Edição 348 | 25 Outubro 2010

Interpretações históricas e atuais da experiência jesuítica

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin | Tradução Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – Como, no processo de evangelização, o cristianismo se relaciona com as crenças indígenas e os valores culturais dos índios?

Guillermo Wilde – A relação entre religião e cultura foi fundamental no processo de evangelização. Uma das questões de fundo para os missionários parece ter sido, dentre outras, determinar o grau de conhecimento que os índios já possuíam da divindade e do cosmos cristão, antes de sua chegada às terras americanas. Os jesuítas são promotores de uma série de lendas sobre uma difusão precoce do cristianismo entre os índios, por meio da pregação do apóstolo São Tomé, que, supostamente, realizou uma peregrinação e difundiu as primeiras ideias sobre Deus e a Criação.

Outra das questões era como traduzir os conceitos cristãos à linguagem nativa. Uma das controvérsias mais interessantes nesse sentido ocorreu em meados do século XVII, quando se discutiu a legitimidade do uso do termo tupã, figura da cosmologia nativa, para se referir ao deus cristão no catecismo canônico. A discussão se tornava mais complexa quando se entrava no terreno dos ritos indígenas e a necessidade de erradicá-los ou adaptá-los à missão. Essa discussão sobre os ritos é muito ampla e afunda suas raízes na política mais geral da conversão religiosa no mundo.

Os jesuítas tiveram um papel importante no desenvolvimento das chamadas teorias de adaptação ou acomodação cultural, ensaiadas inicialmente na missão jesuítica do Oriente (China, Índia, Japão), mas continuadas na América na pena de figuras como José de Acosta . Este último propõe uma classificação dos ritos nativos e sua relação com os costumes, uma cartografia dos tipos religiosos e culturais mais ou menos sensíveis à ação civilizadora do cristianismo. Acosta, de alguma forma, instala um debate sobre a separação do espaço da civilidade (a política, os costumes) do campo das crenças e práticas religiosas. Esse debate é central, na medida que manifesta a capacidade relativa de adaptação dos religiosos aos contextos locais e o grau de permissividade que tinham frente às tradições nativas, ou melhor, o modo mais adequado de “cristianizá-las”. Embora seja difícil estabelecer nos contextos missionários o grau de tradicionalidade de certas práticas litúrgicas, está comprovado que a missão foi suficientemente permeável, de forma a incorporar elementos locais a um contexto cristão que não esteve isento de ambiguidades no campo prático.

IHU On-Line – Que posição a religião ocupava nas relações de poder nas missões?

Guillermo Wilde – De uma perspectiva geral, a missão constitui uma espécie de fato social total, isto é, que integra em uma mesma realidade o social, o econômico, o político e o religioso. Não se pode entender um aspecto sem o outro. A religião ocupa um lugar central na organização das relações de poder e vice-versa. Mas é preciso esclarecer que as missões não foram uma organização igualitária. Formavam parte do regime colonial mais amplo e respondiam a seus requisitos jurídicos, econômicos e políticos básicos. Portanto, eram uma organização centralizada e hierárquica, o que se expressa imediatamente no urbanismo e nos diversos aspectos da vida cotidiana, tal como descrevem as crônicas e a iconografia.

Ao destruir os feiticeiros, os jesuítas assumem, eles mesmos, o exercício condensado das funções políticas e religiosas que os primeiros possuíam. O jesuíta estava dotado de um poder sacramental destinado a sancionar e legitimar todas as atividades da missão. Mas era a aliança (política) que mantinha com um grande número de líderes indígenas o que permitia sustentar o regime. Ali reside todo o segredo do “domínio” de milhares de pessoas por parte dos jesuítas em cada redução. Com a consolidação do regime missionário, especialmente durante o século XVIII, se formou dentro da própria elite indígena uma camada diferenciada de funcionários ligados às atividades da Igreja e da liturgia cristã, os quais contavam com as vantagens (entre eles estavam os sacristães, músicos, copistas, mestres de capela e congregantes).
Essa elite requeria uma estrita preparação religiosa e, naturalmente, gozava dos privilégios políticos derivados de sua grande proximidade com os sacerdotes, de quem costumavam ser colaboradores diretos. Deve-se dizer, de todas as formas, que essa ordem missionária também apresentou, em numerosas circunstâncias, contradições e conflitos, baseados nas rivalidades entre os membros da própria elite indígena, em nada homogênea em seus interesses nem em suas ambições.

IHU On-Line – A partir das diversas pesquisas históricas referentes às missões, como é possível avaliar, hoje, o projeto missionário?

Guillermo Wilde – A pesquisa mais recente sobre os espaços missionários está produzindo uma mudança substancial de perspectiva e de avaliação do passado missionário. Recuperou-se para a população indígena que participou desse projeto um lugar ativo na configuração de padrões políticos, espaciais e simbólicos.

Parece superada a visão clássica segundo a qual os indígenas foram simples marionetes dos religiosos ou, então, sujeitos passivos e submissos à ação missionária. Também se superou a visão idílica das missões como espaços utópicos de realização de um cristianismo puro, em que tradições indígenas e europeias se encontraram e produziram uma simbiose perfeita. A pesquisa mais recente tenta superar tais olhares simplistas, recuperando uma perspectiva mais complexa que concebe a missão, em primeiro lugar, como um espaço ao mesmo tempo religioso, cultural e político; em segundo lugar, como um espaço de interações e negociações individuais e coletivas em que se transformam tradições, fundamentalmente nativas, mas também, em certa medida, cristãs, que necessariamente devem ser adaptadas aos contextos locais. A missão produz, então, regimes novos de “memória social”, a partir da conjugação de elementos múltiplos.

Deve-se mencionar a contribuição de uma etno-história e de uma história cultural para pensar a dinâmica indígena da missão em termos de estratégias, lógicas e práticas locais, associadas a uma adoção do regime dominante para exercê-lo autonomamente e, às vezes, contra o próprio regime dominante. Pensemos, por exemplo, no uso contra-hegemônico que os índios fazem, em certas circunstâncias (como por exemplo, a Guerra Guaranítica , entre 1754 e 1756) de seu conhecimento da escrita e da leitura.

Por último, embora não menos importante, deve-se destacar a superação da visão compartimentada do espaço missionário, construída pelas historiografias nacionais no século XIX, a qual é suplantada hoje em dia por uma perspectiva mais fluida das fronteiras no grande espaço colonial e inclusive entre os difusos limites que separavam, entre os séculos XVII e XVIII, os domínios de Espanha e Portugal.
Acompanhando essa orientação analítica, é que, recentemente, os esforços de uma nova arqueologia, fundamentalmente desenvolvida no Brasil, contribuíram para compreender o espaço missionário como algo mais do que o traçado urbano do povo, considerando também os espaços circundantes das estâncias, os ervais, os portos, os caminhos, como parte da dinâmica da missão. Em síntese, a avaliação contemporânea é mais complexa, aberta e multidisciplinar.

IHU On-Line – Atualmente, qual é a interpretação histórica das missões? Seria necessária uma nova reinterpretação desse período? Se sim, que aspectos fariam parte desse processo?

Guillermo Wilde – Atualmente, a interpretação histórica das missões, tal como eu a concebo, se orienta a reinterpretar a configuração gradual do espaço missionário. Até o momento, não há muito trabalho realizado sobre o tema. A demografia histórica das missões iniciou em meados do século XX, foi continuada por uma história econômica e política, e hoje em dia poderíamos dizer que os debates mais interessantes se desenvolvem no campo da etno-história e da história cultural.

Nesse sentido, minha própria contribuição à pesquisa sobre o tema se orienta em direções muito concretas, em boa parte esboçada em um livro de recente aparição (Religión y Poder en las Misiones de Guaraníes, Buenos Aires, Editorial SB, 2009). Posso sintetizar em três pontos. Primeiro: pesquisar a formação das missões como um processo de “etnogênese missionária”, caracterizado pela criação de instituições políticas, econômicas e culturais, a definição de limites territoriais e a intervenção dos atores locais, especialmente dos líderes nativos. Pode-se fazer um seguimento preciso desses atores a partir do estudo dos “cacicazgos” incorporados à missão, os quais estão registrados em numerosos padrões. Por meio deles, é possível saber sobre a dinâmica das parcialidades, das milícias e dos cabidos indígenas ao longo de 200 anos de história.
Segundo: recuperar a dimensão culturalmente heterogênea do espaço missionário, a qual se preserva ao longo do tempo, apesar das tentativas reiteradas de homogeneização que se desdobram a partir de cima. Essa dimensão de heterogeneidade está ligada a práticas sociais concretas, como o parentesco e a aliança, que tendem a vincular o espaço interior e exterior da missão, por meio de interações entre a população reduzida e a não reduzida, entre os índios cristãos e os “índios infiéis”. Isto é, a heterogeneidade se reproduz a partir de uma concepção espacial aberta e permeável, especialmente em certas regiões e períodos.
Terceiro: reler e reinterpretar as fontes, diferenciando diversos níveis de informação. Pode-se constatar que a própria documentação da Companhia de Jesus frequentemente ofereceu em seus escritos versões muito diferentes da mesma realidade missionária, segundo se tratasse de crônicas, memoriais, cartas anuais ou documentação interna. Essa diversidade de níveis discursivos tornou invisíveis certas práticas locais durante certos períodos, que costumam reaparecer em outros. Tal é o caso da poligamia ou da feitiçaria, da qual encontramos evidências fragmentares durante o século XVIII e ainda imediatamente depois da expulsão dos jesuítas.

IHU On-Line – Qual a relevância dos espaços missionários na contemporaneidade?

Guillermo Wilde – Por vários motivos, os estudos dos espaços missionários têm uma grande relevância contemporânea. O tema é “bom para pensar” nossa modernidade em vários sentidos. Em primeiro lugar, se relaciona com a questão da expansão da modernidade cristã no mundo e suas diversas respostas (culturais) locais. Isto é, instala uma discussão muito contemporânea sobre a aculturação e as primeiras formulações relativistas moldadas nos escritos dos ideólogos da conversão.

Em segundo lugar, nos apresenta um debate sobre a noção do “bom governo” e sua evolução ideológica nos últimos dois séculos, o que constitui uma herança intelectual inevitável desde o Iluminismo até o presente.
Em terceiro lugar, nos permite intervir de forma mais ativa e inteligente no debate contemporâneo sobre o patrimônio e as disputas a ele relacionadas, seu empréstimos, apropriações e legislações.
Posto que o que está em jogo, em última instância, é a própria definição do passado, o estudo da dinâmica missionária nos permite construir uma visão mais complexa e “objetiva” sobre seus possíveis usos, instrumentações e reelaborações.

Leia Mais...

>> Guillermo Wilde já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.
* Os guarani e o território latino americano: uma relação histórica. Publicada na edição 331, de 31-05-2010, intitulada Os Guarani. Palavra e Caminho.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição