Edição 275 | 29 Setembro 2008

“Democracia com racismo é impossível”

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Márcia Junges e Greyce Vargas

Lingüista Teun A. van Dijk acentua que há inúmeras semelhanças entre racismos praticados na América Latina e Estados Unidos, e que a versão benevolente e cordial brasileira é uma das formas de mitigar o problema. As questões discutidas a seguir foram inspiradas na obra Racismo e discurso na América Latina (São Paulo: Contexto, 2008), organizada por Van Dijk.

Para o lingüista holandês Teun A. van Dijk, precisamos encarar o racismo sem silêncio, mitigação e eufemismos. Esse é um problema de todos nós. Em sua opinião, é impossível falar em democracia enquanto existir racismo. “Para uma sociedade multicultural e multiétnica, a luta contra o racismo é uma condição crucial. É preciso escrever no jornal tanto sobre racismo como sobre terrorismo ou criminalidade. Racismo é terrorismo e criminalidade”, afirmou nesta entrevista, exclusiva, por e-mail à IHU On-Line. As questões discutidas a seguir foram inspiradas na obra Racismo e discurso na América Latina (São Paulo: Contexto, 2008), organizada por Van Dijk.

Van Dijk é professor da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, Espanha desde 1999. Licenciado na Universidade Livre de Amsterdã e na Universidade de Amsterdã, ambas na Holanda, é doutor por esta última. Foi editor-fundador das revistas Poetic, TEXT, Discourse & Society e Discourse Studies, sendo que ainda é editor destas duas últimas. É o idealizador do site www.racismos.org  e co-fundador e secretário geral da International Association for the Study of Racism (IASR). É autor de, entre outros, Communicating Racism. Ethnic Prejudice in Thought and Talk (Newbury Park, CA: Sage, 1987), Racism and the Press (London: Routledge, 1991) e Discourse and racism in Spain and Latin America (Amsterdam: Benjamins, 2005).

IHU On-Line - Quais são as maiores diferenças entre o racismo praticado na América Latina e nos EUA?

Teun A. van Dijk – Provavelmente, as semelhanças entre o racismo da América Latina e o racismo dos Estados Unidos são maiores dos que as diferenças. Ambos os racismos são praticados por europeus e seus descendentes; ambos têm suas raízes na exploração e opressão dos escravos africanos e consistem na marginalização e na dominação dos indígenas americanos. Na vida cotidiana, o racismo se baseia em uma ideologia racista, que assume a superioridade dos brancos e se manifesta em mil formas mais ou menos sutis de “racismo cotidiano”. Ou seja, se manifesta nas formas de discriminação, na marginalização e na problematização em todas as áreas da vida social, política e cultural. As (poucas) diferenças entre as duas formas de racismo também têm suas raízes históricas, como é o caso dos racismos na América Latina, como, por exemplo, o racismo contra os indígenas no México, na Guatemala e nos países andinos, e o racismo contra os afrodescendentes no Brasil.

Uma diferença entre os racismos nos Estados Unidos e América Latina tem como base a categorização absoluta entre negros e brancos nos Estados Unidos (“the one drop rule”), e uma categorização gradual e hierárquica na América Latina, como sabemos das dúzias de denominações para as diferentes graduações entre branco e negro no Brasil. Outra diferença é a conseqüência do Movimento de Direitos Civis nos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos, onde a resistência organizada contra o racismo tem contribuído para muitas mudanças na relação entre brancos e negros, os quais na América Latina se apresentaram muito mais tarde e de maneira mais indireta – como, no Brasil, depois da celebração de cem anos da Abolição da Escravatura, em 1988.

IHU On-Line - Quais são as práticas mais comuns desse racismo “benevolente” comum na América Latina?

Teun A. van Dijk – A benevolência – ou a cordialidade – do racismo na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, é um mito e uma das muitas formas de mitigação do racismo. Pode ser que nos Estados Unidos, pela segregação mais estrita entre os brancos e negros por a mestiçagem ser comum, os contatos diários entre brancos e os não-brancos na América Latina sejam mais comuns, e, portanto, parecem mais “cordiais” na perspectiva dos brancos – porque, nas casas dos brancos de classe média e alta na América Latina, a presença dos empregados e empregadas domésticos (as) afrodescendentes ou indígenas em vários níveis era e é até hoje em dia um fenômeno muito comum, como se fossem membros da família.

Mas essas formas de convivência diária entre brancos e afrodescendentes (ou indígenas) em nada implicava – nem implica hoje em dia – numa relação de poder, de exploração, e outras formas de dominação. Da mesma maneira que a vida cotidiana dos homens e mulheres na relação (também “cordial”) de casal ou de família. Hoje em dia, em muitos países da América Latina, os afrodescendentes às vezes têm menos direitos de fato e um trato discriminatório mais aberto do que nos Estados Unidos, onde talvez não tenha menos racismo, mas sim mais consciência do racismo entre os africanos americanos.

IHU On-Line - Existe diferença entre o racismo destinado aos índios e aos afrodescendentes?

Teun A. van Dijk – Outra vez prefiro enfatizar as semelhanças, e não as diferenças para analisarmos a vida cotidiana dos indígenas e afrodescendentes na América Latina. Trata-se da mesma base ideológica da superioridade dos brancos, das mesmas práticas cotidianas de discriminação, exploração, marginalização e problematização, com as mesmas conseqüências sociais, econômicas e culturais, que se manifesta, sobretudo, nas diferenças de empregos, salários, moradia, educação, saúde e falta de acesso ao discurso público. As diferenças existem, sobretudo nas situações de diferenças do tamanho dos grupos respectivos: comunidades indígenas muito pequenas no Brasil, Chile e Argentina e muito grandes no México, Guatemala, Bolívia e Peru. As atitudes nacionais sobre essas comunidades dependem muito da situação atual dessas comunidades – quase marginal e folclórico no Brasil, uma minoria rebelde no Chile e uma maioria, por fim, politicamente (mas não economicamente) em poder na Bolívia, depois de séculos de opressão e marginalização, mas já atacada pelos demais bolivianos (em geral não-indígenas).

IHU On-Line - Como é a situação do discurso racista no Brasil?

Teun A. van Dijk – É um discurso que tem mudado muito nas últimas décadas. Primeiro desde um discurso de pura hegemonia branca durante a Colônia e a legitimação da escravidão até o discurso sociológico da “democracia racial” em Casa-grande & senzala, mitigando o racismo, representando as relações étnicas vista a partir da perspectiva das elites brancas, e o “racismo cordial” da famosa encosta da Folha de S. Paulo. Foi somente com os discursos e outras atividades de resistência das comunidades negras, primeiro na área da cultura, mas depois também na política, que o discurso oficial começa a mudar, por exemplo, com o reconhecimento (sempre tímido) da existência do racismo no país, sobretudo a partir da celebração de cem anos de abolição da escravidão em 1988. Começa também a mudar a partir das mudanças legislativas com a Constituição daquele ano, que permitiu que o racismo fosse denunciado e, então, tratado pela justiça e por uma consciência oficial mais explícita sobre a discriminação cotidiana contra as comunidades de afrodescendentes.

No entanto, não é possível confundir essa dimensão, mais oficial e pública, com a situação na vida cotidiana, onde, para a maioria das pessoas afro-brasileiras, a situação apenas tem mudado, por exemplo, o campo da moradia, do trabalho, da educação, da saúde e das múltiplas formas de discriminação cotidiana. Um exemplo característico e interessante é a posição ferrenha de uma elite branca contra as “cotas” universitárias para estudantes afro-brasileiros. Uma vez que se toca nos privilégios dos brancos, evidentemente a motivação de criar uma sociedade igualitária é muito menor, sobretudo entre as elites.

IHU On-Line - Que caminhos surgem para superar o etnocentrismo que existe por trás do discurso racista?

Teun A. van Dijk – O racismo é um sistema social muito complexo de contaminação étnica, baseada em ideologias racistas, e se manifesta em múltiplas práticas de discriminação diária, incluindo o discurso. Mudar esse sistema – como também o sistema sexista de desigualdade de gênero – é um processo longo e difícil, porque tem se desenvolvido durante séculos. Suas manifestações persistem de todos os lados na cultura dominante do mundo inteiro – na história, na literatura, na arte, nos sistemas políticos, nas crenças e atitudes populares e nas ideologias dominantes – e suas manifestações nas práticas da vida cotidiana. Portanto, para uma mudança sistemática na política contra o racismo é preciso trabalhar muitos níveis e a partir de várias perspectivas, às vezes. A história mostra que uma das primeiras estratégias para forçar mudanças é por via normativa, primeiro pelas leis, pela constituição, pelas regras etc. – como foi o caso dos Estados Unidos. É preciso definir o que se considera manifestações de racismo, proibindo e deslegitimando todas com sanções claras.

Pode ser que isso, no entanto, não mude as profundas atitudes e ideologias das pessoas brancas, mas em geral essas tendem a seguir as mudanças forçadas pela lei: o racismo já não é algo normal e legítimo; é considerado um delito e politicamente incorreto. Segundo, é preciso programar essa normativa na gestão e nas práticas de todas as instituições e organizações – top down – coordenadas pelos líderes, diretores e pelas elites – na política, nos meios, nas escolas e universidades, pela justiça, pela polícia e pelas empresas. Por exemplo, nos livros de texto da escola, no livro de estilo da imprensa, nas instruções para a polícia e nos critérios para a avaliação das propostas de investigação da academia.

Terceiro, com essa mudança, é preciso transformar as práticas diárias de todos os participantes na política, nos meios, nas escolas, na polícia etc. – sempre com um controle e com sanções explícitas contra toda forma de racismo e reconhecimento de boas práticas. Isso é o que a comunidade branca precisa fazer. Mas sabemos que, em geral, não fazem sem a pressão, a análise e as ações permanentes das minorias.

IHU On-Line – O que é preciso fazer para acabar com o racismo?

Teun A. van Dijk – Para acabar com o racismo, é preciso começar a reconhecer que ele existe, que é uma realidade diária de milhões de pessoas. É preciso investigar, informar e educar – na política, na imprensa, na televisão, na escola, na universidade e em todos os discursos públicos. Isso é imprescindível para que ninguém possa dizer que “não sabia”. É preciso informar sobre a maneira que os afro-brasileiros e indígenas vivem o racismo cotidiano em mil situações e eventos. E, em vez de investigar e informar sobre os “outros” que discriminam, é preciso sempre começar por si mesmo: qual é a posição das minorias com nós em nossa casa, em nossa universidade, em nosso jornal, em nosso parlamento?

É preciso evitar o silêncio, a mitigação, a negação e os eufemismos sobre o racismo, como um problema não nosso, mas deles. Democracia com racismo é impossível. Para uma sociedade multicultural e multiétnica, a luta contra o racismo é uma condição crucial. É preciso escrever no jornal tanto sobre racismo como sobre terrorismo ou criminalidade. Racismo é terrorismo e criminalidade. É preciso fazer investigação, juízos, legislação. Somente quando eliminarmos o racismo, todos os cidadãos poderão participar completamente da vida cotidiana, da política, dos meios, das universidades, das escolas e das empresas. É um processo longo e difícil, mas essa é a alternativa para construirmos uma sociedade democrática.

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