Edição 277 | 14 Outubro 2008

Religião, para Lévinas, é ética

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Márcia Junges

O agir no mundo é o que realmente importa, observa Simon Critchley, e não a crença ou não em Deus. Anarquismo ético é o tipo de ação política proposto pelo filósofo inglês, preconizando “novas formas de subjetividade radical política”

Na entrevista exclusiva a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo inglês Simon Critchley acentua que acreditar em Deus ou não é irrelevante. “O que importa é como agimos no mundo.” A afirmação analisa a forma como Lévinas compreende o conceito de religião. “Ele não quer dizer teologia, e não quer dizer crença em alguma deidade transcendente. Religião, para Lévinas, é ética e está promulgada em minha relação e serviço para com a outra pessoa.” Explicando o conceito de anarquismo político eticamente cometido, por ele próprio criado, Critchley esclarece que o “compromisso ético é um compromisso com a demanda do outro indivíduo, e essa demanda molda minha subjetividade e me impulsiona para a ação política. As formas específicas de política que defendo são um anarquismo ético, no qual a política consiste na criação de distância intersticial do Estado e na emergência de novas formas de subjetividade radical política”.

Radicado nos Estados Unidos, Critchley leciona desde 2004 na New School For Social Research, em Nova Iorque. Graduado em Filosofia pela Universidade de Essex, Inglaterra, e na Universidade de Nice, França, já lecionou em inúmeras instituições pelo mundo. De sua produção bibliográfica, citamos Re-Reading Levinas (Bloomington: Indiana University Press, 1991), editado com Robert Bernasconi, The Ethics of Deconstruction: Derrida and Levinas (2. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999) e Emmanuel Levinas: Basic Philosophical Writings (Bloomington: Indiana University Press, 1996), editado com Adriaan T. Peperzak e Robert Bernasconi.

IHU On-Line - O respeito pelo Outro proposto por Lévinas pode ser o fundamento para revitalizarmos a democracia hoje “colonizada” pela economia? Como fazer com que as decisões contingentes tomadas na política primem não apenas pelo “Eu”, mas também pelo “Outro”?

Simon Critchley - O que deve ser entendido em primeiro lugar é a fragilidade do empreendimento filosófico de Lévinas. A sua vida e trabalho são definidos pela memória do horror nazista e sua tentativa de pensar filosoficamente sobre a ética vem de um reconhecimento melancólico de que o mundo contemporâneo é definido por uma experiência de guerra, ambas – a guerra real e a guerra socioeconômica de crescente desigualdade. Em tal mundo, o auto-interesse e o auto-centrismo dominam. O trabalho de Lévinas tenta descrever uma relação com o outro, então deve questionar essa primazia do interesse pessoal e mostrar como a vida humana deve parecer se partirmos não de nós mesmos, mas do outro. Tal perspectiva deve ser capaz de revitalizar a democracia, como você sugere, mas isso requer um esforço político e ético de longo prazo.

IHU On-Line - Que elementos o pensamento lévinasiano nos fornece para compreender o niilismo crescente na sociedade contemporânea? A secularização da sociedade seria um dos elementos explicativos?

Simon Critchley - Nem o niilismo e nem a secularização são grandes temas do discurso de Lévinas, apesar de implicarem em muito daquilo que ele escreve. Contra o discurso niilista e neo-pagão a respeito da morte de Deus, Lévinas tenta defender a religião, mas é importante entender o que ele quer dizer com esse termo. Ele não quer dizer teologia, e não quer dizer crença em alguma deidade transcendente. Religião, para Lévinas, é ética e está promulgada em minha relação e serviço para com a outra pessoa. Crença ou descrença em Deus é irrelevante. O que importa é como agimos no mundo.

IHU On-Line - Como Derrida interpreta e formula a ética da desconstrução a partir de sua leitura de Lévinas? Essa ética pode ajudar a dar um sentido para o homem contemporâneo?

Simon Critchley - Derrida é o mais astuto e criticamente brilhante leitor de Lévinas. O que foi muito pouco entendido na medida em que a influência de Lévinas sobre Derrida é sobre o projeto de desconstrução. É minha visão, com a qual tenho argumentado por muitos anos, de que há uma motivação ética para a desconstrução, uma motivação de tipo muito levinasiano, a saber, a incondicionalidade da relação com o outro. Isso é o que permanece “indesconstrutível” em qualquer desconstrução. Isso é o que Derrida chama, muito simplesmente, de “justiça”.

IHU On-Line - O que significa o conceito de “anarquismo político eticamente cometido” (ethically committed political anarchism) que o senhor formulou? Essa idéia funciona como uma saída ao niilismo político que experimentamos no século XXI?

Simon Critchley - Tenho tentado encontrar uma resposta à sua pergunta, de forma mais ampla. Em meu livro Infinitely demanding. Ethics of commitment, politics of resistance (London & New York: Verso, 2007), argumento sobre uma experiência de compromisso ético que possa confrontar o que vejo como o déficit motivacional das sociedades liberal-democráticas contemporâneas, sociedades as quais oscilam entre o que chamo de niilismo ativo e passivo. Minha principal reivindicação, em Demandas infinitas, é que o compromisso ético é um compromisso com a demanda do outro indivíduo, e essa demanda molda minha subjetividade e me impulsiona para a ação política. As formas específicas de política que defendo são um anarquismo ético, no qual a política consiste na criação de distância intersticial do Estado e na emergência de novas formas de subjetividade radical política. Mais detalhadamente, falo a respeito de formas de política indigenista na América Latina e especificamente sobre o “Movimento dos Sem Terra” no Brasil como exemplos do tipo de políticas que quero endossar.

IHU On-Line - Que aproximações existem entre o conceito de “anarquismo político eticamente cometido” (ethically committed political anarchism) e a democracia radical de Ernesto Laclau  e Chantal Mouffe?

Simon Critchley - Fui colega de Ernesto Laclau por quase 20 anos na Universidade de Essex, somos amigos e tenho aprendido muito com ele ao longo dos anos. Basicamente, concordo com a crítica do marxismo clássico em Laclau e Mouffe e com sua concepção de política baseada no conceito de hegemonia de Gramsci.  No entanto, discordamos a respeito da relação entre ética e política. Mouffe quer manter a ética fora da política e Laclau adota uma visão da ética a qual critiquei em alguns lugares. No entanto, a tarefa de ligar a noção de compromisso ético a uma política radical tem de usar as ferramentas da abordagem de Laclau e Mouffe.

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