Edição 262 | 16 Junho 2008

Um estilo marcado pela ironia

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André Dick e Graziela Wolfart

Para John Gledson, o nacionalismo machadiano é, ao mesmo tempo, profundo e relativo, pois ele vê todas as pragas brasileiras e o profundo efeito que tinham e têm sobre o país, mas sentia uma profunda ligação com ele, com as suas próprias raízes

“Todo mundo concorda que Machado é um poeta razoável, às vezes interessante, às vezes até comovente. E se disséssemos que o verdadeiro talento dele na poesia é – como na prosa – a ironia, a sátira?”, provoca o pesquisador britânico John Gledson, em entrevista por e-mail para a IHU On-Line. E ele explica sua posição: “Para começar, leiam as crônicas da Gazeta de Holanda, de 1886 a 1888. Em seguida leiam uma pequena maravilha cômica, ‘Antes da missa’, de 1878. E por aí vai. Machado era grande admirador dos poetas satíricos portugueses do século XVIII”, cita, na tentativa de apontar uma possível influência.
John Gledson é docente no Departamento de Estudos Hispânicos da Universidade de Liverpool, Inglaterra. Especialista em Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, Gledson é graduado em inglês, pela Loretto School, e mestre em Literatura Hispânica, pela Universidade de St. Andrews, ambas instituições na Escócia. Cursou também mestrado e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. É autor de, entre outros, Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade (São Paulo: Duas Cidades, 1981), Machado de Assis: ficção e História (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986), Machado de Assis: impostura e realismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1990) e Por um novo Machado de Assis (São Paulo: Companhia das Letras, 2006)

IHU On-Line - Que elementos o senhor destacaria no estilo narrativo adotado por Machado em romances e contos? Esse estilo é plenamente adaptado às suas crônicas, ou o autor se difere claramente em cada gênero que escreve?

John Gledson - Sobretudo, destacaria o óbvio, que nem sempre é tão óbvio, a ironia. Uma ironia de um certo tipo difícil de definir, mas que eu diria que se distingue sobretudo pela sua abrangência, invade o estilo machadiano desde um certo momento da sua carreira (o fim dos anos 1870). Demonstraria essa abrangência pelo fato de que muitas obras já estão calcadas numa ironia total – isto é, desde o começo, às vezes incluído o próprio título (veja Dom Casmurro), nada escapa. Um aspecto curioso disso é ver como ele sistematicamente elimina coisas preliminares ou marginais que poderiam dar a dica ao leitor (uma passagem introdutória de “Na arca”, por exemplo, ou uma epígrafe de Memórias póstumas de Brás Cubas). A outra coisa está noutro nível, em certas maneiras de falar, que podem até parecer abusar do leitor, que dizem o completo, o absoluto oposto do que o autor pensa. Por exemplo: “O que me encanta na humanidade é a perfeição”.
 
IHU On-Line - Ultimamente, Machado vem sendo recuperado como poeta, inclusive com o relançamento de toda sua obra em verso. Haveria qualidade na poesia dele capaz de se equivaler à sua prosa, sendo o senhor um especialista também em Drummond?

John Gledson - Tenho uma opinião um pouco heterodoxa e arriscada, mas que eu acho faz sentido, até é um pouco óbvia quando pensamos. Todo mundo concorda (muitas vezes acontece isto, uma opinião generalizada e até petrificada, como nos mostrou João Roberto Faria acerca do teatro, onde todo mundo repete uma frase de Quintino Bocaiúva, que disse que era um teatro para ser lido e não representado) que Machado é um poeta razoável, às vezes interessante, às vezes até comovente (o soneto a Carolina, novamente todo mundo diz...). E se disséssemos que o verdadeiro talento dele na poesia é – como na prosa – a ironia, a sátira? Para começar, leiam as crônicas da “Gazeta de Holanda”, de 1886 a 1888. Em seguida leiam uma pequena maravilha cômica, “Antes da missa”, de 1878. E por aí vai. Machado era grande admirador dos poetas satíricos portugueses do século XVIII: Bocage,  Tolentino,  O Hissope.
 
IHU On-Line - Cabe ainda a divisão, na obra de Machado, entre as fases romântica e realista, ou ela é necessária apenas para os estudiosos de literatura?

John Gledson - Claro que cabe, na condição de que os próprios termos não sejam tomados muito a sério. Notem que romântico e realista não são opostos, apenas não se definem nos mesmos termos. O que há, e isso sim existe, é uma mudança mais ou menos súbita no fim da década de 1870, que é a mesma que tentei definir quando falei de ironia. De “Na arca” e Brás Cubas em diante, sente-se, sim, que Machado está lidando com a realidade – com ironia, senão não podia lidar com ela de jeito nenhum, daí os vários tipos de narração presentes nos romances pós-1880, nenhum dos quais é tradicional. Veja que já relativizei a palavra “realismo” – admirador que foi, de Balzac,  de Flaubert,  de Stendhal,  de Mérimée, de Dickens,  é diferente deles. Se é útil definir a obra anterior a 1880 como romântico, não sei, sinceramente. É e não é.
 
IHU On-Line - O senhor já afirmou que Machado, em suas crônicas, tem um gosto dissimulado, mas excepcional, pela história. É possível estabelecer vínculos diretos entre suas obras - contos, peças de teatro, romances, crônicas - e a história do Brasil? Em que livros ou crônicas isso, a seu ver, se destacaria?

John Gledson - Tentei demonstrar nos casos dos romances e de alguns contos que essas relações existem, em meus três livros sobre Machado, Machado de Assis: ficção e história, Machado de Assis: impostura e realismo, e por último, Por um novo Machado de Assis, onde há dois ensaios sobre os contos que vão nesse sentido, e dois ou três sobre as crônicas. As relações com a história diferem, é óbvio, segundo o gênero. Quando uma das revistas em que escrevia crônica cada duas semanas passou a ser mensal, disse que “um fato de trinta dias pertence à história, não à crônica.” O interesse na história cresceu ao longo da sua carreira, e chega a um ápice em “Bons Dias!” e “A Semana”, pelo menos nos primeiros dois, que editei. Não esmorece também no fim – veja Memorial de Aires, uma denúncia (oculta) da irresponsabilidade das classes superiores, tanto quanto Memórias póstumas de Brás Cubas.
 
IHU On-Line - Qual é a importância, na sua visão, de um texto como “Instinto de nacionalidade”, sobretudo numa época em que a idéia de nacionalismo está cada vez mais presente em diversas culturas?

John Gledson - Diria que o nacionalismo machadiano, nesse textos e noutros lugares, é ao mesmo tempo profundo e relativo. Quero dizer, ele vê todas as pragas brasileiras e o profundo efeito que tinham e têm sobre o país – sabe que não basta queimar alguns documentos, ou passar uma lei, para eliminar a escravidão do país. Ao mesmo tempo, ele é brasileiro, situa a esmagadora maioria dos seus escritos no Brasil (com importantes exceções, como muitos contos de Papéis avulsos), porque só pode ver a humanidade através desse prisma, e evidentemente, amava o seu país, sentia uma profunda ligação com ele, com as suas próprias raízes. Tinha algumas idéias interessantes e heterodoxas sobre o Brasil; Numa das suas últimas cartas, por exemplo, diz que um grande problema do país é seu tamanho, que outros (como Afonso Celso, em Porque me ufano do meu país) vêem como vantagem.

IHU On-Line - E, ainda, Machado é muito lido em língua inglesa?

John Gledson - Seria hipocrisia dizer que Machado é muito lido pelo menos na Inglaterra – a única prova que posso dar é a quase ausência dele das livrarias, mesmo as melhores. Nos Estados Unidos, pode ser que a situação seja um pouco melhor, mas, se for, é um fenômeno recente, porque num excelente ensaio de uns dez anos atrás, Daphne Patai diz que os livros não vendiam. Agora vai sair uma nova antologia dos contos, que eu traduzi, sob o título de A chapter of hats, pela Bloomsbury, uma excelente editora. Tomara que mude um pouco esta situação lamentável.

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