Edição 351 | 22 Novembro 2010

O anúncio do Reino de Deus e a ética. Ratzinger e Jon Sobrino, duas visões

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Moisés Sbardelotto

A tarefa da ética é tentar formular diretrizes mais ou menos confiáveis ou até absolutas, que definam instituições e práticas moralmente boas. Mas hoje é essencial envolver a participação de vozes que foram excluídas do processo decisório, defende a teóloga norte-americana Lisa Sowle Cahill

Para enfrentar problemas globais como a pobreza, a violência, o racismo e o sexismo, é necessário encontrar uma “abordagem básica para a moral”, ou seja, valores que “os seres humanos partilham em comum”. Mas, para isso, é preciso “rever o significado da lei natural para o mundo de hoje”. Para a teóloga norte-americana Lisa Sowle Cahill, professora do Boston College, o desafio da ética é justamente “tentar formular diretrizes mais ou menos confiáveis e, às vezes, até absolutas, que definam instituições, práticas sociais e decisões individuais moralmente boas”. Mas reconhece: “Essa não é uma tarefa fácil. Na verdade, é uma tarefa que nunca acaba”. Por isso, hoje, “é essencial envolver a participação de vozes que foram frequentemente excluídas do processo decisório no passado, por exemplo, as mulheres, as minorias raciais e étnicas da sociedade e os leigos na Igreja”. Especificamente com relação às mulheres, Lisa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, critica o patriarcado ainda existente na Igreja, disfarçado sob “uma ideologia de ‘complementaridade entre gêneros’”, que, segundo ela, “serve como uma justificação para confinar as mulheres a papéis domésticos”. Mas, afirma, há sinais importantes de esperança para as mulheres na Igreja e na teologia moral, que não se encontram nos escritos dos papas e de outros mestres oficiais: é o papel que as próprias mulheres estão desempenhando na teologia e na Igreja. “O Brasil é o lar de muitas importantes teólogas feministas”, afirma.


Lisa Sowle Cahill é teóloga e professora da cátedra J. Donald Monan, SJ, do Boston College, nos Estados Unidos, onde leciona teologia desde l976. É ex-presidente da Catholic Theological Society of America e da Society of Christian Ethics. Também é membro da American Academy of Arts and Sciences. Formada em teologia pela Santa Clara University, é mestra e doutora em teologia pela University of Chicago. Em 2008, participou do Comitê Consultivo Católico do então candidato a presidente Barack Obama. É autora, dentre outros, de Theological Bioethics: Participation, Justice and Change (Georgetown, 2005); Sexuality and the U.S. Catholic Church: Crisis and Renewal, editado com John Garvey e T. Frank Kennedy (New York: Herder and Herder, 2006); e Genetics, Theology, Ethics: An Interdisciplinary Conversation (Crossroad, 2005).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como podemos compreender o compromisso ético na realidade social, moderna e laica de hoje, caracterizada por aquilo que alguns – como o Vaticano – chamam de “relativismo”? Quais seriam seus fundamentos básicos?

Lisa Sowle Cahill –
Ao falar sobre “relativismo”, acho que uma abordagem útil ainda é a “lei natural”, como sugerida por Tomás de Aquino. Temos que rever o significado da lei natural para o mundo de hoje, é claro. Por “lei natural”, não me refiro a um conjunto de conclusões ou de regras específicas de comportamento. Pelo contrário, refiro-me a uma abordagem básica para a moral, que busca compreender – a partir “do zero” ou indutivamente – quais valores os seres humanos partilham em comum. É necessário algum sentido de uma moral compartilhada e não relativa para enfrentar problemas globais como a pobreza, a violência, o racismo e o sexismo.

Aquino sugere três exemplos básicos de bens humanos compartilhados que são reconhecidos em todas as culturas:


1)    o desejo de preservar a própria vida e o respeito pela vida dos outros;
2)    o valor do sexo, de se ter filhos e de educar a próxima geração;
3)    a importância de viver cooperativamente em sociedade e, como diz Aquino, “buscar conhecer a verdade sobre Deus”.

Obviamente, a forma como esses três bens são institucionalizados em diferentes sociedades, e realizados concretamente, vai variar de lugar para lugar e de tempo para tempo. Assim, enquanto os bens básicos são não relativos, expressões éticas específicas podem ser relativas a circunstâncias e necessidades. Como disse o próprio Aquino, a ética lida com “matérias contingentes”, e, quanto mais lidamos com questões morais concretas e detalhadas, mais variedade haverá.
A tarefa da ética é tentar formular diretrizes mais ou menos confiáveis e às vezes até absolutas, que definam instituições, práticas sociais e decisões individuais moralmente boas. Essa não é uma tarefa fácil. Na verdade, é uma tarefa que nunca acaba.
O último ponto que eu gostaria de abordar é que, no mundo de hoje, é essencial envolver a participação de vozes que foram frequentemente excluídas do processo decisório no passado, por exemplo, as mulheres, as minorias raciais e étnicas da sociedade e os leigos na Igreja.

IHU On-Line – Cristo traz um “novo paradigma normativo”, como a senhora afirma, tanto para a teologia quanto para a ética. Nesse sentido, quais as contribuições específicas do cristianismo para o compromisso ético?

Lisa Sowle Cahill – O cristianismo não traz uma definição nova ou diferente dos bens humanos básicos como a vida, o sexo e a procriação, ou a cooperação sociopolítica. Mas traz uma visão diferente da inclusividade de acesso a esses bens. Eles não são apenas para as elites. Os poderosos não têm o direito exclusivo de usufruir dos bens humanos, ou de decidir quem pode tê-los e em que condições. Encontramos a principal mensagem moral do Evangelho no ministério de Jesus do reino de Deus em sua “comunhão à mesa”, inclusiva com os pecadores e os marginalizados, e em seu mandamento de amar a Deus e ao próximo, e até mesmo aos estranhos e inimigos. Outra parte de sua mensagem e de seu exemplo é a Cruz. Devemos estar dispostos a nos sacrificar a fim de assegurar que o reino ou o reinado de Deus comece a se tornar uma realidade para aqueles que sofrem injustamente no nosso mundo. Finalmente, os cristãos também vivem a partir da ressurreição de Cristo. Devemos confiar que um mundo melhor é possível, mesmo que isso nunca será historicamente perfeito. A ressurreição de Cristo nos dá a confiança de que podemos trabalhar com os outros pela justiça social.

IHU On-Line – Especialmente na América Latina, a situação social e a opção pelos pobres trouxeram uma nova leitura para a vivência cristã. Em sua opinião, como isso afetou o debate sobre a ética cristã?

Lisa Sowle Cahill – Não apenas na América Latina, mas em todo o mundo, a “opção pelos pobres” tornou-se fundamental para a ética cristã. Vemos isso refletido, por exemplo, na Sollicitudo rei socialis, uma encíclica de João Paulo II, e na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2009, de Bento XVI, na luta contra a pobreza. A lição para a ética é que as questões do pecado social e estrutural e da justiça são as questões mais importantes e fundamentais para a ética cristã, e que a chamada “ética pessoal” deve estar sempre ligada ao contexto social e à responsabilidade social.

IHU On-Line – Qual a relação entre ética e teologia? Como ambas podem se complementar?

Lisa Sowle Cahill – A teologia cristã traz à ética a opção pelos pobres, assim como a necessidade da Cruz e a esperança na ressurreição. Mas a ética traz à teologia a prova prática da justiça. Será que os símbolos e doutrinas teológicos e a forma como são utilizados promovem o ministério de Jesus do reino de Deus?

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