Edição 277 | 14 Outubro 2008

Um pensamento inovador e incompreendido

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Márcia Junges

Filósofo inglês Robert Bernasconi analisa aspectos incompreendidos da obra levinasiana, além dos conceitos de paz e linguagem, bem como o perdão em Hegel e Lévinas e a questão da violência e do racismo

De acordo com o filósofo inglês Robert Bernasconi, o pensamento de Emmanuel Lévinas é um dos mais inovadores do século XX, porém um dos mais incompreendidos. Um dos grandes mal-entendidos que cercam suas idéias é de que ele seja “principalmente um filósofo de ética, considerando que ele é particularmente explícito em alguns lugares de que seja um filósofo do sagrado, ou, para usar outra palavra que também é importante para ele, um filósofo da transcendência”. No que diz respeito à conexão entre paz e linguagem, Bernasconi afirma: “Quando se pensa sobre linguagem em Lévinas, isso nem sempre significa fala. A linguagem inclui os silêncios. A face do Outro já fala comigo, me demanda algo que eu devo responder, antes de palavras ditas”.

Bernasconi leciona na Universidade de Memphis, Estados Unidos. É conhecido mundialmente por suas pesquisas sobre Heidegger e Lévinas, filosofia continental e teoria do racismo. Escreveu The Question of Language in Heidegger's History of Being (Atlantic Highlands: Humanities Press, 1985), Heidegger in Question: The Art of Existing (Atlantic Highlands: Humanities Press, 1993) e How to Read Sartre (New York: W. W. Norton, 2007). PhD pela Universidade de Sussex, Inglaterra, concedeu a entrevista a seguir por e-mail à IHU On-Line.

IHU On-Line - Quais são os aspectos inovadores do pensamento de Lévinas no contexto filosófico em que surgiu?

Robert Bernasconi - Considero que o pensamento de Lévinas está entre os mais inovadores do século XX e é por isso que acredito que ele está entre os mais incompreendidos, apesar da enxurrada de literatura de segunda que atualmente ameaça afogar sua originalidade. Talvez eu possa esclarecer melhor sua novidade listando alguns desses mal-entendidos, dessas incompreensões que servem para ocultar o que ele tem introduzido no discurso filosófico. O primeiro mal-entendido/incompreensão é que as pessoas pensam que ele seja primeiro e principalmente um filósofo de ética, considerando que ele é particularmente explícito em alguns lugares de que seja um filósofo do sagrado, ou, para usar outra palavra que também é importante para ele, um filósofo da transcendência. Todavia, é certo que Lévinas pensa a transcendência de uma forma fundamentalmente nova. Considerando que a transcendência é comumente pensada na filosofia ocidental no modelo da experiência mística, Lévinas acredita que não seja transcendência até que se esteja bem firme no ser. Essa tentativa de sair do ser, que é, no entanto, frustrada, é a estrutura formal que governa o pensamento de Lévinas e o conecta à tradição filosófica ocidental. É a concretização dessa estrutura formal que Lévinas localiza na relação ética, como um descentramento de si em favor do Outro, mas no qual a responsabilidade é retida por mim.

O segundo mal-entendido/incompreensão mais comum surge quando as pessoas dizem que quando Lévinas diz que ética, estaria rejeitando a ontologia. Entretanto a ontologia, como estudo do ser, tornou-se mais importante como um resultado dessa reorientação pois, para ser ético, não se pode abordar o Outro com as mãos vazias. Devemos enfrentar as necessidades do Outro. Para apelar à distinção com a qual Totalidade e Infinito abre, a distinção entre desejo e necessidade, Lévinas não abandona o nível da necessidade pelo do desejo como alguns leitores parecem pensar. Desejar o Outro é responder às suas necessidades.

Em terceiro lugar, isso significa que totalidade e infinito não são opostos. Lévinas localiza o infinito, essa relação com o Outro que excede o ser, na totalidade, e não além dela. É por isso que, em quarto lugar, Lévinas não separa política da ética: assim como a relação ética com o Outro age como um corretivo para o político ou burocrata que é cego para a singularidade dos indivíduos, a política corrige o ético, pois eles são sempre outros Outros. As demandas sobre mim são esmagadoras não apenas porque sejam sem limite, mas também porque sempre me colocam em conflitos insolúveis. Então, por exemplo, tenho que decidir a qual vou responder primeiro. Não pode nunca haver resposta definitiva a esta questão.

Radicalidade levinasiana

Posso seguir listando pontos a respeito do pensamento de Lévinas que penso que não estejam ainda completamente avaliados, mas deixe-me encerrar a resposta para esta questão destacando a radicalidade de Lévinas. Sua noção de responsabilidade é especialmente importante, pois é uma forma de deixar para trás todas as disputas sem sentido sobre se é trabalho meu ou de qualquer outro tomar conta de todo problema. A ética, de Aristóteles em diante, vem sendo considerada dentro de um modelo legal o qual fundamentalmente a destrói porque reduz a responsabilidade à prestação de contas. A ética, desde pelo menos o período moderno, tem largamente sido a respeito de estabelecer uma boa consciência, o que fundamentalmente é a tarefa da casuística, não da ética. Nada mostra tão claramente a originalidade de Lévinas quanto o fato de que ele está sempre tendo que brincar com o paradoxal ou, enquanto ele coloca isto de forma bastante enganadora, ir contra a “lógica formal”. A medida a qual Lévinas está disposto a estressar seu próprio pensamento ao limite  nunca é mais clara que quando ele percebe que, para sustentar a idéia do Outro radical que está sem identidade, a qual é, claro, a idéia fundamental de Totalidade e Infinito, ele conclui que se deve adotar a frase impossível, emprestada de Rimbaud,  “Eu  é um outro”. É isso que ele chama de substituição em Otherwise than being [ou Beyond Essence].

IHU On-Line - Como os conceitos paz e a linguagem se relacionam no pensamento de Lévinas?

Robert Bernasconi - Paz é às vezes associada ao silêncio, mas Lévinas consideraria essa associação como grega. Ele consideraria a paz hebraica, por contraste, como sendo uma interrupção da paz grega. É um choque que perturba, incomoda, desorienta. Da mesma forma, a paz é, para Lévinas, não adiada indefinidamente como em Kant, o qual é convencido muito facilmente de que o antagonismo é o caminho para atingir a paz. Todavia, quando se pensa sobre linguagem em Lévinas, isso nem sempre significa fala. A linguagem inclui os silêncios. A face do Outro já fala comigo, me demanda algo que eu devo responder, antes de palavras ditas. Mas talvez o aspecto mais profundo do pensamento de Lévinas sobre linguagem é sua distinção entre o dizer e o dito. Não é uma distinção comum, pois demarca dois níveis muito diferentes. Seus efeitos são deslocar o viés do filósofo para o conteúdo, o qual é tão visível naquilo que Heidegger tem a dizer sobre conversa fiada (Gerede),  em favor de palavras mais simples quando são realmente abordadas. Dizer “oi” a alguém, dizer “obrigado”, dizer “desculpe” - que na Inglaterra (mas não nos EUA) é uma maneira de pedir a atenção de alguém  -, pode ser profundamente significante. As conversas mais banais sobre o tempo, que podem ser conduzidas sem qualquer referência à realidade e devem até mesmo ser falsas pelos critérios dos filósofos, podem, em algumas ocasiões, fazer contato com alguém e levar paz àqueles que estão incomodados.

IHU On-Line - De que forma você analisa a possibilidade de reconciliação e perdão a partir de Hegel e Lévinas?

Robert Bernasconi - Há muitos anos eu escrevi sobre a estreita proximidade da idéia de Hegel de reconciliação e perdão no final do sexto capítulo de Fenomenologia do Espírito e algumas observações sobre perdão que Lévinas faz para o fim de Totalidade e Infinito. Não reli por um bom tempo aquilo que escrevi todos esses anos pois não gosto de ficar olhando para trás. Escrevo para deixar as coisas para trás e não para me amarrar ou permitir que outros me amarrem. É por isso que prefiro escrever palestras que se tornam artigos, do que livros. No entanto, suspeito que eu seria capaz de ser leal a muito do que escrevi nesse ensaio, mas acharia a orientação estranha. Estou mais convencido que nunca sobre a importância dessas páginas da Fenomenologia como uma das chaves para o livro e muito mais importante que a relação senhor-escravo. Mas embora eu pense que devemos continuar voltando a Hegel para aprender como pensar de outra forma que não a constrangida e rígida maneira que a filosofia analítica nos impôs e que Hegel nos ensina a como manter o movimento de pensar, suspeito mais do que nunca de que a maneira como ele pensa a dialética privilegia uma certa história. Em seu Lectures on Natural Right de 1817-18 Hegel escreve que nenhum povo sofreu injustamente inocentemente. Hegel é levado a esse ponto por sua tentativa de achar, na história, uma teodicéia, mas isso é imperdoável. A filosofia de Lévinas é sobre recontar à filosofia que esse tipo de coisa jamais deve ser dita e ele reconhece a necessidade de dizer que certas palavras e escrituras são imperdováveis. Não há traço disso em meu ensaio, que eu me lembre, mas tenho tentado compensar isto no meu mais recente trabalho.

IHU On-Line - Que traços de Lévinas podem ser encontrados em Derrida?

Robert Bernasconi - Por muitos anos planejei escrever um livro chamado Between Levinas and Derrida [Entre Lévinas e Derrida]. Quando falei isso para Lévinas, ele me desencorajou. Ele disse que não há diferença entre seu pensamento e o de Derrida. Na época – isso foi em meados dos anos 1980 – eu estava inclinado a concordar. Quando falei para Derrida o que Lévinas havia me dito, ele riu. Disse que Lévinas estava certo. Claro, não se deve levar essa história muito a sério e aqui está uma enorme diferença e essa era sua relação com Heidegger. Lévinas e Derrida dizem a mesma coisa (!), que é o impossível conjunto de equações ao qual fui confrontado. É claro, o clima intelectual mudou muito desde essa época; Derrida escreveu livros sobre o dom e sobre a hospitalidade, por exemplo, que são mais levinasianos que qualquer coisa que ele tenha escrito até então, então a necessidade agora é menos mostrar as similaridade do que clarear as diferenças. Há uma forte lógica que rege muito do pensamento de Derrida que é difícil de se resistir uma vez que se vê [a lógica] e que às vezes parece invadir a própria e muito distinta contribuição de Lévinas. Derrida mostra que a ética é tão excessiva que é impossível – e ainda assim acontece. Dessa forma ele mostra o quão excessiva a ética é. Para Lévinas a ética é também um excesso em sua forma, mas há mais ênfase também no quão mundana ela é. Permita-me colocar dessa forma: na medida em que o dom seja impossível, de acordo com Derrida, é porque as condições nunca podem ser preenchidas: há sempre algum retorno para o dom, nunca pode ser sem alguma troca, porquanto se seja consciente disso e não se pode dar nada sem transferir a propriedade. Por contraste, para Lévinas, se o dom é impossível, é porque o Outro não me possui. Em face da fome do Outro, esse pão não é mais meu. Naquela época eu poderia vir a dá-lo, não é mais algo que se liga a mim ou ao qual estou ligado.

IHU On-Line - Como a obra lévinasiana contribui para pensarmos a questão do racismo e da violência entre os povos?

Robert Bernasconi - Essa é uma questão difícil para mim porque por quase 20 anos muito do meu trabalho filosófico – e também meu trabalho na Universidade enquanto uma instituição – foi direcionada para abordar o racismo. Isso significa que vejo o racismo em toda sua complexidade. Em um nível Lévinas é tão poderoso como fonte/recurso quanto se pode encontrar em filosofia para abordar o racismo, até porque, como ele nos diz, sua vida foi dominada pelo anti-semitismo e sua filosofia surge dessa experiência.  É assim que devemos ver sua relação complexa com as questões de identidade, tanto a identidade pessoal quanto as identidades de grupo, embora eu não esteja totalmente convencido que ele negocie essa diferença entre elas com sucesso, uma vez que essa diferença se perde no vão entre seus escritos filosóficos e os assim chamados confessionais. Mas tenho outras preocupações mais importantes. Seu foco no anti-semitismo parece às vezes fazê-lo cego para os outros racismos e ele fez algumas observações a respeito dos negros que só se pode chamar de racistas. Lévinas não tem todas as respostas, assim como não as têm Sartre ou Fanon, mas quando se trata de abordar o racismo eu preferiria usar os recursos de todos os três do que de nenhum deles.

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