Edição 347 | 18 Outubro 2010

Uma missão sob o signo da amizade

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Márcia Junges

 

IHU On-Line - Quais são os reflexos dessa missão evangelizadora na Igreja de hoje?

Roberto Ribeiro Mesquita - Em primeiro lugar, a figura de Ricci é uma figura de abertura e respeito. Por isso é uma figura aceita em diversos círculos na igreja e na sociedade. Durante as celebrações do IV centenário de sua morte em Pequim, a figura de Ricci não somente foi aceita, mas de certo modo celebrada pelas instâncias oficiais na China. Em segundo lugar, Ricci é uma fonte de inspiração dentro da Igreja para o diálogo entre fé e cultura.

IHU On-Line - Que aspectos apontaria na cultura da China atual que foram marcados pela passagem de Ricci no país?

Roberto Ribeiro Mesquita - Ricci foi o primeiro ocidental a estabelecer uma presença contínua na China, depois da presença de Marco Polo  e dos franciscanos na dinastia Yuan, no século XIII. Sobretudo, na primeira fase dessa presença ocidental na China, Ricci e diversos outros jesuítas irão construir um diálogo extraordinário com a cultura local. Ricci irá introduzir os fundamentos da matemática aplicada e ciência moderna na China, além de muitas outras inovações. Junto com Paul Xu, o pilar da igreja chinesa, como dizia Ricci, ele traduzira Euclides para o chinês. Sua contribuição para a cultura chinesa incluirá filosofia, cartografia, música, astronomia, pintura e teologia. Desse modo, o aspecto mais importante da passagem de Ricci que se faz sentir na China de hoje é a relação de respeito e crescimento mútuo entre um ocidental e seus amigos chineses. Essa relação está em violento contraste com a dura história de conflito entre Oriente e Ocidente nas guerras do ópio do século XIX.

IHU On-Line - Como se dá o diálogo intercultural na China de hoje?

Roberto Ribeiro Mesquita - A China é hoje um país central no cenário mundial. Não somente a sua força econômica, mas também a sua relevância cultural tem crescido aceleradamente. O estabelecimento dos Institutos Confúcio e outros centros de idioma e cultura chinesas são uma demonstração desse interesse e abertura da China para o diálogo com outras culturas. No ano passado, a Academia de Ciências Sociais da China criou um centro de Estudos Brasileiros, por exemplo. Também no ano passado, a Universidade de Comércio Internacional e Economia, onde o nosso centro (The Beijing Center for Chinese Studies) está estabelecido criou um departamento de português. Esses são apenas dois exemplos de como a China e os chineses se interessam pelas diferentes línguas e culturas. É preciso, porém, compreender que a China é um país imenso, extremamente diverso e filho de uma história contínua de mais de cinco mil anos. Muitas vezes, o diálogo intercultural é uma realidade dentro mesmo da China, que oficialmente possui 55 minorias étnicas.

IHU On-Line - E quanto às religiões, há um diálogo entre os diferentes credos na China? Se sim, em que medida Ricci contribuiu para esse aporte?

Roberto Ribeiro Mesquita - A China possui cinco religiões oficiais: budismo, islamismo, taoísmo, catolicismo e cristianismo (o governo chinês distingue os dois grupos cristãos como duas religiões distintas). Dentre essas religiões, apenas o taoísmo é uma religião nascida na China. O budismo, porém, se enraizou na China de tal maneira que nos é impossível compreendê-lo sem suas expressões tipicamente chinesas. Já o islamismo e o cristianismo, porém, tiveram menos ocasião ou menos oportunidade de se enraizar profundamente na cultura, de modo que se apresentam como religiões estrangeiras e minoritárias. Talvez por causa desse contexto, mas também por conta do cenário político na China contemporânea, o diálogo inter-religioso não é particularmente ativo. No tempo de Ricci, inicialmente houve muita proximidade com o budismo – Ricci, no começo, se vestira como monge budista, antes de assumir o perfil de mandarim. Mas, pouco a pouco, Ricci foi se distanciando para criar o espaço necessário a fim de comunicar a novidade de uma mensagem inédita. De todo modo, tanto no tempo de Ricci como na China contemporânea, o diálogo sobre as expressões culturais da humanidade reveladas através das diversas religiões parece ser a porta de entrada para uma melhor compreensão mútua.

IHU On-Line - Qual foi a importância da missão de Ricci na disseminação do catolicismo pelo mundo?

Roberto Ribeiro Mesquita - Em uma de suas cartas, Ricci dirá que não é o tempo de colher, e não é sequer o tempo de semear, mas apenas tempo de limpar o mato e preparar o terreno para a semeadura. Ricci certamente sonhava com numerosas conversões, mas o número jamais foi prioridade para ele. O que lhe era essencial era que a mensagem de Cristo, que os valores do Evangelho fossem conhecidos por todos. Ele queria que Cristo fosse uma voz no diálogo, e essa é a grande contribuição de Ricci. A colheita jamais nos pertence, de fato. O que nos compete, hoje e sempre, é a abertura de um espaço, de uma brecha para que a Palavra comunique, que Ela siga seu caminho. Ricci acreditava que faz sentido viver a vida com base no amor e na reconciliação. Ele acreditava que essa verdade faz seu próprio caminho. Eu também acredito.

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