Edição 277 | 14 Outubro 2008

Uma resposta a Husserl, Heidegger e Buber

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Rafael Haddock-Lobo examina as influências dos três pensadores nas idéias de Lévinas e como este responde às suas filosofias

Ao mesmo tempo em que animam o pensamento levinasiano, as filosofias de Husserl e Heidegger são ultrapassadas pelo pensador lituano. De acordo com o filósofo brasileiro Rafael Haddock-Lobo, na entrevista exclusiva que concedeu por e-mail à IHU On-Line, a ruptura com os mestres não é tão simples quanto pode parecer. Lévinas está marcado em seus objetos e método por suas idéias. “Lévinas, ao longo de toda a sua obra, em certa medida esteve respondendo a Heidegger”. Martin Buber também exerceu grande influência sobre o corpus levinasiano: assumidamente leitor de Buber, Lévinas “parte dessa ontologia relacional rumo ao seu pensamento ético, onde não haveria mais lugar para a simetria e onde o eu, a consciência ou o sujeito passam a ser assimetricamente responsáveis pelo outro. E é essa ruptura com a simetria do diálogo que vai ser um dos pontos mais significativos da ética levinasiana: se, para Lévinas, Buber teria privilegiado o ‘eros’, ou seja, o amor entre duas pessoas, o que a ética deveria comportar é justamente a entrada do terceiro da relação: o filho, o próximo, o vizinho, e não mais apenas o ser amado, pois apenas a vinda do terceiro abre as portas para a justiça”.

Haddock-Lobo é graduado em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e em Letras pela Universidade Salgado de Oliveira. Cursou mestrado em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com a dissertação Da existência ao infinito: a redução ética no pensamento de Emmanuel Lévinas (Rio de Janeiro/São Paulo: Editora PUC-Rio/Editora Loyola, 2006). No doutorado, também pela PUC-Rio, elaborou a tese Por um pensamento úmido - A Filosofia a partir de Jacques Derrida. É pós-doutor em Filosofia, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor da Universidade de São Paulo (USP), da Casa do Saber e da PUC-Rio. É também autor de Derrida e o labirinto de inscrições (Porto Alegre: EdiPUCRS, 2007).

IHU On-Line - Por que Lévinas chega à conclusão de que a Ética é a filosofia primeira, e não a Ontologia? 

Rafael Haddock-Lobo - Uma questão muito antiga, que remonta a Aristóteles,  tenta pensar qual a filosofia primeira, ou seja, qual o saber fundamental entre todos os saberes. Para Aristóteles, seria a metafísica, para Husserl a fenomenologia, para Heidegger a ontologia. E é nesse contexto que Lévinas vem afirmar que o “impensado” até então, ou seja, aquilo sobre o que a filosofia não se debruçou dignamente, teria sido o outro. É nesse sentido que a ética levinasiana nada mais é, em seus termos, que a “relação com o outro”, e é isso que a filosofia deveria pensar primeiramente.

IHU On-Line - Em que sentido o primado do Ser desde a filosofia grega é substituído pela filosofia do Outro, que dá espaço à alteridade?  

Rafael Haddock-Lobo - Heidegger apontou como este “impensado” o Ser, ou seja, aquilo que faz com que todo ente seja o que ele é, o seu modo de ser. Por exemplo, se quando ouvimos falar que “o céu é azul”, sabemos muito bem o que é “céu” e o que é “azul”, mas este verbo ser ainda não teria sido devidamente pensado pela filosofia. Para Lévinas, esta radicalidade de pensamento de Heidegger afasta sua filosofia de todo ente, ou seja, de todo existente, em nome da existência, vazia e abstrata, do verbo ser. Nesse sentido, Heidegger seria o ponto mais alto da História da Filosofia. E é contra essa tradição que Lévinas quer mudar o eixo do pensamento rumo á ética, ou seja, ao existente.

IHU On-Line - O que é a redução ética em Lévinas? 

Rafael Haddock-Lobo - Husserl, ao inaugurar a sua Fenomenologia, buscava um retorno às coisas mesmas, ou seja, através de seu método, a époché ou redução, ter acesso ao fenômeno. Heidegger, em muitos aspectos, seguidor de Husserl, teria tentado fazer o pensamento voltar-se ao Ser, o que poderia ser caracterizado como uma “redução ontológica”. Foi nesse sentido que, em “Da existência ao existente: ensaios sobre Emmanuel Lévinas”, procurei caracterizar o pensamento levinasiano como uma espécie de “redução ética”, ou seja, com uma atitude fenomenológica que busca empreender um pensamento do outro.

IHU On-Line - Qual é o papel que Lévinas confere às mulheres na ética? 

Rafael Haddock-Lobo - Uma das grandes questões de Lévinas diz respeito à sua crítica à pretensa neutralidade do pensamento racional: filosófico e científico. Para ilustrar sua denúncia, ele toma a própria racionalidade alemã de sua época, a da filosofia e da ciência, e mostra como a razão pôde em diversos momentos ser conivente com o mal. Isso o surpreende e o faz questionar essa neutralidade. Não seria então ela certo disfarce do que, há séculos, vem se declarando neutro? O Homem, o sujeito, a consciência, o eu? Nesse sentido, o neutro nada mais é que o travestimento do masculino, do discurso dominante da história do pensamento. Então, apenas um pensamento que se deixe contaminar pelo feminino poderá, ao invés de ontologia, tornar-se ética e acolhimento. A figura da mulher, então, passa a ter um papel fundamental em seu pensamento, tornando-se a metáfora mesma do acolhimento do outro, necessário para que o terceiro chegue e, com isso, se alcance a justiça.

IHU On-Line - Qual é a influência de Dostoiévski e Proust  em seu pensamento? Quais são as convergências de seus modos de pensar o homem e sua relação com o semelhante? 

Rafael Haddock-Lobo - Você traz aqui dois momentos diferentes na formação do pensamento de Lévinas, mas ambos marcantes. Em diversos momentos, ele diz que em sua infância e juventude, os escritores russos teriam marcado sua história. De Dostoiévski, especificamente, mas também Tolstoi,  Lévinas vai herdar os aspectos mais trágicos de seu pensamento. Lembro aqui da paráfrase de Os irmãos Karamázov  que Lévinas faz em Humanismo do outro homem. Se o escritor russo dizia que todos somos culpados, e eu mais que todos, Lévinas vai dizer que todos somos responsáveis, e eu mais que todos.

Já Proust entra na vida de Lévinas no momento em que ele, aluno em Strasbourg, conhece seu grande amigo Maurice Blanchot. Blanchot o introduz na filosofia e na literatura francesa e, com isso, Bergson e Proust tornam-se pensadores que futuramente seriam decisivos para seu enfrentamento da ontologia: sobretudo no que diz respeito à sua relação com o tempo que, para Lévinas, não mais pode ser pensado como o tempo cronológico, objetivo, nem mais como o subjetivo. E nem como o neutro da ontologia, o da minha finitude, da minha mortalidade. O tempo é o tempo do outro.

IHU On-Line - Como Husserl e Heidegger influenciam Lévinas? E o pensador lituano quer dizer quando chama a atenção para a periculosidade do pensamento heideggeriano? 

Rafael Haddock-Lobo - Como disse acima, Husserl e Heidegger serão decisivos para Lévinas amadurecer sua fenomenologia. Ou seja, o modo como ele pretende trazer a alteridade para o pensamento. Isso começa em seus estudos sobre a teoria da intuição em Husserl, em seus tempos de Freiburg. Mas, desde lá, ele já afirma ter sido marcado por um professor muito cativante, chamado Heidegger. E é justamente por essa proximidade de Heidegger que Lévinas vai buscar, após o ano de 1933, mostrar a periculosidade de seu pensamento (e não do ser humano Heidegger). De como, como se viu, um pensamento de um grande filósofo pode, ainda que brevemente, estar associado ao mal. E isso, diz Lévinas, é um traço marcante de todo o pensamento (como no caso do ocidente) que se dedica à Totalidade.

IHU On-Line - Ainda que horrorizado pela filiação de Heidegger ao nacional-socialismo, Levinás menciona Sein und zeit como imprescritível. Como se dá a aproximação entre o fim da metafísica em Heidegger e o primado da alteridade em Lévinas? Podemos dizer que Heidegger seria a inspiração para a idéia de Outro em Lévinas? 

Rafael Haddock-Lobo - A relação com Heidegger, como se pode ver, é muito complicada: poderia arriscar aqui dizer que é ela que anima o pensamento levinasiano, tanto em suas heranças como em suas críticas. Lévinas parece herdar toda uma trilha heideggeriana em sua crítica à modernidade, mas pretende ultrapassá-lo no sentido de que ele ainda estaria inserido nesse mesmo pensamento do Todo, que aqui seria um sinônimo do Ser. Então, o outro, para ele, deveria ser a ruptura radical com esse primado do Mesmo rumo a uma outra forma de pensar.

IHU On-Line - Em que aspectos o discípulo supera e rompe com seus mestres? E por que o corpus levinasiano é uma resposta à filosofia de Heidegger? 

Rafael Haddock-Lobo - Essa ruptura, ainda que Lévinas a quisesse radical, nunca é tão simples assim. É claro que Lévinas estará marcado, não só quanto aos seus objetos, mas também quanto ao seu método, pelos mestres Husserl e Heidegger. Então essa ruptura se dá na herança – como toda ruptura. Nesse sentido, a palavra “resposta” é bem mais adequada. Lévinas, ao longo de toda a sua obra, em certa medida esteve respondendo a Heidegger. Seria, então, talvez sua grande motivação: o melhor e o pior do pensamento ocidental, seu ponto mais alto e mais baixo ao mesmo tempo. 

IHU On-Line - Que relações você estabeleceria entre Lévinas com Buber  e Derrida?

Rafael Haddock-Lobo - Essa pergunta é muito interessante, pois acabo de escrever um artigo sobre esses três autores, chamado “Percursos do outro: ontologia, ética e desconstrução” e que será publicado ainda este ano na coletânea Espectros de Derrida, organizada por Paulo Cesar Duque-Estrada.  Nesse artigo, eu parto do princípio de que um dos aspectos mais correntes das chamadas “éticas” de nosso tempo certamente tem sido a tematização da alteridade e a conseqüente preocupação com as “diferenças”. Entretanto, muito pouco tem sido feito para que, efetivamente, se abandone o substrato ontológico sobre o qual repousa a filosofia, a fim de que se pense a diferença em sua “diferencialidade mesma”, ou seja, a fim de que se pense o Outro como Outro, e não mais como uma sinonímia do Mesmo.  Assim, o que procuro aí desenvolver consiste no apontamento de um outro caminho, trilhado de modo não linear por Buber, Lévinas e Derrida. Inspirado pela obra Questões persistentes (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003), de Luiz Bicca , na qual o filósofo brasileiro afirma que Jacques Derrida seria herdeiro de uma certa “linhagem filosófica” que teria sido inaugurada por Buber e Lévinas, procurei percorrer a indicação destas trilhas.

Brevemente, diria que Buber, ainda preocupado com uma ontologia da relação, elege o diálogo como a autêntica substância relacional. Com isso, de modo único, ele começa a pensar a importância da simetria na relação entre eu e outro, visto que, na tradição filosófica, o privilégio sempre fora concedido ao eu, ao sujeito, à consciência etc. E, nesse intuito, Buber escreve uma das obras mais belas da filosofia: Eu e Tu.

Lévinas leitor de Buber 

Lévinas, assumidamente leitor de Buber, parte dessa ontologia relacional rumo ao seu pensamento ético, onde não haveria mais lugar para a simetria e onde o eu, a consciência ou o sujeito passam a ser assimetricamente responsáveis pelo outro. E é essa ruptura com a simetria do diálogo que vai ser um dos pontos mais significativos da ética levinasiana: se, para Lévinas, Buber teria privilegiado o “eros”, ou seja, o amor entre duas pessoas, o que a ética deveria comportar é justamente a entrada do terceiro da relação: o filho, o próximo, o vizinho, e não mais apenas o ser amado, pois apenas a vinda do terceiro abre as portas para a justiça. Derrida, então, herdeiro de ambos, tem já como pressuposto de sua desconstrução esta assimetria levinasiana. No entanto, seu gesto consiste em radicalizar a experiência levinasiana, levá-la a seus limites. Com isso, a relação com a alteridade no pensamento derridiano passa a dizer respeito a qualquer outro: outro ser humano, os animais, livros, pensamentos etc. Ou seja, a qualquer outro que se apresente a mim. Mas é bom sublinhar que isso que pode parecer uma superação entre esses três autores não se dá segundo nenhuma dialética. Não é um processo em que haja uma evolução nem algum tipo de progresso. Seria mais, meu ver, um crescente alargamento de horizontes ou de perspectivas. O que torna ainda muito necessária a leitura de Buber e Lévinas. O que está em jogo nesses três pensadores é uma experiência radical e absolutamente nova da alteridade.

 

 
Leia mais...

Rafael Haddock-Lobo já concedeu outras entrevistas à revista IHU On-Line. O material pode ser acessado através do sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu)

* A desconstrução em Heidegger, Lévinas e Derrida. Edição nº 187, de 03-07-2006;

* Lévinas: justiça à sua filosofia e a relação com Heidegger, Husserl e Derrida. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, em  31-08-2007.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição