Edição 347 | 18 Outubro 2010

Desafios da ecologia às religiões

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José Maria Vigil

 

* Muda a imagem do ser humano:
• não viemos de cima, nem de fora... senão de baixo, e de dentro, da Terra, do cosmo; somos o resultado final atual, a flor da evolução cósmica;
• não é verdade que sejamos superiores, diferentes e de algum modo alheios ao resto da Natureza, os únicos com uma mente e um espírito procedentes diretamente de Deus;
• não somos os “donos da criação”, nem “foi criada para nós”. Somos uma espécie a mais, embora, certamente, a única capaz de assumir responsabilidade consciente e solidária sobre todo o restante das espécies;
• não podemos viver separados da Natureza, como “sobrenaturais”, injustificadamente autoexilados de nossa placenta, abdicando insensatamente de nossas raízes naturais, autodespojados de nossa natureza terrestre, artificialmente desnaturalizados, ou tratando de superar nossa naturalidade para converter-nos em seres “espirituais” que “superam” a matéria, a corporalidade;
• somos seres naturais, muito naturais. Somos Natureza, Terra que sente, que pensa e ama, matéria-energia organizada que em nós chega à consciência, à reflexão e a profundidade existencial.

Muda a imagem de Deus
 
• uma visão tão precária da natureza e do cosmo, como a que teve a humanidade durante os milênios passados, não podia dar de si mesma senão ima imagem insuficiente de Deus;
• a visão atual da realidade já não nos permite imaginar um Deus lá fora, ali em cima, nesse “segundo piso superior” do qual dependeria o nosso. Hoje vemos que não tem sentido falar de, nem pensar em um “fora” ou um “em cima” do mundo, nem do cosmo;
• “a ideia de um Deus separado da criação, ou transcendente, é um de nossos principais problemas” (Thomas Berry);
• não tem sentido um deus antropomorfo: “pessoa” que pensa, decide, ama e se enfada e se expressa como nós... como um deus-theos, como os gregos o conceberam;
• pensar que Ele é “Senhor”, Dono, Juiz premiador e punidor... é hoje, claramente, um antropomorfismo da época neolítico-agrária;
• existir “a Divindade” (como dimensão real) só se poderá encontrar na única realidade cósmica.

Voltemos ao cosmo e à natureza

Disse Santo Tomás que “um erro acerca da Natureza redunda num erro acerca de Deus”... Os erros que temos sofrido sobre a natureza e, sobretudo, a ignorância a seu respeito tem sido máximos, e por isso é de supor que a imagem de Deus e do religioso, surgida daquele marco e que nós herdamos, traz em si grandes deficiências que hoje teríamos capacidade de remediar.
Parece claro que as religiões têm vivido de costas para a Natureza, devido, entre outras coisas, a que tenham concentrado toda sua atenção numa pequena “história sagrada”, iniciada faz somente 300 anos, e essa tem sido a única “revelação” que tiveram em conta...

A explosão científica dos últimos tempos é, sem dúvida, uma nova “experiência de revelação”, na qual o divino da realidade se nos manifesta numa forma nova e intensiva. Não há nada na atualidade que esteja inspirando tanto uma tomada de consciência espiritual no mundo como no “novo relato” de nossa história cósmica. As religiões necessitam sentir o kairós ecológico desta hora e voltar-se para o cosmo e a natureza, para neles reconhecer nossa “história sagrada”, superando o atual divórcio entre ciência e espiritualidade, entre religião e ciência, entre vida espiritual e realidade. Aceitar o desafio da ecologia não é somente incluir o “cuidado da natureza” entre os imperativos morais; é mais: implica toda uma “reconversão ecológica” da religião.

Desafios

Não é, pois, somente a imagem física do mundo que mudou, senão todo ele: sua origem, suas dimensões, sua arquitetura, sua complexidade, seu sentido, sua sacralidade... Ante dessa mudança tão total e radical, as religiões que elaboraram todo seu patrimônio simbólico (categorias, teologias, liturgia, dogmas, ritos, mitos...) no contexto daquele velho imaginário já obsoleto, aparecem agora profundamente antiquadas, pertencentes a um mundo caduco, distante, que já não existe e nem sequer nos resulta compreensível. A linguagem religiosa tradicional perde sentido e significado, e até se faz ininteligível para os jovens. As religiões, que serviram a humanidade durante milênios para expressar a dimensão mais profunda da existência, parecem que já não estão à altura necessária para seguir prestando este serviço.
Nesta situação, as religiões se sentem a si mesmas desafiadas e incompreendidas, sem captar com clareza qual é a causa. Com frequência reagem defendendo-se, repetindo e reafirmando intemperantemente sua tradição sagrada, suas “verdades reveladas”, as “verdades eternas”, quando o que deveriam fazer seria reinterpretá-las e adequá-las à linguagem e aos novos paradigmas que acessamos, abandonando aqueles erros de perspectiva que todos sofremos pela ignorância à qual nos vimos historicamente submetidos, e abrindo-nos, então, à revelação permanente...

Os anos 1960 do século passado foram um momento de esperança e otimismo no cristianismo em geral, quando ele parecia abrir-se à possibilidade de uma profunda renovação interna e a uma reconciliação com o mundo e com os valores da modernidade (razão, ciência, mundo, democracia, valor da pessoa, liberdade religiosa e demais liberdades, perspectiva dos pobres, etc.).
Mas, essa primavera logo se viu truncada ante o temor que produzia a comoção que tal renovação supunha. O medo venceu e os freios e retrocessos que desde então se produziram não fizeram senão distanciar mais e mais a sociedade do cristianismo institucional. São dezenas de milhões as pessoas que abandonaram a religião nas últimas décadas na Europa, alegando, por exemplo, não poder aceitar uma cosmovisão que lhes resulta superada, buscando sua realização espiritual por novos caminhos. Somente uma profunda reflexão – no campo da ecologia e no dos outros vários “novos paradigmas” –, aliada a uma consequente e valente renovação teológica, reabrirá a esperança.

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