Edição 270 | 25 Agosto 2008

Trabalho associado e ecologia: em busca de uma racionalidade ética, terna e democrática

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IHU Online

Para Telmo Adams, a ecologia tem ligação com a sustentabilidade, com uma compreensão sistêmica da vida num processo dinâmico de co-evolução

Trabalho associado e ecologia: em busca de uma racionalidade ética, terna e democrática é o tema da próxima edição do evento Encontros de Ética, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Quem irá explanar o tema é o professor Telmo Adams que, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line, afirmou que o trabalho associado tem como horizonte pelo menos três dimensões: participação igualitária e co-responsável na propriedade, na gestão e nos resultados, numa convivência respeitosa, solidária e cuidadosa com o socioambiente. Segundo ele, a principal finalidade de empreendimentos de trabalho associado é a cooperação em vista da satisfação das necessidades humanas fundamentais, onde os participantes exercem a liberdade e autonomia possível na criação e recriação de um mundo do trabalho com relações sociais de convivência solidárias. “Em todo trabalho, mesmo no individual e assalariado marcado por um maior ou menor grau de exploração, está presente algum tipo de associatividade. Mas o fato de todo trabalho ser social não elimina a exploração.”

Telmo Adams é educador com licenciatura plena em Filosofia, especialização em Pastoral Popular, especialização em Cooperativismo, com mestrado em Serviço Social (PUCRS) e Doutorado em Educação (Unisinos). Atualmente, é professor em cursos de especialização (Cooperativismo (Unisinos) e Gestão de Pessoas (Universidade Católica de Pelotas - UCPel), escritor, pesquisador e assessor nas áreas de políticas públicas, educação/formação em experiências de trabalho associado - Economia Popular Solidária, educação ambiental e metodologia de educação e pastoral popular.

IHU On-Line - Em seus estudos, o senhor afirma que, historicamente, era pelo trabalho que o ser humano construía sua identidade social e profissional. Hoje, que outros elementos atuam neste processo e de que forma interferem nas relações humanas?

Telmo Adams – O trabalho, no sentido amplo, continua a influenciar a identidade social e profissional, porém não mais como na forma tradicional. Para situar o tema, trago umas idéias introdutórias sobre os sentidos do trabalho que não se restringe à ação produtora de mercadorias, mas inclui igualmente todas as ações humanas que envolvem a vida individual e social. O trabalho humano congrega toda a atividade produtiva e criativa de bens materiais e imateriais, produzindo o próprio homem, a cultura. O ser humano produz a cultura que, por sua vez, exerce influência sobre ele, podendo tanto humanizá-lo como desumanizá-lo. Neste sentido, acredito que o trabalho como conjunto da atividade humana que assegura a sobrevivência da vida da espécie – seja no espaço individual ou coletivo, seja atividade remunerada ou outra para a manutenção da vida privada, bem como comunitária, social e cultural – continua, sim, desempenhando um papel mediador, um princípio educativo que constitui os sujeitos. Nos últimos anos, porém, outros fatores entraram em cena na experiência de vida em sociedade com as profundas transformações ocorridas no mundo do trabalho. Ou seja, o ser humano continua se constituindo, construindo sua identidade na experiência da vida, através do que ele faz. No entanto, a multiplicidade de influências sobre os sujeitos é composta por um leque cada vez mais extenso, sobretudo devido às novas tecnologias. Além, disso, influenciam, na formação identitária e nas relações humanas em geral, os ambientes complexos do mundo da vida, das relações sociais com concentração de aspectos favoráveis para a convivência e, ao mesmo tempo, pelo agrupamento de problemas e fragmentações provocadas pela violência humana, degradação social, ambiental e ética.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a redução do trabalho a um fator de produção, uma possível conseqüência do capitalismo? Além disso, como a relação entre produção e trabalho inviabiliza a emancipação humana e social?

Telmo Adams – No capitalismo, o trabalho é reduzido a fator de produção quando alguém compra e outros vendem a força de trabalho com a finalidade de produzir para o lucro. O dono dos meios de produção apropria-se dos frutos do trabalho separando o produto do seu produtor. E, como sabemos, na relação assalariada, a troca de trabalho por um salário, para a maioria dos “dos que vivem do trabalho”, significa uma precária condição de sobrevivência. Chegamos ao absurdo quando o trabalho passa a ser uma mercadoria, menos importante do que a máquina, o dinheiro. Em vez do ser humano, é o capital que ganha status de gente na medida em que a criação de produtos, como a tecnologia e a própria possibilidade de ser feliz são atribuídas a ele, isto é, ao capital. Portanto, reduzir o trabalho a fator de produção é reduzir o sujeito do trabalho a um mero instrumento de obtenção de lucro. No mercado de trabalho capitalista o trabalhador é levado a assumir o ônus da máxima produtividade, sendo “contratado” sem os direitos historicamente conquistados (13º salário, férias, INSS, FGTS, seguro desemprego) em meio a um ambiente de crescente competição. O pagamento do trabalho pelo contratante fica condicionado ao alcance do resultado mais lucrativo. O trabalhador, em condições de pressão, vive o desespero e a incerteza diante do futuro, auto-explorando-se nas 24 horas do dia para atingir metas cada vez mais exigentes. Ora, pode haver emancipação humana e social em tais situações degradantes? Se a emancipação humana e social significa a realização integral do ser humano, concluímos que a redução do trabalho a um fator de produção de lucro desvirtua o sentido ontológico do trabalho. De outro lado, a crescente hierarquização do mundo do trabalho diminui o número de trabalhadores que estão no topo da pirâmide e, conseqüentemente, amplia a massa dos marginalizados que são obrigados a encontrar quaisquer maneiras de reproduzirem suas vidas, em meio a todo tipo de precariedades, contradizendo a possibilidade do trabalho emancipador.

IHU On-Line - O senhor lançou a seguinte questão em sua pesquisa sobre trabalho associado: como se coloca o trabalho associado na complexidade do mundo do trabalho? Poderia nos responder a esta pergunta?

Telmo Adams – Em todo trabalho, mesmo no individual e assalariado marcado por um maior ou menor grau de exploração, está presente algum tipo de associatividade. Mas o fato de todo trabalho ser social não elimina a exploração. Senão vejamos: numa empresa capitalista, o trabalho se realiza coletivamente, com a participação de todos. Os resultados dessa produção coletiva são apropriados pelo seu proprietário e não pelos trabalhadores contratados (com ou sem vínculo legal). A designação trabalho associado  pressupõe um conjunto de ações de caráter associativo e solidário, como é o caso de empreendimentos produtivos afinados com os princípios da economia popular solidária. A finalidade de empreendimentos de trabalho associado é, em primeiro lugar, a cooperação em vista da satisfação das necessidades humanas fundamentais, onde os participantes exercem a liberdade e autonomia possível na criação e recriação de um mundo do trabalho com relações sociais de convivência solidárias. Distintamente da forma de trabalho capitalista, os trabalhadores associados articulam estrategicamente os fatores do trabalho e da solidariedade para que estes dêem a direção aos demais fatores de produção, dentro dos limites da lógica do mercado hegemônico. A finalidade mobilizadora é a partilha eqüitativa dos resultados do trabalho para o bem-viver .  O trabalho associado tem como horizonte pelo menos três dimensões: participação igualitária e co-responsável na propriedade, na gestão e nos resultados, numa convivência respeitosa, solidária e cuidadosa com o socioambiente. Como nenhuma economia se torna solidária só porque as pessoas são boas e generosas, o alcance destas metas acontece de forma variada de acordo com as condições estruturais de ordem socioeconômico-político e cultural. Depende igualmente, entre outros fatores, da capacidade de compreensão, organização e gestão do trabalho além da desenvoltura profissional dos sujeitos envolvidos. Nesta compreensão, o trabalho associado pode constituir-se no tensionamento de referência entre a produção capitalista hegemônica e a possibilidade da produção autogestionária. Mas assumir esta real ou potencial centralidade no movimento contra-hegemônico da sociedade não significa ausência de contradições. De um lado, há a subordinação à forma hegemônica de produção capitalista; de outro, a possibilidade de geração de uma nova sociabilidade, novos saberes, com a formação de um ethos da cultura do trabalho.

IHU On-Line - O senhor propõe um conceito de ecologia que promova a integração das dimensões biológica, cognitiva, social e ética da vida para enfrentar a crise civilizacional que hoje vivemos. Em que parâmetros tal conceito se alicerçaria? Estamos diante de alcançá-lo?

Telmo Adams – Acredito que estamos diante da possibilidade de assumir um caminho em direção a um outro paradigma civilizacional. Mas estamos longe de alcançá-lo. O conceito original de ecologia evoca uma crescente preocupação ética que implica uma relação de convivência com a natureza obedecendo à sua lógica interna, sempre na perspectiva de preservação. José Lutzenberger  definiu a ecologia como “ciência da sinfonia da vida”, como “ciência da sobrevivência”. A ecologia tem ligação com a sustentabilidade, com uma compreensão sistêmica da vida num processo dinâmico de co-evolução. Luiz Carlos Restrepo apela para o paradigma da ecoternura,  com um “chamado à ternura e à recuperação da sensibilidade”, abandonando a lógica da guerra contra a natureza e todas as formas de vida. Um novo paradigma em ascensão caracteriza-se pela “re-ligação, re-encantamento pela natureza” . Traz a marca da compaixão pelos que sofrem as conseqüências do paradigma crematístico, da ternura para com a vida e da pertença amorosa à mãe terra. A nova racionalidade cosmopolita poderá concretizar-se, mas possivelmente não sem o retorno a sentidos ontológicos que compreendem um “conjunto de princípios que condiciona transculturalmente o comportamento humano” . Martínez Alier  defende o ecologismo popular tendo como base de sua compreensão a possibilidade de uma economia mais ecológica, eqüitativa e solidária.  Tal perspectiva é favorecida em função de que as próprias contradições resultantes do paradigma produtivista e exploratório geram múltiplas reações por parte de um número crescente de pessoas, grupos humanos, organizações e instituições das sociedades.

IHU On-Line – Qual é a proposta do conceito de ecologia de saberes e em que medida ele está inserido no contexto social de cada sujeito?

Telmo Adams - Trata-se de uma ecologia que parte da singularidade do saber ecológico que é relacional e complexo . Conforme Boaventura de Sousa Santos , utilizo a ecologia de saberes com o sentido de dar consistência e legitimação epistemológica ao saber propositivo de caráter emancipatório. Ecologia assume a idéia de multiplicidade e de relações não destrutivas entre os agentes protagonistas das diferentes práticas. A idéia dessa ecologia pressupõe que a realidade não pode ser reduzida ao que existe e, por isso, inclui as realidades ausentes porque foram silenciadas, supressas ou marginalizadas. A ecologia de saberes visa a facilitar, em última instância, a constituição de sujeitos democráticos, individual e coletivamente, que sejam capazes de combinar a compreensão relacional dos fatos com crescente paixão e vontade de lutar contra a opressão, mas com humildade, característica da postura da pessoa aprendiz e educadora. A perspectiva da ecologia de saberes fundamenta-se na consciência de incompletude. Trata-se de uma construção solidária, não colonialista: saberes construídos sempre de maneira processual, histórica e coletiva.

IHU On-Line - De que forma trabalho e ecologia dialogam, na busca de  uma racionalidade ética, terna e democrática? Por que o senhor optou por abordar a associação trabalho-ecologia?

Telmo Adams - A ecologia de saberes propõe-se a assumir, em última análise, um horizonte ético e democrático que priorize a igualdade de oportunidades. O desafio está em ousar na reflexão histórico-crítica sobre os processos coletivos das organizações e lutas emancipatórias. As ecologias de saberes são construídas através de práticas sociais aonde o novo ethos terno e democrático vai se consolidando. O trabalho humano pode continuar corroborando para avançar no processo de depredação e degradação ambiental e social. Mas pode também colocar-se na perspectiva do paradigma do cuidado, estabelecendo novas relações de convivência dos trabalhadores entre si, fortalecendo a dimensão emancipadora, bem como a convivência terna com os demais seres existentes. Podemos assim concluir que há uma intrínseca relação entre trabalho e ecologia. O horizonte ético exige superar a formalidade insensível das relações utilitaristas na atual sociedade comprometendo-se com uma nova cultura solidária, terna e radicalmente democrática a ser cultivada, praticada em todos os ambientes da vida.

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