Edição 278 | 20 Outubro 2008

Poder e dinheiro. A flexibilidade do capital financeiro

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Para a economista Leda Paulani, o conceito marxista mais importante para interpretar a atual crise financeira é o de capital fictício. O crescimento desmedido não existiria se nãoexistisse o capital fictício, argumenta

Depois de tantas oscilações na economia mundial, chegou a hora de vislumbrarmos o fim do capitalismo? Ou essa é apenas mais uma das acentuadas crises que compõe o sistema financeiro internacional? Embora muitos marxistas estimem que o capitalismo esteja em crise há quase meio século, a economista da USP Leda Paulani afirma o contrário. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora é enfática: “Creio que o reinado financeiro ainda durará por um bom tempo, primeiro porque, por mais que a crise tenha debilitado essa poderosa riqueza financeira, ela ainda parece grande demais para deixar de impor seus requerimentos ao andamento material do planeta”. Seguidora das idéias de Karl Marx, Leda aponta para uma possibilidade futura: “Passaremos por um período de maior regulação”. De qualquer modo, essas mudanças de posicionamento político e econômico não vão conseguir acabar com a instabilidade econômica. “Se prevalecer, como imagino que prevalecerá, o poder do capital financeiro, essas crises abissais continuarão no horizonte, porque o capital financeiro é extremamente flexível e pródigo em invenções que escapam a qualquer regulação”, considera.

Leda Paulani é doutora em Teoria Econômica, pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (USP). Obteve livre docência pela mesma universidade e é presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Econômicas e professora da USP, além de ser autora de obras como Modernidade e discurso econômico (São Paulo: Boitempo Editorial, 2005) e Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico (São Paulo: Boitempo Editorial, 2008). Em outubro de 2007, a professora esteve na Unisinos, participando do Ciclo de Estudos Fundamentos Antropológicos da Economia, no qual apresentou o pensamento de Guy Debord (1931-1994), com a palestra "A mercadoria como espetáculo". Leda Paulani é autora do artigo “A (anti)filosofia de Karl Marx”, publicado nos Cadernos IHU Idéias nº 41, de 2005.

IHU On-Line - É correto afirmar que a crise financeira internacional é conseqüência da crise do capitalismo?

Leda Paulani - Essa é uma questão polêmica, cuja resposta não podemos dar aqui integralmente, pois o espaço não é suficiente. O ponto mais polêmico é se o capitalismo está ou não em crise e se está desde quando. Dentre os autores marxistas, alguns julgam que o capitalismo está em crise desde meados dos anos 70 do século passado, porque desde então as taxas médias de crescimento declinaram em todo o planeta. Outros acreditam que há, desde pelos menos uma década antes disso, um problema não resolvido de sobreacumulação de capital. Outros ainda acreditam que o capitalismo passa por ciclos sistêmicos de acumulação, ora real, ora financeira, e que estaríamos agora num ciclo de acumulação financeira. Seja como for, o fato é que, pelo menos desde o início deste novo século, essa morosidade do sistema no que tange ao crescimento da riqueza real parece ter sido substituída por uma velocidade maior, puxada fundamentalmente pela decisão da China de passar a integrar o sistema capitalista. Nesse sentido, o terremoto financeiro que assistimos tem funcionado como desmancha-prazeres, de modo que se poderia dizer, ao contrário, que a crise do capitalismo (a que virá agora) é que é conseqüência da crise financeira. Mas, como disse, essa uma questão muito complicada para ser trabalhada aqui.

IHU On-Line - Quais as lições de Marx em relação ao livre mercado que podem nos ajudar a compreender a crise financeira atual?

Leda Paulani - O que Marx mostrou de mais importante sobre o assim chamado “livre mercado” é que ele esconde por trás de sua aparência de liberdade, igualdade e equilíbrio o contrário disso. Ele põe a aparência de liberdade porque todos são juridicamente iguais, proprietários de mercadorias, e parecem livres para vender suas mercadorias a quem quiserem e se quiserem e para comprar o que quiserem, de quem quiserem e se quiserem. Ele põe a igualdade porque quando mostra que algo, uma bolsa, por exemplo, é igual a R$ 25,00, a venda da bolsa parece uma transação justa, em que se trocou valor de um tipo por valor de outro tipo. A aparência de equilíbrio vem da reiteração das transações mercantis (com suas trocas iguais) no dia-a-dia dos mercados, num movimento que parece poder repetir-se indefinidamente. Quando surgem crises da dimensão da que agora vivemos, elas não combinam com essa aparência idílica e denunciam a complexidade e as relações contraditórias que constituem o sistema capitalista.

IHU On-Line - Qual a validade das definições de Marx para o crédito e o capital financeiro neste momento de crise mundial?

Leda Paulani - Crédito e Capital Financeiro condicionam-se mutuamente. Quando o dinheiro serve não apenas para comprar mercadorias (bens, serviços, força de trabalho, máquinas etc.), mas igualmente para pagar dívidas (e também comprar honra, consciência, enfim tudo aquilo que seja adaptável à forma preço), Marx diz que ele se transforma em meio de pagamento geral, e se ele funciona assim é porque já estão em cena credores e devedores. Aquele que fornece crédito é ao mesmo tempo o detentor de uma forma especial de capital, que Marx chama de capital portador de juros, e que mais popularmente é chamado de capital financeiro. Marx diz sobre o capital portador de juros que ele é a matriz de todas as formas aloucadas de capital. Quem acompanhou o redemoinho vivido pelos mercados financeiros do mundo nas últimas semanas não pode deixar de dar-lhe razão. 

IHU On-Line - Em que sentido o conceito de "capital fictício" elaborado por Marx contribui para esclarecer o caráter da crise de agora?

Leda Paulani - Dentre todos os conceitos criados por Marx para dar conta da realidade capitalista, talvez não haja conceito mais importante para interpretar a crise atual do que o de capital fictício. Muitos autores têm considerado que, pelo menos desde o início dos anos 1980 do século passado, o capitalismo vive uma nova etapa, cujo tom é dado pela financeirização. Essa financeirização, produzida pelo crescimento desmesurado da riqueza financeira (frente ao crescimento da riqueza real), implica a submissão da totalidade do sistema econômico aos imperativos da lógica financeira da acumulação, o que garante a continuidade do crescimento dessa mesma riqueza. Ora, esse crescimento desmesurado simplesmente não existiria se não existisse o capital fictício. Quando o dinheiro é emprestado para que se o receba de volta aumentado, numa data futura, está implícita nessa transação a capacidade potencial que o dinheiro tem de se multiplicar. Essa capacidade é “verdadeira”, se esse dinheiro for dar uma voltinha no mundo da produção de bens e serviços, mas cria capital fictício quando, por meio de uma série de mecanismos, cuja explicação demandaria um espaço que não temos, ele não percorre esse caminho. A crise que agora presenciamos tem em seu bojo uma criação num grau inédito de capital fictício. Tudo seria mais simples se pudéssemos simplesmente eliminar esse capital, digamos assim, “espúrio”, penalizando apenas quem contribuiu para sua disseminação, conseguindo com isso colocar o sistema de volta num curso menos fantasmagórico. Mas isso está longe de ser simples, porque existem inúmeros fios nervosos ligando um sistema ao outro. O crédito para a produção e para o comércio é o mais importante e o mais visível desses fios.  
 
IHU On-Line - A partir das teorias de Marx, quais os rumos que podemos imaginar para o mundo capitalista, a partir da crise financeira internacional?

Leda Paulani - Esta pergunta está relacionada à anterior sobre a crise do sistema capitalista e sua resposta depende, em última instância, da forma como enxergamos o capitalismo hoje. Tem se falado muito que voltaremos a viver sob um capitalismo super regulado, como aquele vigente desde o fim da Segunda Guerra até meados dos anos 1970, que o capital financeiro perderá força, que o neoliberalismo morreu etc. Não acredito muito nessas previsões. Creio que o reinado financeiro ainda durará por um bom tempo, primeiro porque, por mais que a crise tenha debilitado essa poderosa riqueza financeira, ela ainda parece grande demais para deixar de impor seus requerimentos ao andamento material do planeta. Segundo, porque o que vivemos hoje é o resultado de um longo processo de financeirização, cujo desmonte não se dará assim do dia para a noite. Terceiro, porque, e esse talvez seja o argumento mais forte, ninguém sabe para onde vai o sistema monetário internacional, e esse processo todo – a financeirização e sua crise – é resultado, entre outras coisas, da (não) solução encontrada para a desarticulação do sistema de Bretton Woods.  
 
IHU On-Line - A crise financeira internacional representa o fim de um ciclo? Podemos aguardar uma mudança na condução do sistema financeiro internacional?

Leda Paulani - Se entendemos que a financeirização configurou um ciclo e se ao mesmo tempo acreditamos que esta crise marca o fim do predomínio do capital financeiro, então estamos autorizados a falar que esta crise marca o fim de um ciclo. Se pensarmos, porém, que a economia mundial vinha finalmente retomando um crescimento menos anêmico depois de décadas de resultados pobres, então não dá para acreditar em ciclo e teremos simplesmente que admitir que as estripulias financeiras destinadas a aumentar mais e mais a riqueza e o poder do capital financeiro atropelaram o ciclo que vinha firmemente engatando a marcha da subida.

IHU On-Line - Até que ponto a regulação do mercado proposta por Marx e Keynes permitirá que o mercado não se autodestrua?

Leda Paulani - Parece evidente que passaremos por um período de maior regulação, até porque isso acabará por se impor como exigência política. Contudo, se prevalecer, como imagino que prevalecerá, o poder do capital financeiro, essas crises abissais continuarão no horizonte, porque o capital financeiro é extremamente flexível e pródigo em invenções que escapam a qualquer regulação. Além disso, não podemos esquecer que vivemos uma fase do capitalismo em que o dinheiro e o poder estão muito próximos, particularmente por conta de ativos financeiros importantíssimos como os títulos da dívida pública, cujo volume é hoje enorme em praticamente todos os países. Passada a turbulência e o temor, essa proximidade impedirá que qualquer regulação mais efetiva se estabeleça.

IHU On-Line - A senhora acredita que a atual crise irá suscitar uma renovação política mundial? Em que sentido a senhora vislumbra mudanças?

Leda Paulani - Uma verdadeira renovação política mundial só aconteceria se a crise permitisse uma reorganização dos trabalhadores e dos movimentos sociais de modo geral e planetário, num processo que permitisse a construção de uma efetiva resistência a esse “fascismo do capital” que experimentamos há pelo menos um quarto de século. Infelizmente, creio que estamos muito longe de um cenário como esse. Ao contrário, me parece que a crise vai contribuir para vitaminar o discurso conservador (afinal, estamos numa situação de emergência!) e permitir a elevação do grau de exploração que possibilita, a um só tempo, enfrentar a tendência congênita deste tipo de capitalismo a sobreacumular capital, e gerar a renda real que coloca sempre ao alcance da mão a possibilidade de tornar absolutamente concretos, assim que se queira, os luxuosos desejos dos donos do capital fictício. Assim, se alguma mudança houver será talvez uma perda relativa de importância dos EUA, mas nada que altere o âmago do sistema capitalista e de sua reprodução tal como hoje se dá.

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>> Confira outras entrevistas concedidas por Leda Paulani. Acesse nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu

Entrevistas:

* “Só uma crise de grandes proporções mudará o rumo do governo”. Revista IHU On-Line número 125, de 29-11-2004;

* Lula. “Um governo muito amigo do capital produtivo e financeiro”. Notícias do Dia de 07-10-2007;

* “O PAC não se constitui num projeto para a economia do país”. Notícias do Dia de 29-02-2008;

* “O discurso neoliberal continuará impassível a desfiar os seus disparates”. Revista IHU On-Line número 276, de 06-10-2008, intitulada A crise financeira internacional. O retorno de Keynes.

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