Edição 270 | 25 Agosto 2008

“A Igreja não pode estar desconectada do mundo”

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Graziela Wolfart e Márcia Junges

Ordenação de mulheres e homossexuais está no centro das discussões da Igreja Anglicana. Para o reverendo cônego Francisco Assis da Silva, que participou da Conferência de Lambeth, a Igreja precisa estar aberta à sociedade e suas mudanças

Em entrevista exclusiva, concedida por e-mail à IHU On-Line, o reverendo cônego Francisco de Assis da Silva, secretário-geral da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, sediada em Porto Alegre, enfatizou que “o caráter de um cristão ou uma cristã não é única e exclusivamente determinado pela sua opção sexual”. Para ele, o debate sobre a ordenação de clérigos de orientação homossexual, exacerbado sobretudo na recente Conferência de Lambeth,  vem sendo levantado em “sociedades do Primeiro Mundo até como reflexo da evolução da cultura e da legislação desses países em relação aos direitos civis dessas pessoas. A Igreja não pode estar desconectada do mundo e da sociedade que a cerca. Excluir pessoas do ministério da Igreja por razões de gênero e opção sexual é assumir o risco de que Deus prefere a uns e a outros não”.

Silva acentua que tanto o movimento feminista quanto o gay possuem hoje visibilidade cultural e política irreversíveis. “Para as sociedades onde os padrões ainda são regidos por um forte androcentrismo, essa questão se torna difícil de assimilar. Como a leitura da Escritura é mediada culturalmente, tornam-se inevitáveis essas diferenças teológicas”. É o caso do argumento impeditivo para a ordenação de homossexuais.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a Conferência de Lambeth de forma geral? Quais as principais controvérsias atuais da comunhão anglicana que apareceram no encontro?

Francisco Silva - A Conferência foi um grande momento de nossa Comunhão. Penso que o método usado, enfatizando mais a partilha que deliberações ou construção de resoluções, ajudou muito aos 670 bispos presentes a priorizarem o chamado processo de escuta, que vem ocorrendo dentro da Igreja.

O retiro inicial, liderado pelo Arcebispo de Cantuária,  enfatizando o ministério dos bispos e suas responsabilidades, também teve um efeito muito grande sobre o que ocorreu a seguir. Nada melhor do que os bispos entenderem com mais clareza os desafios de seu próprio ministério para que as discussões em torno de temas teológicos e éticos se tornem mais sinceras e humildes.
Houve também uma intensa atividade litúrgica e devocional, bem como estudos bíblicos diários, aproximando mais e mais as pessoas entre si e criando uma atmosfera de confiança e mútuo respeito. Assim, as grandes controvérsias que se tem hoje dentro da Igreja puderam ser enfrentadas com maturidade e sincera atitude de escuta.

Campo minado

Basicamente, se tem hoje controvérsias em torno de ordenação de pessoas de orientação homossexual, em torno das bênçãos para casais de mesmo sexo e, ainda em alguns círculos, uma resistência à ordenação de mulheres ao episcopado. A maneira como alguns bispos e arcebispos têm agido nesse campo minado tem criado tensões através da violação da autonomia das Províncias por bispos conservadores, que alegam ser necessário atender pastoralmente as pessoas que divergem de orientações mais liberais. Isso tem afetado as relações entre as Províncias, e a Conferência acabou sendo também um espaço para se conversar francamente sobre isso.

A nota destoante foi o não comparecimento de cerca de 230 bispos conservadores que alegaram estarem descontentes com as posições liberais de algumas Províncias e, dessa forma, não puderam conversar francamente com seus pares. Houve perda de oportunidade para se avançar na busca de mais consenso em torno dessas questões.

IHU On-Line – Qual o significado e a importância do debate em torno da ordenação de mulheres ao sacerdócio e ao episcopado e em relação aos padres homossexuais? Qual a fundamentação bíblica e a argumentação teológica que respaldam essa postura?

Francisco Silva - O significado é imensurável. Primeiro porque as mulheres constituem, sem dúvida, a maior fração de pessoas comprometidas com a Igreja onde quer que ela esteja. Segundo porque, contrariamente a uma leitura simplista da Escritura, as mulheres foram importantes protagonistas do ministério da Igreja, mesmo não sendo elas reconhecidas pelos seus contemporâneos como chamadas para ser apóstolos. A própria teologia paulina – apontado por alguns como machista – estabelece que não existe diferença nem preferência de Deus, em Cristo, na relação com seu povo. Outro aspecto a considerar é que tanto o homem como a mulher são iguais no pecado e iguais na graça, não havendo razão lógica nenhuma para excluir por razões de gênero qualquer batizado de exercer plenamente seu ministério na Igreja. Isso inclui o acesso ao sacerdócio.

Questões hermenêuticas

Em relação aos clérigos e clérigas de orientação homoafetiva, a questão é mais complexa. Envolve valores estabelecidos culturalmente em relação a algo muito forte no inconsciente das pessoas e gera sempre muita tensão. O grande argumento para os que levantam a inaceitabilidade da ordenação de homossexuais é de razão escriturística. A homossexualidade está definida em alguns textos explicitamente como pecado. A crítica bíblica e a percepção dos contextos onde foram escritas as explícitas condenações ao homossexualismo trazem à tona a questão da hermenêutica. E é em torno dessa disputa que hoje a Comunhão Anglicana tem seu maior desafio. A questão da ordenação feminina ainda persiste – veja o exemplo de um grupo de clérigos da Igreja da Inglaterra que ameaçam voltar para Roma por causa da autorização sinodal de que as mulheres também podem ser bispas. Recordo-me que, em 1994, quando a Igreja da Inglaterra ordenou suas primeiras 32 presbíteras, um grupo de aproximadamente uma centena de clérigos conservadores saiu da Igreja.
A questão dos clérigos de orientação homossexual tem sido levantada em sociedades do Primeiro Mundo até como reflexo da evolução da cultura e da legislação desses países em relação aos direitos civis dessas pessoas. A Igreja não pode estar desconectada do mundo e da sociedade que a cerca. Excluir pessoas do ministério da Igreja por razões de gênero e opção sexual é assumir o risco de que Deus prefere a uns e a outros não.

IHU On-Line – Quais os principais impactos que os temas da sexualidade e da ordenação de mulheres provocam na igreja anglicana pelo mundo, como no continente africano, por exemplo?

Francisco Silva - O grande impacto causado pelas questões da sexualidade e da ordenação feminina é o choque com culturas onde tradicionalmente as mulheres e as minorias estão excluídas dos processos de poder. Sociedades que ainda mantém laços muito fortes com ancestralidades têm experimentado dificuldades de modernização. Praticamente o mundo saxônico e/ou latino espalhado pela Europa e Américas têm avançado na inclusão de segmentos femininos e gays num compasso que inclui avanço no campo de direitos e no campo cultural. Isso tem impacto imediato na vida das Igrejas desses países. Os movimentos feminista e gay adquiriram visibilidade cultural e política que são irreversíveis. Para as sociedades onde os padrões ainda são regidos por um forte androcentrismo, essa questão se torna difícil de assimilar. Como a leitura da Escritura é mediada culturalmente, tornam-se inevitáveis essas diferenças teológicas. Outro corte que pode ser feito é um tipo de leitura norte x sul que alguns conservadores querem construir, opondo colonialistas e colonizados. Isso provoca uma disputa de quem detém com mais pureza a ortodoxia da fé cristã.
 
IHU On-Line – Qual a importância do pronunciamento do cardeal Walter Kasper,  na Conferência para a promoção da unidade dos cristãos?

Francisco Silva - O cardeal Kasper tem tido um papel muito importante na superação de algumas dificuldades que enfrentamos nas relações anglicano-católico-romanas. Sua tarefa como Prefeito do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos é promover o diálogo entre as confissões cristãs. Sua declaração a respeito do cardeal Newman  – bispo anglicano que liderou o chamado Movimento de Oxford e depois foi recebido pela Igreja Católica Romana – causou algumas interpretações equivocadas. Parece-me que devemos fazer uma leitura positiva de sua fala. Newman foi responsável pelo despertar de uma espiritualidade mais católica dentro da tradição anglicana. Isso, no entanto, não significa uniformidade na maneira de as Igrejas cristãs encararem todos os aspectos de sua eclesiologia. As Igrejas, exatamente por terem suas diferenças, são chamadas a dialogar e, nessa questão, anglicanos e católicos romanos estão já há mais de 40 anos, enfatizando os pontos de comum entendimento e amadurecendo a mútua compreensão nos pontos de diferente entendimento.

IHU On-Line – Como o senhor caracteriza a relação entre católicos e anglicanos? Em que medida as discussões da Conferência de Lambeth impactam na relação com a Igreja Católica e na Igreja Católica em si?

Francisco Silva - Como decorrência da pergunta anterior, reafirmo que onde há uniformidade não há razão para diálogo. Eu penso que as relações entre anglicanos e católico-romanos estão cada vez mais alicerçadas em inúmeros pontos comuns e em ações comuns. Nossa presença e partilha em Conselhos Ecumênicos e a manutenção de diálogos bilaterais no mundo inteiro – a exemplo do Brasil como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Basil (CONIC) e Comissão Nacional Anglicano-Católico-Romana (CONAC) – demonstram que estamos no caminho. Assim como os discípulos no caminho de Emaús, estamos em um aprendizado.

Reconhecemos a riqueza de nossas tradições e de como elas estão intrinsecamente ligadas. As relações entre o Papa e o arcebispo de Cantuária têm sido de mútua escuta e oração. O que mais desejamos? Recentemente, aqui no Brasil, as duas Igrejas assinaram um comum reconhecimento de batismo junto com outras Igrejas históricas. Estamos nos preparando para a terceira Campanha da Fraternidade Ecumênica a ser realizada em 2010, cujo tema é “Economia e Vida”. Agimos juntos na defesa dos direitos à dignidade humana em diversas organizações. 

Com relação à Conferência de Lambeth, ficou evidente o respeito, o carinho e a escuta de inúmeras outras tradições cristãs, inclusive de representantes da própria Igreja Católica Romana. Na mensagem final da Conferência, foi dito que tudo o que discutimos e tudo o que consensuamos como representando nosso sentimento como liderança de uma Igreja o oferecíamos humildemente à consideração dos irmãos e irmãs de outras famílias cristãs. Dessa forma, vejo que galgamos mais um degrau da nossa busca da unidade. E, se algumas de nossas particularidades não são tão naturalmente aceitas, o mínimo que podemos fazer é continuar buscando uma melhor compreensão.
 
IHU On-Line – Em relação aos padres homossexuais, como se vive essa questão nas paróquias? Como os fiéis reagem?

Francisco Silva - Eu tenho visto muitos exemplos de comunidades que não estão com suas idéias fixas a respeito de como as pessoas encaram, vivem e administram sua sexualidade. O caráter de um cristão ou uma cristã não é única e exclusivamente determinado pela sua opção sexual. Conhecemos muitas pessoas que vivem sua afetividade inspirada em valores que são indiscutíveis e recomendáveis do ponto de vista ético: amor, respeito e compromisso. Como a questão da sexualidade afeta níveis de nosso ser que têm raízes no mais profundo inconsciente, é lógico que há diferentes maneiras de os fiéis encararem a questão de padres e/ou reverendos homossexuais. Dentro da própria Igreja Anglicana, podemos encontrar desde uma postura de natural aceitação dessa realidade até uma completa e incômoda rejeição.  Mais que uma ponderação, eu gostaria de citar um exemplo que ouvi com meus próprios ouvidos na Paróquia Anglicana de Novo Hamburgo, onde fui pároco recentemente.

Quando saiu a notícia de que fora eleito e consagrado um bispo gay nos Estados Unidos, Gene Robinson, de New Hampshire, consagrado em 2003, em uma reunião de junta paroquial, um leigo já avançado em dias e com uma fé digna de registro no meio da comunidade disse assim: “Se o povo e o clero dessa diocese elegeram essa pessoa para ser bispo, é porque mérito ele tem!”. Eu mesmo fiquei impressionado por esse testemunho, pois até para mim aquela situação se mostrava difícil pelas conseqüências que aquela escolha poderia causar (e que causou efetivamente) dentro da Comunhão Anglicana. Essa tem sido a postura da maioria das pessoas dentro das paróquias anglicanas em nosso país. Conheço reverendos e reverendas que têm realizado um frutífero ministério junto às comunidades, como excelentes teólogos e pastores, e nos quais a questão da sexualidade é administrada com muito respeito e através de um excelente testemunho.

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