Edição 277 | 14 Outubro 2008

Inspiração levinasiana deve pautar o agir

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Márcia Junges

Para o filósofo Marcelo Pelizzoli, o que fazer na prática com as idéias de Emmanuel Lévinas é o que importa, mais do que apenas discutir conceitos em termos teóricos

“Que sentido tem estudar Lévinas ou Filosofia, mas continuar com os mesmos hábitos de consumo insustentável? Ou não fazendo uma real opção pelos pobres? Ou não trabalhando suas emoções que afetam os outros concretamente?”, questiona o filósofo Marcelo Pelizzoli, na entrevista que você confere a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, o que se faz com a inspiração levinasiana é o que realmente interessa. “A vida arrebenta com os conceitos. É preciso prová-la na sua crueza, bem embaixo do nosso nariz.”

Pelizzoli é coordenador do grupo de pesquisa e extensão em Cultura de Paz e professor do mestrado em Gestão e Política Ambiental na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Filosofia e especialista em Ciência Política, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), é mestre e doutor em Filosofia pela mesma instituição. Sua dissertação intitulou-se A relação do outro em Husserl e Lévinas e a tese Husserl, Heidegger e Lévinas – reconstrução da subjetividade pelo sentido da alteridade. É autor de A relação ao Outro em Husserl e Lévinas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994), A emergência do paradigma ecológico (Petrópolis: Vozes, 1999), Lévinas: a reconstrução da subjetividade (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002) e O eu e a diferença: Husserl e Heidegger (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002).

IHU On-Line - Como a obra de Lévinas contribui para a formação de uma Ciência e Cultura da Paz?

Marcelo Pelizzoli - Há obras e trechos mais específicos em Lévinas que são voltados a questões relativas a violências sofridas pelos oprimidos ou minorias. Na verdade, sua obra como um todo se refere a como evitar a hora da violência. No entanto, enquanto teoria/filosofia, é preciso um grande esforço de tradução da inspiração de Lévinas para a prática na nossa realidade pessoal, social, ambiental (neste ponto Lévinas ajuda pouco). Ou seja, você pode ler muito Lévinas (ou qualquer outro filósofo) e ficar só na teoria, só na especulação, mas não tomar nenhuma atitude prática pessoal, social e ambiental efetiva. Por isso, a obra em si não contribui muito, mas sim como conseguimos nos enfrentar com a realidade popular e cultural nossa e assim viver o desafio da nossa alteridade prática.

Muitas vezes, a filosofia é a racionalização intelectual daquilo que gostaríamos de fazer. Assim, se ficarmos apenas lendo, ou escrevendo ou falando para os outros, portanto, vira uma “masturbação intelectual”. A cultura de paz é uma ação, não uma filosofia acadêmica.

IHU On-Line - De que forma a ética da alteridade levinasiana alicerça os fundamentos da Bioética?

Marcelo Pelizzoli - Tenho me inspirado na alteridade levinasiana via Hans Jonas  para pensar problemas bioéticos, em conjunção com uma epistemologia hermenêutica aplicada, e dimensões do diálogo resolutivo de problemas e dilemas éticos, pois os casos com que lidamos são sempre difíceis, porque reais e específicos, caso a caso. Lévinas diretamente aqui também precisa ser traduzido, emendado, e serve como inspiração; já Jonas é muito mais específico, contemplando dilemas bioéticos e políticos que nos tocam mais de perto. O fundamento da justiça é o que mais interessa hoje na Bioética, em especial na dimensão ambiental que se liga direto à questão político-econômica. As bioéticas dependem igualmente das culturas vigentes.
 
IHU On-Line - Nesse sentido, o pensamento desse autor fundamenta uma postura de responsabilidade coletiva no cuidado ao meio ambiente, na emergência de uma ética ambiental? Por quê?

Marcelo Pelizzoli - Na minha avaliação, vejo dificuldades em aurir diretamente em Lévinas uma ética ambiental, apenas no sentido daquela inspiração de alteridade passando por outros autores como Jonas e pensadores/militantes locais que possam traduzir e aplicar efetivamente o emaranhado fenomenológico-metafísico de Lévinas. Ele serve para pensarmos que a questão ambiental é uma questão igualmente humana. Mas, dentro da sua visão judaica, o ambiente enquanto algo holístico, romântico, como a ecopsicologia trabalha, interligado, energia de interdependência, essa visão Lévinas tem medo e alergia. Isso faz com que precisemos corrigir Lévinas, pois gera um preconceito do próprio autor para com outras visões locais, como as indígenas, espirituais e tradicionais. Em meu livro Correntes da ética ambiental, defendo Lévinas em relação a isso. Hoje vejo que não podemos tapar o Sol com a peneira.
 
IHU On-Line - Como o conceito de alteridade se adéqua ao respeito pela natureza e pela vida humana?

Marcelo Pelizzoli - Apenas o conceito de alteridade não resolve nada, nem conceito algum. Este é o problema da filosofia, mesmo contemporânea. Às vezes, os professores de filosofia se prendem a conceitos e justificações de teorias e lutam entre elas e suas filigranas. Neste sentido, prefiro Lévinas e Heidegger na radicalidade. Il faut agir avant d´entendre , diz Lévinas; é o fim da filosofia, diz Heidegger. Quando isso ocorre, começamos a abandonar a especulação da alteridade, e começamos a agir. Isso provém sobremaneira de uma dimensão emocional e de vontade forte, ou seja, na mão dos filósofos racionalistas, ou da intelectualização, a ética vira engodo e desculpa, como diz Maturana.  Somente a prática e o desafio da alteridade fazem sentido. Isto está além inclusive da ética como entendemos na academia, e muito mais ainda do fetiche do conceito. A vida arrebenta com os conceitos. É preciso prová-la na sua crueza, bem embaixo do nosso nariz. Estamos no Brasil!

IHU On-Line - Qual é a relação estabelecida com o Outro em Husserl e Lévinas?

Marcelo Pelizzoli - Em Husserl, no fundo, o outro é como em Hegel: é um suporte necessário a um sistema teórico, parte de um mecanismo que compõe uma prisão mental capaz de falar e dialeticizar em cima da alteridade, justamente suprimindo-a sutilmente, totalizando e circunscrevendo a realidade vivida numa visão teórica ou ontológica de mundo. O inseto está preso dentro da lamparina. Qualquer tentativa de tirá-lo, que não seja a desconstrução deste esquema mental, é novo aprisionamento com outra roupagem. Isto tem sido a filosofia acadêmica. O Outro em Lévinas, quando restrito a trabalhos acadêmicos, teorias, contra-argumentações, livros e mais livros, segue o mesmo esquema. Ou seja, mesmo que Lévinas tenha tentado falar do Outro absoluto, o outro que quebra toda identidade e ontologia, o que se faz com a inspiração levinasiana é o que interessa. É muito profunda e intensa a teoria do Outro em Lévinas, mas ocorre que ela pode também, como toda Filosofia, servir de sublimação para a crise real que deve ser enfrentada. Que sentido tem estudar Lévinas ou Filosofia, mas continuar com os mesmos hábitos de consumo insustentável? Ou não fazendo uma real opção pelos pobres? Ou não trabalhando suas emoções que afetam os outros concretamente? Il faut agir avant d´entendre...

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