Edição 281 | 10 Novembro 2008

Reler Bourdieu e desmistificar a escola

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Márcia Junges e Patricia Fachin

Recuperar o pensamento do fi lósofo francês pode nos ajudar a compreender e criticar a escola estruturada a partir de um sistema de poder cujo cerne é a violência simbólica, pontua Solon Viola

Segundo o historiador Solon Viola, docente na Unisinos, reler Pierre Bourdieu significa desmistificar “a educação e a escola ao apresentá-la como lugar privilegiado de reprodução e legitimação das desigualdades sociais”. Ele continua: “A crítica de uma escola estruturada a partir de um sistema de poder organizado sobre a violência, mesmo que simbólica, pode nos apontar uma alternativa que busque a construção de um poder equanimente construído. A compreensão dos diferentes universos de formação cultural pode nos indicar a urgência de uma escola que, respeitando a diferença, possibilite formas solidárias de aprendizagem e relações fraternas entre educandos e educadores”. As declarações podem ser conferidas na íntegra, a seguir, na entrevista exclusiva que Viola concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.

Graduado em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e especialista em História do Rio Grande do Sul, pela mesma instituição, cursou mestrado e doutorado em História na Unisinos, com a tese Democracia e Direitos Humanos no Brasil (São Leopoldo: Unisinos, 2008). É um dos organizadores de Cidadania e qualidade de vida(Canoas: La Salle/RML Gráfica, 1998), Direitos humanos - Pobreza e exclusão (São Leopoldo: Adunisinos, 2000) e Direitos humanos - Alternativas de Justiça Social na América Latina (São Leopoldo: Unisinos, 2002). Leciona História da Educação e de Direitos Humanos e Democracia na América Latina na Unisinos. O pesquisador também participa da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e é membro do Comitê Brasileiro de Educação em Direitos Humanos.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu para compreender o sistema educacional contemporâneo?

Solon Viola - São raras as unanimidades da sociedade atual. Uma delas é o reconhecimento da crise do sistema educacional. Para que educar, como educar e quem educar são questões permanentes. As teorias de Bourdieu,  e não só elas, podem auxiliar na busca das respostas. Quando, nos anos 1960, Bourdieu e Passeron  escreveram Os herdeiros, a partir de denso material empírico, demonstravam que o sistema de ensino objetivava a manutenção do sistema de dominação de classes e a preservação dos privilégios que a mesma representava. Criticavam, assim, o discurso hegemônico à época de que “a escola igualitária feita para todos” tornaria possível a criação de uma sociedade igualitária. Atualmente, quando repensamos o papel da educação, convém recordar quais as críticas são pertinentes e quais propostas se aproximam mais dos anseios de liberdade e igualdade tão almejadas nos anos 1960.

IHU On-Line - Quais críticas devem ser feitas ao estudo de Bourdieu em relação à educação?

Solon Viola - As principais críticas que os sociólogos de educação têm feito ao pensamento de Bourdieu dizem respeito ao conteúdo reprodutivista de suas teorias e, nela, ao pequeno espaço reservado à ação dos sujeitos sociais. Penso que a constante releitura a que são submetidos os clássicos poderá reinterpretar tais críticas, especialmente quando for capaz de perceber que os conceitos de cultura e multiplicidade cultural presentes no universo educacional não são vistos por Bourdieu como limitados e condicionados pelas macro-estruturas sociais.
Ao contrário, no universo teórico bourdesiano, a reprodução projetada para o sistema de ensino demonstra o interesse da reprodução dos privilégios sociais e por essa razão se orienta para o “controle, através da violência simbólica”, das práticas culturais dos setores não dominantes.

IHU On-Line - Em que sentido o desempenho escolar está relacionado com a herança familiar e cultural? Como a escola deve educar, sem perder os valores e aprendizados constituídos no âmbito familiar?

Solon Viola - Se considerarmos a questão através das teorias de Bourdieu, as heranças familiares e culturais estão relacionadas ao universo de origem das famílias e das culturas de tal modo que o desempenho escolar possa ser vinculado ao “capital cultural”, um dos conceitos mais significativos da teoria bourdesiana. Quanto aos valores, segundo Bourdieu, o sistema de ensino busca reproduzir os valores dominantes em todos os grupos sociais. Uma questão que deve ser colocada diz respeito a como tais valores são aceitos, e podem ser preservados, em épocas de crise do sistema quando uma parcela significativa da humanidade vive em condições de carência social, quando não de carência extrema.

IHU On-Line - Em que consiste a síntese teórica de Bourdieu entre o modelo durkheimiano e o estruturalismo?

Solon Viola - O estruturalismo de Durkheim  busca compreender o quanto a ação dos indivíduos está limitada pelas estruturas sociais, o que em linguajar sociológico quer dizer “as condições objetivas”, que movem a sociedade e os homens que a formam. Os primeiros escritos de Bourdieu, os da década de 1960, de algum modo recuperam a tradição durkhainiana especialmente quando definem ação como “o processo pelo qual as estruturas se reproduzem”, de modo que o sujeito fique submetido aos processos da sociedade, aquilo que as estruturas determinam. Na década de 1970, em um livro chamado A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino (Lisboa: Editora Vega. 1978), Bourdieu incorpora o conceito de “violência simbólica”, com o qual busca desvendar as relações de força que compõem o poder e que no campo da educação constituem um “arbitrário cultural”, capaz de inculcar normas e valores das classes dominantes para toda a sociedade. Tal pressuposto exige a existência de uma “autoridade pedagógica”, capaz de tornar natural a dominação da cultura dominante sobre os diferentes níveis de educação de modo a reproduzir, através da educação, o modelo socialmente dominante. Assim, a re-leitura bourdieuesina desmistifica a educação e a escola ao apresentá-la como lugar privilegiado de reprodução e legitimação das desiguladades sociais; nesta perspectiva, ele vai ao encontro (pela via transversa e crítica) de Durkheim porque percebe que - também – não é só na escola que se forma o “ser social”. Se para Durkheim é na escola que as normas, e a ética, determinam a conduta do indivíduo no grupo, para Bourdieu estas normas e valores apresentados na escola como educação ou “cultura universal” nada mais são do que processos legitimadores das crenças e valores dos grupos dominantes. Nesse sentido, o papel ativo da escola (tanto para Durkheim como para Bourdieu) tem lugares diferentes. O primeiro valoriza, o segundo desmistifica. Mas o que fica evidenciado é que no pensamento bourdieusiano a escola reproduz as diferenças sociais, na medida em que prepara as novas gerações para sua inserção nas instituições que formam as estruturas produtivas da sociedade. Como se pode observar, já na obra acima referida, o autor utiliza conceitos oriundos da sociologia clássica alemã, que, a partir de então, passaram a ser referência obrigatória na construção teórica do autor em pauta.

Rejeição do estruturalismo

Por outro lado, e está é uma questão teórica importante, Bourdieu rejeita em parte o estruturalismo, na medida em que relativiza a influência da objetividade ou da materialidade das relações socioeconômicas ou da natureza, e na medida em que, para ele, esta objetividade não explica os processos de mediação que caracterizam a passagem da estrutura social para a ação individual. Isso porque a ação das estruturas sobre o indivíduo ocorre de dentro para fora, modificando e sendo modificada conforme as ações das estruturas sobre os indivíduos, assim como a ação destes sobre aquelas. É por essa razão que o autor privilegia, recriando, o conceito de “hábitus”, que entende como o princípio de orientação capaz de ir além das estruturas já consolidadas.

Creio que aqui está o diferencial, pois a dimensão da multiplicidade das culturas presentes no sistema escolar abre espaços para a autonomia do indivíduo (e dos diferentes grupos sociais) sobre a estrutura que se pretende objetiva e constituída de uma universalidade que não se valida na vida, porque o ser autônomo/livre se constrói com base no caráter comunitário e social dos espaços educativos. Ele expõe-se como vontade plural que nega as representações impeditivas ao ser livre que habita os seres racionais finitos e que vai além das orientações do tipo moral.
    
IHU On-Line - Uma das questões apresentadas pelo autor é o desempenho da escola em reproduzir as desigualdades sociais. Ainda é possível avançar nesse sentido ou estamos condenados a repetir a mesma estrutura educacional?

Solon Viola - Não diria que o autor trate do “desempenho da escola”. Preferiria pensar no “projeto escolar-educativo” como reprodutor da desigualdade e, mais ainda, como expansão da desigualdade como conseqüência de um modelo econômico e social desigual e excludente. Para Bourdieu, a escola serve a um modelo de sociedade, e se esta for desigual será reproduzida pela escola. Mas a escola reproduz, também, os conflitos presentes no interior da sociedade, como afirma Bernard Charlot  (aluno de Bourdieu), no livro Relação com o saber, formação de professores e globalização (Porto Alegre: Artmed, 2005), e como afirma Freire em Medo e ousadia: o cotidiano do professor (2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986) ao afirmar que a escola não se modifica sem a modificação da sociedade, mas a sociedade também não se transforma sem a ação educativa da escola.
 
IHU On-Line - Como as críticas de Bourdieu à educação nos ajudam a pensar um novo modelo de escola a ser construído?

Solon Viola - Se realmente pretendemos um novo modelo, precisamos compreender o modelo atual, tanto de ensino quanto de sociedade. Sem tal compreensão, torna-se impossível projetar um novo modelo. As teorias do sociólogo francês podem, como outras teorias, auxiliar na crítica da sociedade e da escola e a partir daí contribuir com a elaboração de um novo modelo. A crítica de uma escola estruturada a partir de um sistema de poder organizado a partir da violência, mesmo que simbólica, pode nos apontar uma alternativa que busque a construção de um poder equanimente construído. A compreensão dos diferentes universos de formação cultural pode nos indicar a urgência de uma escola que, respeitando a diferença, possibilite formas solidárias de aprendizagem e relações fraternas entre educandos e educadores. 

IHU On-Line – O que significa resgatar a proposta de Bourdieu?

Solon Viola - Parece-me que, ao fazermos a leitura ou re-leitura de Bourdieu, é preciso ter presente que toda obra é um projeto inconcluso - mais especificamente, neste caso, porque truncado pela morte do autor. No entanto, como o conhecimento é uma construção necessariamente coletiva, responde à época em que é produzido. Assim sociólogos, historiadores, pedagogos e filósofos continuaram a pensar sobre educação e o lugar do sistema escolar na sociedade.  As teorias bourdesianas, exatamente porque relidas e reatualizadas por seus críticos, poderão, também, alcançar sua proposta política inicial de modelar, pelo questionamento, as diferentes formas de pensar, comumentemente capazes de modificar o que pensamos e de, também, modificar as explicações teóricas e as práticas sociais. Nesse sentido, resgatar a proposta de Bourdieu auxilia a compreensão das lógicas presentes nos projetos educacionais da atualidade, bem como ampliar o universo de possibilidades da ação educativa.

Leia mais...

Solon Viola concedeu depoimento especial à revista IHU On-Line. O material pode ser acessado através do site: www.unisinos.br/ihu

* Recordar ou esquecer? A Lei da Anistia em discussão. Depoimento concedido à IHU On-Line nº 268, de 11-08-2008;

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