Hocke, Hopkins teria partido de italianos marinistas, como Leporeo e Groto, que levavam uma cacofonia sonora às últimas conseqüências. Então a língua inglesa também seria devolvida à aliteração e à “rispidez” anglo-saxã por italianos, assim como havia antes sido afastada dela por italianos.

IHU On-Line - Qual seria a ligação de Hopkins com os poetas metafísicos, como John Donne? Estaria certo Mário Faustino ao apontar que em ambos os trabalhos a poesia é “ardente, profética e chocante, surpreendente e altissonante”?

Dirceu Villa - Não penso tanto em John Donne, mas em George Herbert. Quando estava escrevendo meus ensaios de mais fôlego para a revista virtual Germina, há um ou dois anos, pensava por vezes em escrever um ensaio triangulando George Herbert, Gerard Manley Hopkins e William Carlos Williams. Esses três dariam um belo ideograma sobre coisas específicas da poesia de língua inglesa.

Os dois primeiros têm uma característica em comum: a poesia religiosa, que representa um fervor muito peculiar, que é como um El Greco, que representa o êxtase deformando suas figuras extáticas: Herbert em seus melhores poemas deforma tanto a relação entre suas imagens (proporcionalmente, é claro, não estamos falando de um moderno), que os poemas, para a nossa sensibilidade atual, se sobressaem, têm um interesse retrospectivamente “novo”. Um poema de Herbert em que se percebe nitidamente a relação com Hopkins é “Prayer”, publicado em The temple, de 1633. Vejamos as duas primeiras estrofes:

Prayer: the Church’s banquet, angels’ age, / God’s breath in man returning to his birth, / The soul in paraphrase, heart in pilgrimage, / The Christian plummet sounding heaven and earth; / / Engine against th’ Almighty, sinners’ tower, /  Reversed thunder, Christ-side-piercing spear, / The six-days world transposing in an hour, / A kind of tune, which all things hear and fear.

Um poema peculiaríssimo, todo ele. Com expressões como “Christ-side-piercing spear”, imagens recortadas umas das outras quase numa collage.

Com Hopkins é parecido, mas Hopkins pertence a um século em que a percepção já começava a se modificar, e ele me parece que tinha suas antenas bem sintonizadas, de modo que sua linguagem soa muito estranha, como linguagem, ainda hoje, para qualquer leitor não familiarizado com poesia como linguagem. Robert Bridges, poeta bem mais convencional, e amigo de Hopkins, não entendia nada do que ele estava fazendo. E esse de fato é mais um daqueles casos de uma amizade que extrapola o entendimento da atividade do amigo e se instala numa dimensão de respeito e afeição.

Williams, diferente de ambos, sobretudo porque não partilha uma visão de mundo estruturadamente religiosa, teleológica portanto, usará, por outro lado, a parte da experiência com o sprung rhythm com uma sutileza que o aproxima (e distancia, numa relação muito pensada) da fala das pessoas nos EUA, ou ao menos de um estrato de pessoas atento aos usos da língua. Mas nota-se a fecundidade da coisa para uma história da sonoridade da poesia de língua inglesa.

É evidente que uma história completa do assunto incluiria algumas discussões sobre Chaucer e a poesia aliterativa anglo-saxã, ou as pressuporia.

IHU On-Line - De que modo interpreta a ligação de Hopkins com a religião? Na opinião de Hopkins, os poetas tinham uma “alma elevada”, ou seja, precisavam ser seres humanos especiais. Como avalia esse aspecto em sua obra? É preciso aproximar a poesia do sagrado, como sugeria Octavio Paz? E como essa religiosidade se afasta de outros poetas modernos, como Rimbaud?

Dirceu Villa - Não exatamente do sagrado, mas do simbólico. O sagrado é ritualístico e está colado a crenças poderosas, é reverencial. O simbólico é aquilo que se solta das experiências imediatas e encontra um reduto de permanência carregada de sentido transmissível, comunicável.

Nesse caso do Hopkins, é claro, o simbólico tem uma confluência com a religiosidade, com o que estamos pouco acostumados atualmente, já que os nossos valores são muito pouco simbólicos. E nem há muito interesse por poesia também, já que se tornou uma coisa de difícil leitura para os nossos padrões.

Hopkins cria aquele conceito de inscape, que é uma espécie de paisagem ou visão interna, que talvez partilhe algo daquela concepção renascentista do disegno interno, que está tanto na filosofia neoplatônica de Marsilio Ficino quanto no modo de Michelangelo entender o próprio trabalho de escultor.

O conceito de Hopkins é muitíssimo interessante, mais amplo e complexo do que a “inspiração”, porque procura descrever uma percepção artística diferenciada de uma percepção comum. A inspiração soa à banalidade porque é mais ou menos como um tique que cutuca o autor de vez em quando. Inscape não, propõe uma perspectiva específica que se aprofunda e varia com o uso. Mas está à parte de uma idéia decididamente religiosa, ou lhe é paralela, porque seria comum a todo grande artista, quer dizer, todo artista tem a sua inscape.

IHU On-Line - Em relação a outros poetas de língua inglesa, apesar de sua obra breve, Hopkins tem importância? Por que ele se destaca numa literatura que contém autores tão fortes? Em que aspectos ele inova a tradição (em termos de ritmos e imagens)?

Dirceu Villa - Ele importa pelas dimensões em que se inscreve. Na verdade, acho Hopkins um autor muito forte, nesse sentido de intensidade que a palavra sugere, mas não muito amplo, nessa possível definição, e que trouxe para a poesia de língua inglesa essa “inovação” bastante pro domo.

Com isso eu quero dizer: funciona sobretudo para leitores de língua inglesa, que poderão aproveitar suas experiências. Como, aproximadamente no nosso caso, Odorico Mendes em suas traduções ousadas do grego e do latim. Funciona para nós, leitores da língua portuguesa: lemos como ele traz para a língua que usava no século XIX características arcaicas de suas origens, potencializando o efeito de deslocamento no leitor pelo enxerto direto de latim em neologismos (e propondo até mesmo um caminho explorável para novos poetas, como foi o caso de Haroldo de Campos, que tirou usos de vanguarda de lá).

Embora eu suspeite que Hopkins não pensasse precisamente em inovar, que esse não fosse seu ponto de partida — imagino que buscasse ser fiel à sua visão, e era uma visão muitíssimo peculiar — o efeito que teve pode ser posto nesses termos, certamente.
E é como você propõe: ritmos e imagens. As imagens, porque honestamente são bem poucos os poetas com uma imaginação poderosa, sutil e eficiente. A de Hopkins era assim, e é devida a isso a aproximação que se faz entre ele e os metaphysical poets.

Em relação ao ritmo, mas de um modo mais completo, à sonoridade, Hopkins acabou fazendo muitas coisas ao mesmo tempo: despertou um uso aliterativo que havia se apagado sob a acusação de rudeza; ajudou a desmontar os usos convencionais da métrica inglesa antes das marretadas modernas; serviu, com Whitman, para dar exemplo de prosódias alternativas que não haviam sido tentadas; e confeccionou poemas únicos, de uma sonoridade extraordinária, para quem soubesse ouvir.

É muito curioso ver como desafiou aqueles velhos livros de prosódia que achavam que os acentos tinham de ser suavizados. Ele punha uma linha repleta de acentos, muitas vezes consecutivos, e vemos o cuidado que tinha na redação disso olhando para os manuscritos, onde inscreve os acentos como pauta de leitura, é bem ousado. É notório o empenho musical que quase transforma a página numa partitura anotada.

IHU On-Line - Há um Hopkins radical, que queima seus poemas quando resolve ser jesuíta, que lembra o abandono poético de Rimbaud. Como avalia essa polarização curiosa: entre alguém que abandona a poesia para se dedicar à vida como padre; e o outro que abandona a poesia para traficar armas e escravos na África? A partir disso, como pode esses poetas falarem num “eu” que fale por todos (Rimbaud dizia “Je est un autre” (esse “autre” seria o medium romântico, sobretudo)?

Dirceu Villa - É basicamente a mesma coisa. A crença absoluta e a descrença absoluta são muito próximas. São como vizinhas rabugentas que se olham com certa repulsa, porque inconscientemente sabem que são parecidas. O ato de queimar os poemas é um decoro, talvez chocante para nós descrentes, que ritualmente o esvaziaria da vida pregressa, pondo-o a serviço de seu deus, que exige exclusividade.

Rimbaud, por outro lado, estava farto daquela coisa de cenáculo, do sistema literário, e, a bem da verdade, precisamos também compreender que ele já havia feito o que tinha para fazer. É uma atitude diferente daquela do poeta que continua tagarelando mesmo que já tenha, no sentido da obra, fechado a conta. Ele era um caipira de Charleroi, mas essa atitude tem uma nobreza tão fina do desinteresse que é alarmante para a época burguesa dele ― e era já quase a nossa, é bom sempre lembrar.

E não acho que os poetas falem por todos. Aliás, digo isso também por minha experiência como poeta: tenho a impressão de que é muito superestimado esse tipo de alcance da voz poética. Me parece que esse “falar por todos” acaba sempre fabricado muito a posteriori, pelo seguinte: é do métier mesmo do poeta plasmar em linguagem algo muitíssimo conciso, carregado de um poder próprio da arte.

Passado algum tempo, aquilo que foi a palavra do poeta se estende para o uso, porque em geral fixa, como nenhum outro artifício seria capaz, certos estados mentais, certas emoções. É evidente que alguns poetas atingem um número muito reduzido de pessoas, porque alguns pensamentos e emoções bem poucos são capazes de experimentar.

Não acredito que um público muito extenso possa se identificar ou se relacionar, em qualquer grau, com a “Comédie de la soif”, de Rimbaud, por exemplo, ou com o canto CXVI, de Pound, entre tantos outros exemplos possíveis. A velha história da “poesia difícil”.

Esse “autre” de Rimbaud é dizer, como Fernando Pessoa diria:

E os que lêem o que escreve, / Na dor lida sentem bem,/  Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm.

Porque Pessoa entende claramente que a poesia é fingir, no sentido etimológico de “forjar”, não como uma farsa, mas como numa forja: implica o distanciamento de se construir algo, uma perspectiva. Pound propunha o termo personae, “máscaras”. Foram recursos modernos (e especialmente anti-românticos, uma vez que os românticos investiam num muito estudado efeito de espontaneidade e originalidade sobre os leitores) à falta de um sistema que codificasse a fala poética dentro de uma expectativa calculada de alheamento, como estava subentendido nas práticas antigas.

IHU On-Line - Quais as diferenças básicas entre a mística de Hopkins e a de Mallarmé, que não seguia, ao contrário do primeiro uma religião, embora apreciasse os conceitos do budismo, ambos considerados basilares para a modernidade?

Dirceu Villa - Mallarmé, como eu o entendo, tinha a religião, ou a mística, da arte, e da arte como linguagem.

Eles são um tanto distantes: Hopkins tinha um primado do som, e o som era a comunicação de um tipo de êxtase místico, pelo qual ele demonstrava intenso fervor. Era um poeta do ouvido, embora muitas vezes pudesse propor coisas em estruturas complexas de pensamento. Ele conhecia bem a retórica antiga, como se percebe por suas cartas.

Mallarmé, quando usa música (com alguma licença poética podemos pensar na estrutura do “Coup de dés” como musical), não é no sentido melódico, mas no das relações entre partes do discurso, articuladas para que haja estruturalmente algo análogo a um tema que perpassa o poema, sendo modificado toda vez que retorna.

Mallarmé foi muito bem aceito pelas vanguardas do século XX porque, naturalmente, é um poeta muito cerebral, desde a intrincada e polissêmica sintaxe de seus sonetos, até a exigência da dignidade da inteligência na poesia, no prefácio ao “Coup de dés”. Hopkins, por sua vez, interessou à vanguarda pela bizarrice, pelo rico e atípico mecanismo sonoro que sua obra apresenta.

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