Edição 262 | 16 Junho 2008

O fundador da prosa moderna brasileira

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André Dick e Graziela Wolfart

Um dos biógrafos de Machado de Assis, Daniel Piza constata: “Machado era profundamente brasileiro”

Ao falar sobre a figura contraditória e complexa de Machado de Assis, “como a de todo grande indivíduo”, o jornalista Daniel Piza, em entrevista por e-mail à IHU On-Line afirma que “ele era um homem reservado, mas não recluso; pessimista, mas não mal humorado; ambicioso, mas não cínico. Eis o fascínio do personagem”. Piza estudou Direito na USP e começou sua carreira como jornalista no jornal O Estado de S. Paulo em 1991, onde foi repórter do Caderno2 e editor-assistente do Cultura. Trabalhou, em seguida, na Folha de S. Paulo, de 1992 a 1995, como redator, repórter e editor-assistente da Ilustrada, cobrindo especialmente as áreas de livros e artes plásticas. Foi editor e colunista do caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil de 1995 a 2000, quando retornou ao Estado como editor-executivo e colunista cultural. Colabora com a revista Continente Multicultural, entre outras, e é comentarista do canal Globo News e da rádio CBN. Traduziu oito livros, de autores como Herman Melville e Henry James, e organizou seis outros, nas áreas de jornalismo cultural e literatura brasileira. Publicou quatorze obras: quatro coletâneas, um romance juvenil, um infantil, dois perfis, cinco ensaios e a biografia de Machado de Assis, intitulada Machado de Assis - Um gênio brasileiro (São Paulo: Imprensa Oficial, 2005). Seu site é www.danielpiza.com.br.

IHU On-Line - No seu livro Machado de Assis - Um gênio brasileiro, você utiliza o conceito de “gênio”, ligado ao romantismo. É possível separar Machado de suas influências da literatura francesa, por exemplo, e torná-lo um autor independente de uma tradição que o antecede? Que elementos, na sua opinião, tornam Machado um “gênio”? 

Daniel Piza - Não uso o termo num sentido romântico. Digo com todas as letras que gênio não é um tipo de pessoa, mas o autor de uma obra de gênio. É a obra que é genial, por suas complexidades e sutilezas que transcendem sua época. Veja como Machado está sendo celebrado e, mais importante, relido neste centenário de morte. Ele não teve apenas influências francesas, teve as britânicas (Shakespeare , Sterne ) e alemãs (Schopenhauer ), para não falar das brasileiras (José de Alencar ), de Cervantes  e de Leopardi . O que fez foi retrabalhar essas influências até produzir um estilo original, que vai além de uma combinação delas. E funda a prosa moderna brasileira.
 
IHU On-Line – Sabemos que você lê Machado de Assis desde os 14 anos. Poderia contar a partir de que livros e elementos você começou a compor sua biografia do escritor? Teve influência direta de alguma biografia anteriormente escrita ou de análises críticas sobre o escritor?

Daniel Piza - Gosto muito do livro de Raymundo Faoro  sobre Machado, A pirâmide e o trapézio,  primeiro a ver nele uma reflexão sobre a política e a sociedade de seu tempo. E a biografia mais exaustivamente pesquisada é, obviamente, a de Raimundo Magalhães Jr.  Mas ela é antiquada, pois perde tempo demais em detalhes e não se concentra no que é mais importante, criando a imagem de um Machado alienado, um esteta pairando acima de sua época. Minha intenção foi mergulhar Machado mais fundo em sua cidade e país e, tal como uma bola na piscina, soltá-lo para que saltasse mais alto ainda. Combati os mitos sobre sua vida, como o de que teria sido um sujeito sempre melancólico e insociável; reforcei sua aversão à religião; e ataquei a atribuição de pensamentos dos personagens a ele, autor. Nunca ninguém havia feito a interpretação da frase final de Brás Cubas (“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”) como eu fiz.   
 
IHU On-Line - Pode comentar sobre a transição de Machado de uma prosa mais simples para uma prosa mais complexa, mais trabalhada? Acredita que isto esteja ligado ao fato de ele ter ficado doente e de sua retirada para Nova Friburgo?  

Daniel Piza - A prosa dele sempre foi muito trabalhada, elaborada. O que acontece depois da internação em Friburgo é que ele solta o humor e a imaginação de uma forma como não havia feito até então. Brás Cubas é um livro muito engraçado e nada convencional. Machado abandonou o moralismo e o esquematismo de seus primeiros romances e partiu para uma literatura mais livre na linguagem e mais rica nos temas.
 
IHU On-Line - Há muitos elementos na obra de Machado explicados a partir de dados autobiográficos. Como, a seu ver, a composição de personagens que fazem parte do imaginário brasileiro, como Brás Cubas e Quincas Borba, carregariam traços da pessoa de Machado de Assis, em seus posicionamentos? Ele era um intérprete da sociedade, ou seja, do comportamento humano, de sua época?

Daniel Piza - Os homens de Machado são todos fáceis de iludir e terminam desiludidos. Machado quis ser um poeta romântico e não foi. Além disso, a questão da paternidade é forte em todos os seus livros. O equívoco é ir além desses paralelos e confundir o autor com seus personagens. Machado não era rico como eles, muito menos dado a delírios de grandeza. O mais importante em sua vida é perceber que ela permitiu que ele observasse todas as classes sociais de sua época numa cidade em rápida transformação. A correspondência entre vida e obra deve ser mais sutil, menos grosseira.
 
IHU On-Line - Como se unem o Machado tímido da intimidade, descrito por você na biografia, com o Machado do universo público, em contato com as pessoas, sobretudo com escritores de seu período, com todos seus paradoxos?

Daniel Piza - Eles se unem em sua figura, contraditória e complexa como a de todo grande indivíduo. Ele era um homem reservado, mas não recluso; pessimista, mas não mal-humorado; ambicioso, mas não cínico. Eis o fascínio do personagem. Ele jamais seria capaz de fazer como Joaquim Nabuco  e subir ao palco para discursar em defesa do abolicionismo, mas participou da sociedade abolicionista e escreveu algumas páginas memoráveis sobre a questão. Não é preciso ser um extrovertido para ser um participante.
 
IHU On-Line - Você concordaria com a afirmação de José Guilherme Merquior,  no ensaio “Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas”, de que, por um lado, ele não “aderiu a nenhum dos credos cientificistas do seu tempo”, mas, por outro, impregnou-se do pensamento de Schopenhauer, para o qual o “Universo é vontade, cega, obscura e irracional vontade de viver” e a partir do qual, segundo Merquior, Machado teria fundado seu humanitismo?

Daniel Piza - Veja aí o problema. Machado não fundou o Humanitismo, quem o fundou foi Quincas Borba. Ele é inspirado em Leibniz,  em seu conceito de “mônada”, criticado por Voltaire,  um dos ídolos de Machado. Machado tinha um pessimismo parecido com o de Schopenhauer, sim, mas é sempre bom lembrar que Schopenhauer dizia que “são as pessoas que gostariam de ouvir que Deus nosso Senhor fez tudo da melhor maneira possível”. Machado assinaria embaixo. Quanto ao cientificismo, ele o criticou justamente por converter a ciência numa nova espécie de religião, pronta a salvar a humanidade de todos os males.
 
IHU On-Line - Há um texto referencial, “Instinto de nacionalidade”, em que Machado trabalha, mesmo que apontando traços negativos, com o conceito de nacionalismo da literatura. Ao mesmo tempo, apontam em Machado uma ausência da cor local. Alguém poderia pensar que ele imaginava numa literatura independente de outras? 

Daniel Piza - Em “Instinto de Nacionalidade”, Machado não defende o nacionalismo, a “cor local”. Defende que a independência da literatura brasileira se daria justamente em fugir à polarização entre o nacionalismo da “cor local” e a imitação das modas européias. Por isso, cita Shakespeare, que escreveu sobre eventos na Itália ou na Dinamarca e nem por isso deixou de ser inglês, de ter um “certo sentimento íntimo” que o associava a seu país. Machado era profundamente brasileiro, não só porque escreveu sobre seu lugar e sua época, mas também porque o fez com esse mesmo indefinível “sentimento íntimo”.

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